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Thiago Costa 
É historiador. Faz doutorado em Estética e História da Arte pela USP. Autor de “O Brasil pitoresco de J.B. Debret ou Debret, artista-viajante” (RJ, 2016) e organizador – ao lado de Ariadne Marinho – de “O jardineiro de Napoleão. Alexander von Humboldt e as imagens de um Brasil/América (sécs. XVIII e XIX)” (Curitiba, 2019). Docente do IFMT – campus Fronteira Oeste/Pontes e Lacerda. 

Pensava em nada, em tudo, coisa alguma, nenhuma, em completo abandono da matéria, condição pura de espírito, habitando regiões extradimensionais, em êxtase, febril, braços trêmulos, pernas trêmulas, de ansiedades, fumava, frenético, freneticamente, em frenesi, camisa aberta no peito, suor seco, cheiro seco de corpo, sangue recente, recém coagulado, mais um na conta. Entrou um quinto de légua para dentro das fazendas de soja, plantações que bordejavam os limites urbanos, evitando a estrada, as distrações, outras mortes. Delirava. Pensamentos obscuros, raciocínio torto, olhar oblíquo. Fragmentos de figurações, realidades fragmentadas, ocas. Manchas acrônicas embargando a compreensão, a lucidez. Como retalhos, intrincados, meândricos, blocos de vácuo. Na distância, banhado pela escuridão morna do começo da noite, divisava o horizonte. Ao redor e adiante, os morros pré-históricos, serras vestigiais de atividade vulcânica, interior de oceanos geológicos, esquecidos no fundo do tempo. Via a cachoeira, sentia a umidade fresca no corpo, composição fluviosa, de coloração leitosa-escura, des-escalando o firmamento, rompendo as rochas máficas-ultramáficas, abrindo passagem desde a origem remota, serpenteando os subterrâneos, pela vegetação silvestre, mata crescida, árvores altas, ornamentais, frutíferas, jatobás, ipês, segmento geográfico próximo da extinção. Ruminações vagas, na indeterminação das coisas. Assim iam, unidos, fundindo-se, pouco a pouco, homem e bicho, o ser, o céu, a serra, o cerrado, como um, o animal e seus demônios, pelo silencioso caminho da névoa. Traçados de luz. Dos postes, das casas. Na indiferença do espaço. Aproximava-se da cidade. Ia pouco aos sítios civilizados. Quase nunca, raramente, só uma vez, ou mais, quem sabe, em idos antigos, recentes, muito antigamente, agora, outrora, no pretérito, no presente. Não lembrava. Esquecia. Eram todos em casa guardados com grande severidade pelo velhíssimo pai, de autoridade suprema, de inquestionável sabedoria, como segredos de nascença medonha, de enorme gravidade, sem permissão de revelação, tal o ocultamento de um crime hediondo, inaudito. Não sabia. Ignorava. Desprezava os pensamentos alheios. Ignorante. Ignorando. Era a mãe, a anciã, reunindo a soma das idades, a decifradora dos enigmas. Falava pela boca de voz única das irmãs gêmeas, Sara e Rebeca. Unidas pelo corpo, costuradas no ventre materno durante os rituais biológicos da concepção, condenadas ao perene ajuntamento. Era a mãe, pela boca indivisível das irmãs, que entendia os silêncios macrobiais do antiquíssimo pai. Mas naquele instante pouco importava, tudo era nada. Não tinha interesse. Interesse nenhum. Queria partir, cumprir seu destino, erigir um novo legado. Após concluir a transfiguração, a transmutação absoluta da massa corpórea, partículas quânticas em contínua interação, conversão de energia em energia, princípios da termodinâmica, a ampliação interminável da consciência, em perpétuo movimento, seria eterno, seria o sem terminação, o imperecível, em uma nova era. Alcançaria então o conhecimento antigo. O esclarecimento superior. Era Belial-Belzebu quem o conduzia pelos caminhos da consumação, pelos trechos interiores de cidade colonial vilabelense, quilombo