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Wilson Alves-Bezerra (São Paulo, 1977) 
Dedica-se à prosa de ficção, à poesia em prosa, à crítica literária de autores latino-americanos e à tradução literária. Em Portugal, publicou antologia de seus poemas Exílio aos olhos, exílio às línguas (Oca, 2017), as duas edições de O Pau do Brasil (Urutau, 2017 e 2019), seu work in progress de poemas políticos sobre o Brasil contemporâneo. Necromancia Tropical agora lançado pela Douda Correria é um projeto iniciado em 2020, cujos primeiros poemas foram lançados em disco virtual, Catecismo Moreninho (Livraria Orgânica, 2020).  No Brasil, publicou ainda Histórias zoófilas e outras atrocidades (contos, EDUFSCar / Oitava Rima, 2013), Vertigens (poemas em prosa, Iluminuras, 2015), O Pau do Brasil (poemas em prosa, Urutau, 2016), Vapor Barato (romance, Iluminuras, 2018) e Malangue Malanga (Poemas em prosa, Iluminuras, 2021). Tem ainda obras publicadas no Chile [Cuentos de amor, memoria y muerte (contos, LOM, 2018)], Colômbia [Catecismo salvaje, poemas, El Taller Blanco Ediciones, 2021] e El Salvador [Selección de poesía, Secretaria de Cultura de San Salvador, 2021]. Seu livro de poemas Vertigens ganhou o prêmio Jabuti em 2016, na categoria Poesia – Escolha do leitor. Já colaborou como resenhista para alguns veículos do Brasil (O Globo, O Estado de S. Paulo, Cult, Jornal do Brasil, Zero Hora) e México (El Universal). É autor dos seguintes ensaios: Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga (Humanitas/FAPESP, 2008), que acaba de ser publicado no Uruguai [Reverberaciones de la frontera en Horacio Quiroga, Más Quiroga, 2021], Da clínica do desejo a sua escrita: incidências do pensamento psicanalítico na obra de alguns escritores do Brasil e Caribe (Mercado de Letras/FAPESP, 2012) e Páginas latino-americanas – resenhas literárias (2009-2015) (EDUFSCar / Oficina Raquel, 2016). Como tradutor, foi responsável pela versão de autores latino-americanos como Horacio Quiroga (Contos da Selva, Cartas de um caçador, Contos de amor de loucura e de morte, todos pela Iluminuras), Luis Gusmán (Pele e Osso, Os Outros, Hotel Éden,  todos pela Iluminuras) e Alfonsina Storni (Sou uma selva de raízes vivas – obra que contou com o apoio da Casa do Tradutor Looren, de Wernetshausen, Suíça). Sua tradução de Pele e Osso, de Luis Gusmán, foi finalista do Prêmio Jabuti 2010, na categoria Melhor tradução literária espanhol-português. É doutor em literatura comparada pela UERJ e mestre em literatura hispano-americana pela USP, onde também se graduou. É professor de Departamento de Letras da UFSCar, onde atua na graduação e na pós-graduação. 

CHAMA

 

 Queima ele, senhor,

o país que sobrou.

 

O mato, a mata, o matuto, o macaco

Tudo vai ser dizimado

Mata a menina na maloca,

Mata o molambo,

Mata o menino na escola,

Mata a matilha de lobos guará

Mata a mocambo,

Mata o mulato no metrô

Mata quanto se move

Mata o mico e a banana

Mata na maloca o malungo,

Arremata o morto no Catumbi

Mata tudo que se move por aqui.

 

Queima ele,

Queima muito, senhor,

o país que sobrou.

Queima quanto vive,

Queima fundo,

Queima, senhor.

 

Mata a onça

O tuiuiú em seu voo

A garça, a cutia, a moça

Asfixiada, o seu olhar de horror

Mata o jacaré, queima o angelim

Não deixa nada de pé

Queima, em mim, senhor,

É o certo,

Construir o deserto

Em sete dias,

para replantar depois

A obra de Cristo

cimentado

sobre a sombra sinistra

do rastilho do nada que ficou

Soja transgênica

gado nazista,

transfóbico

fazendeiro misógino

na chalana racista

do rio do pavor.

 

Queima ele,

Queima muito, senhor,

o país que sobrou.

Queima quanto vive,

Queima fundo,

Queima, senhor.

Queima meu alento

Queima meu alívio

Queima a história

Queima  tudo quanto sou.

