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Túlio Paniago Vilela
Foi selecionado no Prêmio Pixé de Literatura. 

A LÍNGUA DO LIQUIDIFICADOR

I

Talvez seja prudente avisar de antemão que isto não é um conto propriamente dito. Conto, segundo definição de dicionário, se caracteriza por ser uma narrativa ficcional breve, concisa, em prosa, contendo um só conflito, unidade de tempo e número restrito de personagens. Para começo de conversa, esta história aconteceu de verdade, e não por acaso, quando rememorada e racionalizada para ser estruturada e expressa em palavras escritas, fora construída na primeira pessoa do singular. E o “eu”, neste caso, não é somente o personagem que vivencia a ação, mas também o autor. Eu mesmo, Antunes Gomes, o que impossibilita que “A Língua do Liquidificar” concorra em qualquer concurso literário, uma vez que é proibido citar o autor no corpo do texto para não influenciar a decisão do júri. Todavia, levando em consideração a insignificância do meu nome, qualquer possibilidade de me beneficiar disso seria nula, de modo que isso pouco importa, além, é claro, da duvidosa qualidade desta prosa. Ademais este verborrágico primeiro parágrafo está impregnado de metalinguagem. Detesto metalinguagem, assim como primeiros parágrafos, portanto, na ausência de justificativas mais razoáveis, optei por comprimi-los neste espaço como uma espécie de vingança pessoal.
Entendo bem de amontar palavras sem palavras no sentido que estou criando; sou jornalista. Dizem que o jornalismo é uma profissão quando na verdade é uma linguagem. E uma linguagem cujos códigos são pura e simplesmente, com raríssimas exceções, técnicos. Um professor, possivelmente darwinista, jurava que qualquer macaco bem adestrado seria capaz de produzir uma notícia. Creio que haja um pouco de injustiça nesta comparação. Afinal, ainda que insistamos em adestra-los, macacos têm certas prioridades vitais que os impedem de se dedicar às trivialidades das quais nos ocupamos.  As máquinas, sim, estas podem, e inclusive com mais eficiência e produtividade. Desprovidos de qualquer pulsão de vida, já existem robôs capazes de produzir até 30 mil notícias por mês. Li isso numa notícia produzida por sei lá que tipo de mente ou software.


Notícia, como se vê, é um bem que se produz e se consome em série. Não tem natureza humana, mas de objeto. Não é mais nem menos coisa que um alicate, um copo, um peso de papel ou um liquidificador. Possui, como todas estas coisas, uma essência utilitarista. E dentre outras disfunções, tem como uma de suas principais finalidades a tendência à redução. Reduz a imensurável complexidade humana à ideia de que tudo seria factual, apreensível e explicável seguindo um raciocínio raso de causalidade.


E muitos jornalistas, como fossem notícias, se constituem a partir de semelhante lógica, tornando-se técnicos, frios e superficiais. Estes já não são gerados, são produzidos em série; perderam a capacidade de se expressar, apenas informam. E mesmo na suposta informalidade de suas relações pessoais, não se permitem à abolição do plural, a supressão das demais concordâncias e ao descompromissado uso de vocábulos. Conservadores; tapam os ouvidos aos dialetos que (in)surgem das ruas. Puritanos; combatem as gírias que em orgias transam novas semânticas. Se transmutaram em linguagem, porém não se permitem à língua no seu sentido de saliva e carne. Quem sabe um dia produzam 30 mil notícias por mês, não duvido...


