Tânia Bloomfield
É Doutora e Mestra em Geografia, pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Especializada em História da Arte do séc. XX, pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná - EMBAP. Graduada em Educação Artística, pela UFPR. Graduada em História, pela Universidade de Brasília - UnB. Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas - ANPAP. Professora do departamento de Artes da UFPR, desde 1998. Artista visual, com diversas exposições artísticas realizadas, no Brasil e no exterior. Pesquisadora com interesse voltado às interfaces entre os campos da Geografia e Artes Visuais, especialmente no que se refere às práticas artísticas no urbano e às linguagens artísticas contemporâneas.
COSMOCAOS, NO TRABALHO DE EMERSON PERSONA
A pintura de Emerson Persona é envolvente, sedutora, bonita de se ver. Esta afirmação abrange uma parte da verdade, ao se apreciar o trabalho do artista. A ligação do universo mental, seu partido conceitual e motivações, com a realização da pesquisa e prática artística de pintura, constitui-se como o cosmos poético de Persona. Como um hábil hipnotizador, o artista captura os olhares com a beleza estampada na superfície das telas, que vai cedendo lugar ao espanto, ao desconforto, ao choque e à reflexão.
Etimologicamente, a palavra cosmos se origina de kósmos, vocábulo pertencente à língua grega, e está relacionada com as ideias de organização, de ordem, de composição, de harmonia, de beleza. Os filósofos gregos da antiguidade já entendiam o Universo como um conjunto ordenado, em que matéria e energia seriam seus elementos constituintes. Em muitas situações cotidianas, a palavra cosmos é comumente substituída pela palavra Universo.
Outra palavra de origem grega, caos, é derivada de khaos, que originariamente estava relacionada à ideia de vazio, àquilo que existiria de forma etérea ou que preencheria o espaço entre a Terra e o céu cósmico. Caos também foi considerado na cultura grega antiga como o primeiro deus, de quem se originou o Universo.
Historicamente, diferentes significados foram sendo atribuídos a esse deus, mas, em geral, as ideias de paisagem primordial que antecede a criação e o fundamento material de tudo o que existe, de desordem, do que é informe, de desequilíbrio, são as que o representam. A paternidade de outros dois deuses, Destino e Eros, foi atribuída ao deus Caos. A mãe de Destino, um deus cego também conhecido como Moros, era a Noite ou Nyx, e esse deus detinha o futuro dos mortais em suas mãos. As Parcas executavam suas ordens, administrando as vidas de mulheres e homens, do nascimento à morte. Já o deus grego Eros, conhecido pelos romanos como Cupido, o deus do amor, em algumas versões foi derivado de Caos, e, em outras, foi fruto da ligação entre Ares ou Marte e Afrodite ou Vênus, deuses ligados à guerra e à beleza, respectivamente. A existência de Eros trouxe harmonia, ordem, união aos elementos do Universo e o ambiente propício à criação, em oposição a Caos, que representava a separação, o abismo, a quebra e a dispersão de formas por todo o cosmos. Antes de Eros, o caos. Mas as forças do caos estão presentes no início e no fim da ordem. Dialética e entropicamente, caos e cosmos coexistem.
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, em seu Dicionário de Símbolos, mencionam que, segundo o filósofo Mircea Elíade, o cosmos é o princípio de todo o fazer, de toda a prática, de toda a tentativa de criação ou de ordenação de formas. Já para o psicanalista Carl Jung, o sacrifício e o conflito, presentes em cosmogonias, sinalizam o esforço exigido no exercício da transformação da matéria em uma forma.
Na cosmogonia de Emerson Persona, todos esses princípios, contraditórios e conflituosos, encontram-se em sua pintura. Da temática ao uso das cores, à distribuição das formas pela superfície pictórica, pode-se verificar uma fricção de elementos díspares, de polaridades, de circunscrições em jogos antagônicos.
