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Taylane Cruz 
Mora em Aracaju, Sergipe. Escritora e jornalista formada pela Universidade Federal de Sergipe. É autora dos livros Aula de Dança e Outros Contos (contos), A pele das coisas (contos), O sol dos dias (contos) e Para a hora do coração na mão (crônicas). Já colaborou com diversas antologias pelo país, entre elas “Senhoras Obscenas”, “Golpe: uma antologia-manifesto” e “Para não esquecer: cinquenta autoras lésbicas e bissexuais hoje”. Atua ainda como palestrante e ministrando oficinas de escrita criativa em escolas, universidades e instituições culturais. Possui contos publicados em diversos sites e revistas de circulação nacional como Época e Palavra (Rede Sesc Sesc). Em 2020 e 2021, participou do Arte da Palavra (Rede SESC Brasil), considerado o maior circuito literário do país. 

A POMBA

“Não te lembro macia, mas pelo teu amor pesado eu me tornei uma imagem da tua carne

que já foi delicada partida em esperanças traiçoeiras… Mas eu descasquei a tua raiva até o cerne do amor”. 
(Audre Lorde)

Sabíamos do que Tereza era capaz. Vivíamos numa casa de mulheres e ela, a mais velha, era o vergalhão que mantinha tudo de pé. Nossa mãe, doente, que de tantas filhas envelheceu rapidamente como uma banana, já não dava conta. Por isso, era Tereza a mão de aço a defender o nosso pão. Eu amava Tereza sem saber que aquele pássaro que eu carregava dentro de mim era amor.  Venerava-a como se ela levitasse sobre nós, uma santa. Santa de espada e chicote à mão, pois era com rigor que nos adestrava. Vivia apegada às suas saias, me humilhando sem nenhuma vergonha por sua proteção, aceitava qualquer coisa que ela me desse, e o pouco que me dava já era alimento para o meu coração.
Era Tereza quem banhava as mais novinhas, esfregando-nos e ensaboando-nos sem gentilezas, os movimentos rudes e ágeis; penteava-nos, uma a uma, em fileira, e puxava nossos cabelos com tanta força que parecia arrancar raízes da terra. Eu tinha muito medo de perder a cabeça e segurava firme o pescoço quando chegava minha vez de ser penteada. Os cabelos encarapinhados, cheios de nós que ela desfazia habilidosa, o pente cantando entre os fios pretos. Ao final, nos colocava diante do espelho e eu, apaixonada, me sentia uma rainha, a cabeça desabrochada numa nuvem de borboletas. Ai daquela que reclamasse! Tereza dava logo um safanão, um beliscão de arrancar o couro, um tapa bem no meio da cara. Apanhamos tantas vezes de suas mãos. Surras de cinta, vara de bambu, bainha de facão. As mais espertas fugiam, se escondiam até sua raiva passar. As mais medrosas, entre elas eu, entregavam-se logo com medo de uma punição pior. Entregava-me ao sacrifício e a surra vinha em golpes impiedosos, palavrões que me marcavam mais do que a ponta de uma fivela. Tereza era habilidosa em castigar, sabia como ninguém colocar medo, nos fazer obedecer. Comandava aquela casa sem perder um instante de domínio. Era o tempo todo sua grande mão sobre nós ensinando-nos a arquitetura do cotidiano sem ternuras, guiando aquele bando de meninas por caminhos de pedra, quase sem nenhum carinho ou flor. Ainda assim eu a amava mesmo sem saber que aquele pássaro louco e faminto dentro de mim era amor. Passava o dia inteiro seguindo Tereza, franzina, abobalhada, a mais feinha das irmãs, quase muda, eu só sabia chorar e assoar o nariz com as costas das mãos. Era doente, mole das pernas, tinha desmaios misteriosos que Tereza, com as palmas das mãos, foi quem curou. Levou-me num terreiro certa manhã, Mãe Tita ao seu lado encantando e guiando as palavras, as ervas sobrevoando a minha cabeça, um cheiro mágico de alfazema e flor. Eu de olhos bem fechados, que para ficar de olhos bem fechados Tereza me ordenou. Mãe Tita explicava como se Tereza fosse sua aprendiz, eu ali sentadinha querendo desmaiar outra vez que os desmaios eram um, dois, três por dia. Era um mistério! Eu apagava assim como se apaga uma plantinha dormideira, ou como se apaga de repente uma luz. Mas desta vez Tereza não deixou. Com as palmas de suas mãos me banhou e, de repente, senti que eu era uma chama acesa. A cada toque das mãos de Tereza meu corpo acordava, eu querendo saltar, brincar. Mãe Tita sentenciou: “Agora essa menina não desmaia mais”. Saímos de lá alegres, Tereza sorrindo e era raro demais Tereza sorrir. 