 

Funda sua Igreja de misérias

Sua igreja de mortos, senhor

Seu altar todo de cinzas,

Seu catecismo de iras,

Seus fiéis de horror.

Funda a igreja perversa

Na fazenda de ossos

Da terra do pau brasil

 

Frita peixe na chama

vista seca

Garganta trinca

Cabeça lateja

Nó no peito,

O mandatário consente

Queimar meus olhos,

Para votar consciente,

De novo,

Queimar meus dedos,

Para não dizê-lo,

Não saber da morte, nem do medo

Queimar pau, perereca, útero, grelo

Queimar quanto fulge,

quanto sangra,

quanto vive,

quanto sente.

Queima, prende, arrebente

Para que nada se regenere.

Queima que fazendeiro prometeu a pastor

mais igreja, quanto mais soja brotasse,

mata maldita, mata pisada, mata agreste,

A mata é a moita

A mata é pouca.

A mata é nada.

Mana água de cinza

Da bica da boca dos ratos. 

 

Queima ele,

Queima muito, senhor,

o país que sobrou.

O pantanal é o forno

Do seu campo de concentração

 

Mata meu grito

Absorto

Meu horto de martírios

de horrores que causou.

Mata de novo

os cento e trinta mil mortos.

Mata, genocida,

quem já morre à míngua.

Mata, que há muita vida ao redor.

 

Vem que te queimo,

Jesus de azulejo,

Igreja de cheetos,

Pastor de tergal,

Fazendeiro organoclorado,

Que te caço,

Feito cada onça que você queimou.

Vem que a gente te mata.

 

Mata-Macunaíma

Mata-Muiraquitã

Mata-Mãe d’Água

Mata-Cunhatã

Mata-Maria da Penha

Mata-Prenha

de Amor

Mata-Marielle,

Mata-Mais amor

Mata Viva

Máxima

Mata Atlantica,

Amazônica,

pantaneira,

Atávica-Mata

Mata-Zumbi

Mata-Marighella

 

- Eu recuso a chama sinistra de quem me incendiou.

 

 

 

JAULA

 

Do fundo da jaula

duzentos milhões de almas

na falta de uma rapadura

roem a aba do espírito nacional,

O espírito festivo, acolhedor, unívoco

celebra a morte

na falta da possibilidade de escolher

viver

no país,

ilhéu

ou bolha

que se chamou outrora

a Terra de Vera Cruz.

 

À míngua,

morde o cachorro

a língua.

 

Menina, você lambe as cinzas do tempo,

Por dentro você roi os dias que lhe habitam.

Do fundo dos olhos do massacre

do fundo da boca violada

da memória ferida

ouve-se

como grita a minha alma enforcada na minha tripa.

 

Eu sou a mera repetição

- a angústia de dizer o mesmo.

Eu sou o tempo que se copia.

Aqui morrem mil por dia.

Aqui morrem mil

Aqui vivemos sempre o mesmo

A entropia.

 

Eu sou o fim da esperança

e da nostalgia.

Eu sou o inimigo que você escolheu para lhe matar.

Minha boca cheia de lamentos

repete-se no tempo que não passa

Eu sou a miséria sem cachaça.

A queda do meu corpo na calçada.

Abri mão das esperanças,

vós que entrais

na jaula nacional.

 

Quanto tempo mais?

Não tarda.

Quanto tempo ainda?

Não finda.

Quanto tempo agora?

A hora zero.

 

Grite cada um dos seus ais

você não representa nada.

Mais nada. É fria a manhã.

Silenciosa a rua.

Os homens de bem foram trabalhar.

Os homens pobres morreram de frio.

As mulheres violentadas no confessionário.

As mulheres não vão poder falar.

Você vaga entre carcaças nuas

no dia mil do massacre.

 

Ainda tarda. Hora zero. Não finda.

 

No dia seguinte se celebra:

o trabalho liberta.

Você não quer entrar?

Ativa os músculos, libera as endorfinas.

Não quer entrar mesmo?

No dia mil e um do massacre

eu era magro e o forno ardia.

O meu líder dizia:

pode entrar, de peito aberto,

seu destemor salva minha família.

 

Terra de Maricas não mais, ele dizia.

Porque aqui se chama ainda

a terra do Pau Brasil.

Você viu?

Estupra-se ante o olhar complacente

do juiz.

Éramos o futuro.

Mas o Zweig meteu a bala na cabeça errada.

 

Não tarda agora

Não finda.

