Wanderley Wasconcelos
É um poeta nascido na cidade mato-grossense de Torixoréu. Graduado em Comunicação e Artes pela Universidade Federal de Uberlândia, iniciou sua carreira literária na década de 80, período em que liderou o coletivo União dos Poetas do Médio Araguaia (UnPoema). Tendo publicado cinco livros de poesia: Um Drink em Linha Reta, Aboio: Causos da vida posseira, Viagem Nua, Cordel Sem Viola e Legado Oculto. O escritor possui, também. uma série de livros inéditos como o romance Beco das Almas, o livro de poemas Noites no Retiro e a coletânea de contos Tukaneia.
RELÍQUIAS
Como se fosse escória
minha mãe deixou-me um baú
suspenso na indolência do tempo.
Ali dentro havia ampolas de penicilina
e uma caixa de aviamentos.
No álbum, a foto de seu filho
segurando uma lanterna apagada.
de certo para alumiar o mundo!
OBTUÁRIO
Duas tábuas aparelhadas
amparam a tralha guardada
nesse baú de Lazina
por sina amarga deixada.
Mofados de seus pertences
segredos expostos, imolados.
Rendas com traços cobertos
Cobrem um vestido engomado.
Aquela peça de ramos,
então, que seu corpo aquecia
(plissado em vincos profundos)
hoje dorme em tumba fria.
ESPERA
Espero um homem na cancela
que desça de seu cavalo
e que me afague em seu colo.
A doçura daqueles dias
umedecem estes meus olhos
e minha face envergonhada
que a vida moldou seu rumo
para engolir tempestades.
CHEGADA
Vindo do campo a cavalo
o que trazia meu pai além daquela tarde?
Trazia cantares, seu aboio,
tangia gado, solidão e nosso orgulho
de sermos dois naquela gleba.
Ele viúvo, vaqueiro, valente.
E seu filho a laçar tristezas somente.
ABOIO EMBORA
Maria Ferreira
dona do Capão da Bacaba
é nome de gente que se assenta
por ser forte, de ferro,
com restos feitos gerais
e silêncio do falar.
Em sua casaberta
anjos invisíveis tropeçavam
ao seu dispor para fazer o bem.
O seu colo materno afagou
uma centena de órfãos
filhos de outros desterrados.
- Não é, Raimundo?
Precoce, aos setenta anos,
sem nenhum enfado de fazer o bem
Nosso Senhor (em Goiânia)
bateu a campainha
do chamado inevitável.
-Presente, Nosso Senhor!
Teria dito com voz
de quem veio ao mundo
e não deixou partilha
por causa do latifúndio.
FUGA
Grande culto no Bairro Campinas.
O pregador leu a sentença,
ergueu o braço
com um livro feito pássaro
sobre nossa cabeças.
Representante da corte celestial
Ele disse de nosso Fim
caso não nos entregássemos
aos cuidados de sua fé.
Na rua, Tia Janu apertou meu braço
Para dar seu consolo:
- Se a coisa apertar, filho,
A gente atravessa para Goiás
FOTO 3X4
Discorro o cerco
ao rumo incerto
em que me perco.
viver é agora
todo o resto
joguei fora.
ABOIO FINAL
Cá, em minha observância
acompanho o morrer de um abacateiro.
A folha amarela despenca de modo calado.
Pedi a Nosso Senhor Jesus Cristo
que quero assim, com jeito,
contando os dias e lentas encenações
das coisas, gentes e bichos.
Devagar e não de repente.
Quero tempo para a despedida
porque vivendo (só vivo)
e não tenho tempo para adeuses.
ABOIO MENINO
O que é a vida, meu filho?
Teus óculos, teus olhos imprimem
uma resposta abstrata.
Estamos sós, somos dois homens
e temo absurdamente pelos teus pés.
A minha geração foi maluca
e olhando assim para você,
vestido em sua juventude,
não ouso pensar em caduquice.
Com você renovei meus dias
e os teus filhos renovarão os teus
e, assim, a eternidade baterá
à nossa porta, sempre.
REFLEXOS
O sol fervilhava em Doze de Junho
e os doces do carro grunhiam
no carrear da cana.
Numa ladeira
mulheres desciam para o ribeirão.
As crianças brincavam no grande terreiro
e não cansávamos de olhar no vaquejador
por onde viria meu avô Ursulino.
Agrupadas em pencas
douradas limas
roçavam o chão
(como se fossem de ouro)
brotados dos galhos.
Adiante,
uma latada de maracujás se abria
em flores e frutos,
se abria em vida.
À noite,
o escuro escupia sonhos
de uma manhã seguinte
para uma terra sonhada,
mas que nos fora roubada.
SILÊNCIO COM PEQUI
Virgem Marina
Cheia de graça
de carne e osso
Que tropeçou na vida.
Crescida entre irmãos
pouco disse ao mundo,
engolindo sofreres
pelos cantos da casa.
Magra, como uma vara,
poucos apostavam
no seu destino.