A princípio, o que parece saltar aos olhos imediatamente é a desconcertante harmonia registrada na ocorrência das cores, especialmente as complementares, trabalhadas em pinceladas controladas. A paleta apresentada na pintura, dada por esse atrito ótico, pode provocar a percepção de um perspectivismo, de uma profundidade de campo, em que determinadas formas são trazidas ao primeiro plano, enquanto outras, deslocadas para o fundo da pintura. Algumas pessoas chegam a relatar que determinados elementos do trabalho parecem flutuar em frente aos seus olhos, fora da pele do quadro, o que resulta em um efeito de tridimensionalidade, graças à zona fronteiriça entre uma e outra cor. O artifício da perspectiva aérea ou atmosférica na pintura é conhecido há séculos, cujo objetivo é o de segmentar os diferentes planos e distâncias que se sucedem na cena representada. No entanto, na pintura de Persona, essa perspectiva cromática assume uma função lúdica; captura o olhar, sem que haja a sugestão de uma paisagem. É um jogo erótico, de sedução, pelo qual o observador é fisgado tão logo se depara com a pintura. E não importa a escala do trabalho ora em questão, esse objetivo é sempre alcançado. A estratégia funciona sempre.
Mas o jogo continua em curso e não é dado somente pela pletora de cores. As formas são igualmente sedutoras e ganham maior ou menor potência com a anima cromática, além de denunciarem um embate entre os elementos que aludem ao orgânico, ao feminino, ao rotundo, às curvas gostosas e comestíveis, em contraste com o que representa o contundente, o espinhoso, o cortante, o fálico, a violência - física e simbólica -, por ameaça de intrusão, de desmembramento, de subordinação, de dispersão e de silenciamento. Nesse jogo, ora ganha relevo o figurativo, ora a abstração.
Para enfatizar a associação de oposições, de forças desproporcionais em conflito, o artista utiliza a figura conceitual do fragmento e do expediente da dispersão de elementos por toda a superfície pictórica, mas que, numa visada, somam-se em uma ordem precária, temporária. Contudo, a ordem que se vê ao final não é obtida em uma única sessão de trabalho, mas é compulsivamente retomada e retrabalhada em etapas sucessivas, em que o artista insere colagens - aportando texturas, rugosidades e baixos relevos -, produz cobrimentos, em grandes ou em pequenas áreas, com a sobreposição de cores chapadas sobre formas, cores e padrões anteriormente adicionados à tela.
Essa inteligência formal vem ao encontro das questões conceituais relativas às disputas sobre os diferentes códigos sociais de conduta, às intersubjetividades e aos intercâmbios realizados em espaços públicos e privados. A problemática de gênero, a violência de toda a ordem perpetrada por ideólogos da ignorância e seus acólitos contra minorias são, mais que motivações, preocupações que habitam o universo de Emerson Persona e que, de forma articulada e envolvente, ele faz emergir de sua pintura.
Diante do repertório figurativo do artista, em que as criaturas mal estão inteiras, arranjadas em formas fragmentadas, mutiladas, em situação de perturbadoras e dolorosas contorções corporais, em muitos casos, pode ocorrer o povoamento do imaginário com livres e psíquicas associações referentes à mitologia, especialmente à grega, mas também com as de matrizes africanas ou indígenas latino-americanas. Assim, a dimensão geopolítica, relacionada às questões etnocêntricas e colonialistas que institucionalizaram o trauma como um princípio fundador da sociedade brasileira e que alcançam a contemporaneidade, constitui-se como um elemento importante na cosmogonia de Persona.
Essas questões e preocupações transbordam o espaço pictórico do artista, que tem ido em busca de interação e de trocas com pessoas em situação de vulnerabilidade social. Em diversas ocasiões, Emerson Persona tem ministrado cursos, proferido palestras, se relacionado e negociado com instituições de atendimento a minorias ou a pessoas que possuem diferentes naturezas e graus de fragilidades. Dessa forma, o universo fantástico de Persona vai capturando e hipnotizando mais olhares, inclusive, daqueles para os quais só havia o caos de muralhas de empenas cegas e a falta de perspectivas na cidade. À semelhança de alguns olhos da mitologia particular do artista, esses olhos faíscam, se iluminam, ficam vidrados, se abrem para novas e possíveis visadas. Olham e são vistos.