 

E você escolheu a dedo,

tão cedo,

o gatilho com a mão do inimigo.

 

Navegar era preciso

Um tiro certo vale mais,

Você disse.

 

Presidente, presidente,

eu me pergunto:

qual dos defuntos sou eu?

Minha cama na gaveta no IML

Minha família me liga e pergunta se sou eu na foto.

Não posso dizer, respondo,

porque não sei ao certo.

Já não sei ao menos

quem era seu na cena.

 

O juiz garante que sou eu,

mas me ressuscita para me meter na jaula.

Meritíssimo exala o espírito do tempo.

Corrói-me por dentro a mesma risada.

 

Não finda,

Não tarda

 

O magistrado enquanto julga pisa

na placenta da minha alma

enforcada na minha tripa.

 

 

 

 

FALO SOZINHO

 

Brasil, a rua é perigosa.

O morador de rua é perigoso

O comunismo é perigoso.

Os artistas são perigosos.

Só eu não sou perigoso.

 

Brasil, eu falo sozinho com você enquanto a turba se agita.

Brasil, estou praticando a tautologia para a fraternidade do Alzheimer.

Vivo e escrevo poesia como quem entrega panfletos na chuva

e consola a viúva com promessas de juventude.

 

Brasil,

Boas festas

- não tem festas

Brasil, boa sorte

- não tem sorte

Está tudo bem?

- não está.

Brasil, esse é o resumo de todos os meus natais.

 

Brasil, você abriu mão da negritude ou foi o Sargentelli?

Brasil, você escolheu saudar Queiroz e os querubins

e no dia do natal não sabia quem colocar em seu presépio.

 

Brasil, porque depois de dois anos eu ainda não posso assistir Marighella no cinema?

Brasil, você abriu mão da política ou foi só o jornal que demitiu todo mundo?

O seu sorriso zumbi depõe contra nossa alegria congelada

em baixos teores de sódio indicada a dietas poucos calóricas

sem adição de conservantes, para celíacos, diabéticos e eleitores do Amoedo.

 

Brasil, você viu como os belos corpos marrons aguentam nos refrigeradores?

Ando pensando em criar uma central de congelamento aos parentes saudosos.

Brasil, estamos novamente entrando na Roda Viva.

Daqui não sairemos nem para ir ao hospital.

 

Brasil, não há vagas no mar nem nos leitos da Amazônia.

Amontoam-se corpos no balcão de empregos

e já nem sei quem controla as senhas.

 

Brasil, a Folha de São Paulo publicou mais um editorial dizendo basta

e no caderno seguinte tinha uma bela reportagem falando do novo normal.

Brasil, meu colega da universidade insistiu que daqui por diante é cada um por si

e se cagou inteiro quando chegou a Polícia.

 

Brasil, os negros estão cavando suas covas,

As balas estão encontrando suas costas.

Haverá chumbo o bastante para toda a carne nossa?

 

Brasil, hoje eu vi no jornal que a cada hora que passa morre mais gente

e logo o adsense me interrompe para perguntar se não quero aumentar meu pênis.

Brasil, quanto de pênis é preciso para ser um cidadão mediano?

 

Brasil, eu acho realmente que o presidente não deveria ser mantido vivo.

Se ele fosse o meu cachorro eu pediria ao veterinário para sacrificá-lo.

Faríamos uma bela cerimônia de cremação e acabaríamos com essa agonia lenta.

 

Brasil, trezentos reais de auxílio emergencial e vacina para todos só daqui a dezesseis meses.

Se eu não conhecesse nossos mortos, poderia dizer que eles foram inventados.

Brasil, cada corpo que tomba diminui a minha expectativa de vida.

 

Eu estou apostando perante todos aqueles que me ouvem na chuva

que o ano que vem vai ser ainda pior e seremos esmagados como pessoas brasileiras.

Brasil, meu estoque de metáforas ficou estocado num armazém sujo.

 

Brasil, é tarde demais para sua culpa cristã

e todo dia me lembro da Hebe Camargo dizendo que não é preciso uma língua estrangeira se você puder chacoalhar seu cartão de crédito na fuça de um gringo.

 

Brasil, eu apagaria as luzes se pudesse mas já nada brilha por aqui.

 

 

Nota: os três poemas fazem parte do projeto Necromancia Tropical, publicado em Portugal pela editora Douda Correria em 2021 e ainda inédito no Brasil.

© 2019 - Revista Literária Pixé.

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