santíssimo, de trilhas misteriosas, percorridas pelo pai antes de si, e pela mãe antes do pai, e por todos os seus doze filhos anteriores, todos irmãos, no começo da conjugação de tudo que existe.Pensava em nada, em tudo, coisa alguma, nenhuma, em completo abandono da matéria, condição pura de espírito, habitando regiões extradimensionais, em êxtase, febril, braços trêmulos, pernas trêmulas, de ansiedades, fumava, frenético, freneticamente, em frenesi, camisa aberta no peito, suor seco, cheiro seco de corpo, sangue recente, recém coagulado, mais um na conta. Entrou um quinto de légua para dentro das fazendas de soja, plantações que bordejavam os limites urbanos, evitando a estrada, as distrações, outras mortes. Delirava. Pensamentos obscuros, raciocínio torto, olhar oblíquo. Fragmentos de figurações, realidades fragmentadas, ocas. Manchas acrônicas embargando a compreensão, a lucidez. Como retalhos, intrincados, meândricos, blocos de vácuo. Na distância, banhado pela escuridão morna do começo da noite, divisava o horizonte. Ao redor e adiante, os morros pré-históricos, serras vestigiais de atividade vulcânica, interior de oceanos geológicos, esquecidos no fundo do tempo. Via a cachoeira, sentia a umidade fresca no corpo, composição fluviosa, de coloração leitosa-escura, des-escalando o firmamento, rompendo as rochas máficas-ultramáficas, abrindo passagem desde a origem remota, serpenteando os subterrâneos, pela vegetação silvestre, mata crescida, árvores altas, ornamentais, frutíferas, jatobás, ipês, segmento geográfico próximo da extinção. Ruminações vagas, na indeterminação das coisas. Assim iam, unidos, fundindo-se, pouco a pouco, homem e bicho, o ser, o céu, a serra, o cerrado, como um, o animal e seus demônios, pelo silencioso caminho da névoa. Traçados de luz. Dos postes, das casas. Na indiferença do espaço. Aproximava-se da cidade. Ia pouco aos sítios civilizados. Quase nunca, raramente, só uma vez, ou mais, quem sabe, em idos antigos, recentes, muito antigamente, agora, outrora, no pretérito, no presente. Não lembrava. Esquecia. Eram todos em casa guardados com grande severidade pelo velhíssimo pai, de autoridade suprema, de inquestionável sabedoria, como segredos de nascença medonha, de enorme gravidade, sem permissão de revelação, tal o ocultamento de um crime hediondo, inaudito. Não sabia. Ignorava. Desprezava os pensamentos alheios. Ignorante. Ignorando. Era a mãe, a anciã, reunindo a soma das idades, a decifradora dos enigmas. Falava pela boca de voz única das irmãs gêmeas, Sara e Rebeca. Unidas pelo corpo, costuradas no ventre materno durante os rituais biológicos da concepção, condenadas ao perene ajuntamento. Era a mãe, pela boca indivisível das irmãs, que entendia os silêncios macrobiais do antiquíssimo pai. Mas naquele instante pouco importava, tudo era nada. Não tinha interesse. Interesse nenhum. Queria partir, cumprir seu destino, erigir um novo legado. Após concluir a transfiguração, a transmutação absoluta da massa corpórea, partículas quânticas em contínua interação, conversão de energia em energia, princípios da termodinâmica, a ampliação interminável da consciência, em perpétuo movimento, seria eterno, seria o sem terminação, o imperecível, em uma nova era. Alcançaria então o conhecimento antigo. O esclarecimento superior. Era Belial-Belzebu quem o conduzia pelos caminhos da consumação, pelos trechos interiores de cidade colonial vilabelense, quilombo santíssimo, de trilhas misteriosas, percorridas pelo pai antes de si, e pela mãe antes do pai, e por todos os seus doze filhos anteriores, todos irmãos, no começo da conjugação de tudo que existe.

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