Embora isto seja um fato, não é notícia. É só um pretenso conto ainda sem cara de conto. E também pouco importa cara quando o corpo é aleijado. Todo mutilado, arranquei-lhe os membros que não me convinham. Ficou algo sem pé nem cabeça. Pronto. Já chega dessa metalinguagem barata. Antes de qualquer coisa, Antunes Gomes nem sequer existe. Meu nome é Soraya Lemos. Inventei esse pseudônimo masculino para que ele assumisse minha insignificância. Prefiro ser desconhecida assim, enquanto homem. No mais, também sou jornalista, talvez um pouco menos pessimista, pero no mucho. Espero que este rompimento com a expectativa não quebre o ritmo da narrativa. Não há nada mais pobre do que rima em prosa. Relaxa e goza, antes estrutura do que estilo, aliás estrutura forma conteúdo, contudo, conteúdo reforma estrutura? Fica a reflexão... Admito a falta de coesão. Sinto que essa prosa arrastada, essa troca na perspectiva de autoria, essas digressões, arbitrárias, enfim, tudo conflui em pontas soltas. E o que se amarra, de tão embaraçado, se apresenta como farpas de um arame. Aliás, se as farpas se embaraçam em nós, o que sabe a cerca acerca dos nós? Quanta pretensão pensar em prosa poética quando nem sequer foi estabelecido o incidente que dispara o conflito. O leitor, em linhas gerais está condicionado pelo cinema americano, e este texto está muito Tarkovski. Se isto fosse cinema, a sessão estaria vazia antes de completar meia hora de filme.


Pois bem, pensando na bilheteria, é melhor mudar a estratégia. Façamos de conta que este conto começa agora. Sinto falta de uma amarração que sustente tal ruptura. Que seja, sigamos a fórmula do cinema americano: tudo se conecta desde que se consiga estabelecer elos. Entretanto, mesmo que estes elos me soem satisfatórios, ainda dependeriam do sentido que se estabelece entre o que escrevo e o que se lê. Embora não seja a intenção tudo isso parece encheção de linguiça.  E também se fosse, qual o problema? Isto não é notícia. Não tenho compromisso com a pressa ou interesse do leitor. Aprecio uma linguagem verborragicamente literária, uma prosa situada na zona da fronteira prolixamente poética. Mas asseguro que não falo e jamais falaria desta maneira. As palavras em minha boca são vivas e me queimam os lábios, de modo que seria impossível organizá-las com delicadeza como quando as arranjo no papel. Palavras no papel são póstumas, porém cadáveres floreados, limpos, assépticos e acomodados em cemitérios com uma boa noção de urbanismo. E assim como é impossível sustentar um velório sem morto, também não há conto que se sustente sem conflito. Pois bem, o copo do liquidificar quebrou. É isso, eis o conflito. Não me julgue, não existem conflitos menores, tudo depende de como as personagens – no caso eu – se relacionam com eles. Enfim, seja como for, agora ao menos temos algo de conto.

II

Ontem sai com o propósito de conseguir um novo copo. Andei até uma lojinha que só vende coisas de liquidificador, como fosse uma banca que só vende notícias, típicos comércios de produtos em série. Disse que precisava de um novo copo. O vendedor esboçou um riso contido debochando da minha evidente ignorância sobre o assunto e perguntou o modelo. Dos que liquidificam, pensei. Sei lá, respondi. Já sem conter o riso, explicou ser necessário o modelo para conseguir o copo. Caso eu fosse uma pessoa prática, teria anotado o modelo e a marca, teria inclusive tirado uma foto e até levado a peça quebrada. No entanto nem pensei nisso, porque na minha cabeça liquidificadores são todos iguais, assim como os carros, os shoppings e os aeroportos.

 

Na volta para casa, sem conseguir o objeto que motivou minha saída, fiz um caminho diferente. Tinha até esquecido que era dia de feira. Caminhei sem pressa pelos amontoados corredores. Provei amostras grátis, observei os olhos vidrados dos peixes mortos para escolher o mais fresco, comprei mangas e abacates maduros. Só me dei conta de que o tempo fechou quando já chuviscava. Me abriguei na barraca de cebolas. A feira se esvaziou em meio à correria dos feirantes que recolhiam os produtos enquanto a chuva engrossava. A vendedora, uma senhora simpática, recolhia caixas quando percebeu minha presença. É como se fosse teatro, disse. Devo ter feito cara de quem não entendeu. A feira complementou. Dei uma risada meio boba para retribuir a simpatia, embora continuasse sem compreender. Ela encaixou um encosto de madeira sob o suporte da barraca e realocou a armação para que a  lona permanecesse rígida e não acumulasse água. Aqui todo dia é algo novo, nunca dá pra saber o que vai acontecer, tem que improvisar, arrematou a senhora. A harmonia suscitada entre suas palavras e atos reverberou prosa poética em seu mais puro estado. E poesia à luz do dia, ainda que chuvoso, vindo assim do nada, sem qualquer aviso prévio, de bocas desconhecidas e de suportes de barracas, costuma embasbacar os desavisados e desconsertar os práticos, de modo que, naquela insólita manhã, a ordem do dia fora integralmente abalada e pouco a pouco o cheiro úmido de poesia inundava minhas narinas. Senti a insustentável leveza do absurdo desnortear o espaço e dilatar o tempo.


