Thiago Costa
É historiador. Faz doutorado em Estética e História da Arte pela USP. Autor de “O Brasil pitoresco de J.B. Debret ou Debret, artista-viajante” (RJ, 2016) e organizador – ao lado de Ariadne Marinho – de “O jardineiro de Napoleão. Alexander von Humboldt e as imagens de um Brasil/América (sécs. XVIII e XIX)” (Curitiba, 2019). Docente do IFMT – campus Fronteira Oeste/Pontes e Lacerda.
NEM
Nem não era mulher. Nem nasceu homem, virou mulher pela força das circunstâncias. Filho último de sete irmãos, foi parido em algum lugar nos rincões do Mato Grosso. De mãe puta e pai desconhecido, cresceu entre o bordel e o garimpo. Costumava se banhar desnudo no rio junto às outras crianças. Brincava com as roupas da mãe, seus sapatos e maquiagem, de frente ao espelho, a cara toda pintada. Então todos riam de Nem. E todos riam de Nem, pois se não rissem de Nem provavelmente não ririam nunca. À noite desfilava escondido entre as mesas do pátio, observando o semblante duro de homens tristes e solitários que iam ter com as mulheres de vida difícil. Escutava os risos abafados na penumbra vermelha, a música alta, os gracejos, o pesado perfume, sem compreender aquilo que ardia em seu peito. Assim, de braços e o coração endurecidos, como devem ser os homens fortes, Nem cresceu e viveu o desejo de ser outra pessoa. Esperando sob os frondosos mangueirais na beira do rio, o Guaporé, o de Mortes, o de Saudades, de águas frias, escuras, que corria para qualquer lugar, talvez lugar nenhum, que nem a vida. Nem não era mulher, Nem nasceu homem. Virou mulher pela força das circunstâncias, quando os amigos e os amantes não souberam voltar dos caminhos que a vida traçou, quando o passado já não se afigurava como lembrança, mas apenas evocação poética.