Marina cresceu
Deus lhe deu dois mamilos
tímidos como seus olhos
que nunca deram à janela
em busca de pretendentes.
“Dia virá”
uma voz lhe dizia
e o condão duma Fada Mesquinha
apontou-lhe um príncipe:
Geraldo Alto.
O feitiço segurou
Marina pelo pulso.
A Prefeitura assentou-lhes
em um lote perdido.
Fizemos o barraco,
cobrimos de palha,
levantamos um fogão goiano.
Era sábado, Dia Santo
e Geraldo Alto vestiu
seu terno de linho para o enlace.
As palavras do juiz
denunciaram a idade entre ambos:
ele mais velho trinta anos.
[olhos vexados
sob uma estampa
de Jesus crucificado
(impassível)
ao destino dos nubentes.]
Fui escolhido por Marina
para ser seu padrinho.
Juntei Cruzeiros
e dei-lhe um corte de cetim.
Vi Marina, repetidas vezes,
dentro daquele vestido
ao lado de Geraldo Alto.
Enquanto isso,
toda a vila cobrava
a intimidade do casal
Que perecia alheio
“às cousas deste mundo”
como dizia Geraldo Alto.
Nove meses em ponto,
nove anos e nenhum rebento.
Geraldo Alto deixou Marina
sem herdeiros para a divisão
universal de seus bens.
Anos depois
A Fada Mesquinha apontou
um novo amor para Marina.
Marina
Que talvez cozinhe Silêncio
com pequi
Em seu fogão goiano.
SEMENTES DA GLEBA
Parte de minha infância deixei na gleba
Ali plantei árvores, colhi sementeiras,
ordenhei uma dezena de vacas
e criei porcos com meu pai goiano.
Apesar do subemprego
ainda me sobra tempo para o sonho.
Fecho os olhos
e nossa gleba vive.
Se eu fosse funcionário público
mandava botar um retrato
desse passado na parede.
Neste presente não sou nada,
Mas planto bombas no jardim.
RONCADOR
Cerca-me a serra
e cerco-me.
E nesta serra,
em seus labirintos
encerro-me.
ABOIO URBANO
Theodomiro morreu de acidente
E a surpresa provocou ultraje
à parentela.
Uma família de quase mudos
a de Theodomiro.
Naquele átimo
Mandaram chamar Baiano
que nos quatro alto-falantes
gritou seu nome (Theodomiro!)
para que todos soubessem
de sua passagem miúda
entre nós, sobreviventes.
MAL DO PEITO
Seus olhos compridos me recebiam na porta
Suas mãos seguravam a tigela de sopa
E depois uma delas, trêmula,
Conduzia a colher à boca de ossos.
Eu ficava de longe
Esperando aquele Hans Castorp
E pensava na Madrinha
a me pedir encarecida
que não me encostasse na cama
por si tratar de mal sem cura.
De volta pra casa
Eu despejava as sobras às formigas
E daí restou-me para sempre
a incerteza de saber se formigas,
magrinhas, sofrem de mal do peito.
CEDRO DO LIBANO
Na visita de meses que fizera à sua terra
o libanês trouxe-nos o menino Salim
para vencer na América, vender tecidos,
aprender a língua do Novo Mundo.
Semanas depois de sua estada entre nós
Salim enunciou sua primeira frase:
“Pota q Paril!”
CONFISSÃO
Quando menino brinquei,
Vendi bolo de arroz.
Um tabuleiro infeliz
Coroava meus sonhos todos.
Fui mercador de águas,
me afoguei em quermesses,
li romances obscenos,
fui sacristão, escravo,
peguei em bundas de moças,
ri do mal feito, soltei pipas,
joguei finca, pião,
pedi emprestado, não paguei,
e joguei pedras de estilingue.
....e só depois de engrossar a voz
deixei estes mistérios gozosos.
LATITUDE
Naquela infância
me apareceu um menino zambeta,
de pernas finas.
Sem mais rodeios, era aleijado,
no dizer alheio.
Ele rompia as ruas de Balizinha,
assim, meio de cócoras,
com as mãos postas num caixote
que lhe servia de calço,
de amparo aos saltos de então.
A gente brincava, Lázaro,
e a vida era bonita demais.
Sentados os dois naquele caixote
riamos de outros meninos
e a gente nem sabia
da existência da merda do Estado.
TRAVESSIA
Desenho um rosto
num rio de letras
ao sol-posto
Peso&calibre
pedras no bolso
Virgínia Woolf
LEGADO
Pagino blocos
letras miúdas
do Legado Oculto.
Compulso páginas
Escarafunchadas
Da passagem incógnita
Resoluto.
OCULTO
Não sou pétalas de lógica,
mas o incógnito ser entre o bosque
e um filete mínimo de cheiro nativo.
Suponho a construção do silêncio e
Minhas sandálias rastejam o chão.
Para depois das barrancas ainda há sol,
espreito a tarde, o imaginário.
Depois sigo dentro da noite no rumo de casa.
LARGO DA MEMÓRIA
Sobre esta mesa deponho meus rabiscos
Uma candeia de memória ao meu sorriso,
Obelisco acidental, aquém de meus pensares.