Ao emudecer, revelei minha fascinação. Não se tratava de um assunto como outros, nem sequer uma conversa, não tinha início ou fim, se fazia pelos meios. A senhora emendou sobre um homem apressado que nunca parava. Um dia a pressa fez com que esquecesse o guarda-chuva em casa. Veio um temporal e ele teve que se abrigar embaixo de uma arvore. Como a chuva era contínua, teve que permanecer por muito tempo, até enraizar os pensamentos. Então notou que os pássaros também se abrigavam ali e concebeu a árvore como um grande guarda-chuva enraizado. Meditou mais um pouco e compreendeu o guarda-chuva como uma árvore sem raízes. Uma árvore, portanto, morta. Concluiu que o guarda-chuva não tem como finalidade proteger da chuva, e sim garantir o caminhar enquanto chove, logo é um instrumento da pressa. De imediato, ao reconhecer a árvore como sua única proteção possível, se tornou pássaro. Ela sorriu ao terminar a história. É chuva de primavera pra germinar as sementes, disse olhando para o céu. Ainda é inverno, pontuei. Mas a chuva é de primavera, concluiu. Qual o fim daquilo que se encerra pelos meios?

III

A poesia de ontem ainda se liquidifica em mim, todavia sigo sem copo. Voltei à loja esta manhã. O vendedor, após mais um sorriso debochado ao ler o papelzinho que lhe entreguei com o modelo e a marca, informou que aquele tipo está em falta, entretanto a encomenda fora feita e deve chegar o mais tardar na sexta-feira da semana seguinte. Caso fosse eu uma pessoa prática, quando estive na loja pela primeira vez, teria pego o número do estabelecimento e ligado para saber se aquele exemplar estava disponível no estoque. Enfim, tarde demais pra pensar nisso. Nasci desprovida de prática como robôs que escrevem três mil notícias por mês nascem desprovidos de vida. Sou desregulada de tempo e deslocada de espaço como jornais de ontem. Desajustada de prática e descabida de técnica. Porém não me queixo. Onde não caibo, transbordo. Sou mais liquida que sólida. Chuva é dona do próprio fluxo, é rio que flui sem margens. Todo mar deságua em mim. E se não cabe, transborda em lágrimas. Isso não é notícia, talvez nem conto, essa história aconteceu. Os dias, os incidentes, o liquidificador, o deboche, a chuva, a mulher da feira, a conversa... Aconteceu mesmo, isso é um fato inapelável, no entanto está sobreposto em camadas: 1- O que aconteceu; 2- o que interpretei e decifrei do que aconteceu; 3- como racionalizei e estruturei, neste conto, a minha interpretação do que aconteceu; 4- como o leitor se relaciona e absorve estas palavras que são o extrato do que racionalizei e estruturei daquilo que decifrei e interpretei do que realmente aconteceu. E é justamente neste ponto, nesta sobreposição de camadas, onde se conflui a realidade objetiva e a interpretação subjetiva, que sentidos e conexões são criadas.


Portanto não estou convencido da queda de uma árvore se ninguém a viu ou ouvir cair, e tampouco me convenço de que caiu porque alguém alega ter presenciado. Todo fato consumido é de fato consumado? Fato é que as versões se sobrepõem aos fatos. O que desacontece se não houver registro? Intuo que os fatos simplesmente são porque são. O que acontece e é registrado é notícia, cerca de 30 mil por mês por cada robô. Robôs são práticos e nunca morrem, mas mesmo uma eternidade seria insuficiente para que compreendessem uma metáfora.

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