 

“Vem comigo buscar alguma coisa pr’o almoço”, ela falou numa bifurcação, quando voltávamos do terreiro de Mãe Tita.

 

Ser convidada a ir com ela buscar comida era o mesmo que ser escolhida entre mil. Senti uma alegria tão grande que chegou a me machucar, era o pássaro dentro de mim querendo voar? Logo eu, a mais franzina de todas, a mais bobalhona, a mais medrosa, fui a escolhida. Aceitei e estufei o peito como se vestisse uma armadura. Tereza segurou minha mão e deu um puxão que quase arrancou meu braço magricela. Peregrinamos pelas ruas à cata de qualquer coisa, mas estava difícil arranjar algo que desse para todas nós. Desta vez, ela não queria restos, muxiba, batatas cheias de feridas que ganhava na feira. Queria nos dar algo mais substancioso, queria celebrar a minha cura com umas salsichas, um frango gordinho talvez. Havia dias em que Tereza voltava de mãos vazias e íamos todas dormir com as lombrigas brigando. Ai de quem reclamasse! Ela dava logo um grito, sua voz ribombante estourando as ripas e o telhado da casa feito um trovão.
Mas naquela manhã demos sorte. Tereza encontrou com seu Abel. Ele lhe disse para irmos até o seu quintal, pois havia algumas pombas e, se ela quisesse, poderiam negociar. Tereza seria capaz de tudo para não voltarmos para casa de mãos vazias. Éramos muitas meninas, muitas bocas para ela alimentar. Foi até o quintal de seu Abel, eu atrás farejando seus passos. Ele deu o preço. Tereza me pediu para esperar na porta. Fingi obedecer, mas era grande demais a tentação, então fiquei ali de tocaia, me esgueirando para não ser vista. Ela tentou negociar, pediu a seu Abel para ponderar afinal todas nós dependíamos dela para comer, se ele quisesse ela passava lá depois, lavava uma trouxa de roupa para ele, era lavadeira boa. Ele, irredutível, negociador ganancioso, não aceitou, o preço estava dado, era pegar ou não, e já foi tirando o cinto, crescendo diante dela como uma naja. De joelhos, ela pagou o preço exigido pela pomba. Eu espiava Tereza ali ajoelhada, Seu Abel de olhos fechados como um santo em estado de levitação. O pássaro que vivia dentro de mim sufocava, queria irromper do meu peito, arribar e pousar sua luz no coração de Tereza. Mas não deu tempo. A naja de Seu Abel cuspiu em Tereza, ele gritou, empurrou Tereza e o pássaro dentro de mim morreu.

Na volta para casa, durante todo o caminho eu a acompanhava silenciosa e claudicante. Na sacola de pano, a pomba se debatia tentando liberar-se da cordinha que, em apertado laço, amarrava seus pés e asas. Em casa, Tereza tirou a pomba da sacola de pano e sangrou-a no pescoço sobre a pia de cimento. Nós, as menores, fechamos os olhos deixando apenas uma fresta para espiar. A pomba espichou uma fita fina de sangue ao toque letal da faca, o pescoço pendeu molenga, os dois olhinhos abertos congelaram, o bico enrijeceu. Tereza limpou e depenou o animal com a mesma aspereza com que penteava nossos cabelos, puxando indiferente pena por pena. A cada pena arrancada colocávamos as mãos sobre a cabeça sentindo de perto a dor. Assou e serviu a pomba avisando que cada uma de nós poderia comer apenas um pedacinho. A pomba reluziu apetitosa, sua carne se abriu numinosa sobre a mesa. Tereza ordenou para que uma de nós começasse a oração. Lá em casa era assim, nenhuma côdea de pão entrava na boca antes de fazermos a oração. Eu, tartamuda, a mais bobalhona, fui a escolhida da vez. Tinha muito medo de errar, pois Tereza dava um tapa na boca de quem não dissesse bem as palavras, fazia questão de nos ensinar. Comecei: 

 

“Ó Virgem Santinha, mãezinha de todas nós, protege a cada uma, somos suas filhinhas, noivinhas castas e puras do Senhor. Amém”. 

Tereza ficou satisfeita, até me fez um carinho e elogiou minha habilidade com as palavras. Disse que, apesar de bobalhona, quem sabe um dia eu virava poeta. Recebi o elogio como um afago, sua mão quente fazendo uma carícia em mim. Partiu os pedaços, distribuiu-os entre todas nós. Esfomeadas, devoramos a pomba deixando sobre a mesa apenas os ossinhos que, de tão miúdos e finos, pareciam espinhos. Comemos com graça e amor, e só eu vi os espinhos espetando, sem piedade, a carne de Tereza, enquanto seus olhos pingavam sangue sobre a toalha branca da mesa. 

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