Dista o caminho além de voares e vãos,
a Praça da Memória, a cerca apodrecida,
um campanário, a ruazinha, a colina,
a caminhada, a própria vida adiada.
DEVOÇÃO
A gente simples de Balizinha
É dada à missa aos domingos.
A igreja recende a colônias,
Segredos, amores, dízimos.
Padre Gino ergue o cálice,
vejo a saia plissada da madrinha,
o terço bento da cartorária Petita,
a blusa em brocada de Dona Palmira,
as professoras Hilda e Corinta,
Dona Brecholina de Seu Genezinho.
Lá fora uma solidão dos diabos
correndo no meio do redemoinho.
QUÍMICA
Meu avô era tímido, mas não amuado.
Seu riso difícil clareava depois de dois tragos
saídos do alambique de Doze de Junho.
Minha avó sentia também suas alegrias
Do fogo que brotava do nosso canavial.
BAGAÇO
Quarar de lençóis
à ramagem florida do ribeirão
o cantar de galos na tarde insólita,
carro de bois, a Mata do Cambuí,
o andar no escuro de minha avó
e a moenda do engenho
que fez disso tudo bagaço
VISÕES
Metrificada a solidão
a quem pusesse olhar
viria estendido um soneto
para depois do ribeirão.
Viria nuvens passando
Naus escuras navegando
e um anjinho de nada
um elefante empurrando
e Nosso Senhor sisudo
nossos pecados ralhando.
Fazia tarde no mundo
todos os beirais sombreados
e Ela avó assentada
ouvindo o falar de gente
que tudo via ao seu modo
(exceto seus pensamentos)
lambidos pelo escuro
que só os cegos que sentem.
AUTO-AJUDA
E se fecharem
a estreita porta
eu lanço mão
do pé-de-cabra
para vencer
a caminhada
VISÕES
Trago ao alcance das mãos
os buritizais que tecem de modo
imperioso
a passagem do vento e da música
que não ouço e a lembrança
vazia
de currais de gado
ausência pretérita de mugidos
e de uma cancela aberta – para
sempre.
BUSCA
Passo por homens que passam
São objetos, não conhecem retorno.
Seguem o caminho dado
segurando o presente pela cauda.
Quanto a mim
sigo tangendo coisas
os trens do meu passado
e envergando na alma
aquele orgulho besta
de que falava o poeta.
OUVINDO
A vizinha pretende matricular-se no supletivo
e reconquistar seu tempo perdido.
A vizinha ouve repetidamente os Rolling Stones.
Minha galinha também ouve os Rolling Stones
e cata migalhas invisíveis no chão.
Minha galinha ouve repetidamente os Rolling Stones
e por certo desconhece a gula dos nobres.
Eu também ouço os Rolling Stones
E acaricio um reumatismo no joelho esquerdo.
LONGE DE DUBLIN
O cheiro disperso de jaca apodrecida
corrói os sombrios quintais Torixorinos.
A madrinha doceira está urdindo
e canta tão longe de Dublin.
Dublin não urde para a madrinha
E a madrinha inexiste para Dublin.
No velho beiral figura uma tabuleta
do nosso culto fecundo: “Vende-se”
vendemos de tudo
exceto nossa alma cigana.
Sua arte de jovem doceira
ultrapassa as fronteiras da cidade.
Apesar do renome
a doceira ainda tece
ladainhas para o Senhor São Lázaro
dos cães famintos para a madrinha
dos cães famintos para Dublin.
Em dia de festa empunhamos copos
em círculo, ressaca e vida dominical.
Resignados
ouvimos os solfejos lúgubres
Da consagrada Jazz Band Baliza
longe, muito longe de Dublin.
ATENTO AO PUDOR
Sem meta
a Metáfora disse ao Poeta:
Meta!
PENITENTE
Agosto transcorre e transpira
o rio seco, páginas, caminhos.
Leio Virgílio, uma palavra única,
o formato de mar e céu,
uma rede que balança as vagas.
Leio, suspiro, divago, imprimo
o capricho de não ser amargo.
GOIVA
Tento em um rasgo de memória
esculpir tua face de veludo e sombra.
Estabeleço entre vontades e saber
a dimensão profana deste pátio
onde incito meu instinto de pássaro
a modelar certa torre e um poente,
uma encosta, um sopro ausente
de outra face, a tua, mulher nua.
FEVEREIRO,1966
O cadáver de Dão Úrsulo sobre o banco
ignora sombras que transitam pela sala.
Lá fora, a mata é surrada pela chuva,
os cães dormitam no beiral da cozinha.
Meu tio Santa Rita dita cartas à parentela
e por conta da emoção pulsante ele filosofa.
À irmã Alicinha, ele diz que a vida é assim.
Ao cunhado, ele vacila entre tormento e a dor.
Na oficina martelam o silêncio com modos,
minha avó soluça, indaga, responde e maldiz.
“A vida é cruel”. Santa Rita termina uma das cartas.
(Inédito Noites no Retiro)