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Thiago Costa 
É historiador. Faz doutorado em Estética e História da Arte pela USP. Autor de “O Brasil pitoresco de J.B. Debret ou Debret, artista-viajante” (RJ, 2016) e organizador – ao lado de Ariadne Marinho – de “O jardineiro de Napoleão. Alexander von Humboldt e as imagens de um Brasil/América (sécs. XVIII e XIX)” (Curitiba, 2019). Docente do IFMT – campus Fronteira Oeste/Pontes e Lacerda. 

LEPROSÁRIO 

Nuvens de poeira cobrem o céu, manchando o dia com aquela coloração encardida de chão de terra. De fim de garimpo. Eu fecho os olhos, mesmo detrás dos velhos óculos de sol, para que o pó não se misture ao pus da conjuntivite. A garganta está seca. As paredes de madeira estalam. As moscas polvilham meu corpo, minha boca, meus pés, minhas mãos cheias de calos. Sento na beirada da cama, com esforço, equilibrando-me sobre uma das nádegas para não ferir a hemorroida. Escuto passos na escada, no corredor, atrás da porta. Gotas de suor correm entre minhas pernas. Calor. As paredes estão empenadas, a madeira continua a estalar, o vidro se quebra. Acendo um cigarro e espero o fim do mundo. Ninguém resiste, nada resta, todos caem. Todos caem quando devem cair. Assim é. Desde o princípio. Os mais velhos morrem depois, os mais novos morrem primeiro. A janela está aberta, não há vento. A fumaça do cigarro fica suspensa no ar, estática, diluindo-se ao ambiente pouco a pouco. Morrendo. Eu também. Assim é. Nada sobrevive ao meu redor. 
Troco de posição e me sento sobre a outra nádega. Tenho câimbras. As úlceras no meu peito começam a fluir e o sangue borra o lençol e o colchão. Minha pele arde, queima, coça. Devem ser trezes horas passadas. O clarão da tarde brilha dentro do quarto iluminando os buracos no assoalho. Calor. Por um instante o silêncio. Hoje a noite será de festa: haverá danças, bebidas, mulheres. O perfume doce de raparigas em flor. Compra-se ouro. É o que diz a placa. Os homens esperam, eles não voltarão ao trabalho. Tenho vontade de sair, descer, ir para a rua, juntar-me aos outros. Recordar os tempos de garimpo. Aquela ânsia de vida e de morte. Costumávamos sequestrar as índias ainda meninas, fazíamos nossas escravas e amantes, com elas abastecíamos os puteiros da região. Os índios eram assassinados, mortos a pauladas, queimados vivos. Assim era. Antes da AIDS, da lepra e da tuberculose. 
Eu finjo que adormeço. Desperto com a tosse. Constante, profunda. Procuro a escarradeira. Está na boca. E fede. Um fedor antigo, que jamais se extingue. Assim será. Todos caem. Todos morrem. Menos eu. Eu nunca morrerei. 

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