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Sueli Gutierrez 
Nasceu em São Caetano do Sul, São Paulo. É formada em jornalismo pela Umesp e iniciou doutorado na Universidade Complutense de Madrid, Espanha, sendo obrigada a abandonar o curso por falta de bolsa de estudos do CNPQ. Após conclusão do curso de jornalismo, mudou-se para a Europa, onde morou na Espanha e na França por cerca de dez anos, e depois em Salvador, Bahia, por 12. De retorno a São Paulo, trabalhou em editora jurídica. Em razão da crise, a editora fechou as portas. Dessa ruptura, renasceu seu objetivo de escrever seus inventos. Em 1984 lançou o primeiro livro, independente, de poesia, “Um Pouco de Mim”. Em agosto de 2018, lançou e participou da 25ª Bienal Internacional do livro de São Paulo, com a obra infantojuvenil “Era uma vez, Conto outra vez”, ganhando o Troféu Mulheres Jornalistas, 2° lugar na categoria “Iniciativas de igualdade e gênero no jornalismo”. É membro do grupo Mulherio das Letras, do Núcleo de Escritores do ABC, da Academia Popular de Letras de São Caetano do Sul e da Rede Mulheres que Decidem.

ALTER EGO

Passei pelo corredor e cheguei ao lavabo. Estava numa instituição cultural cujos lavatórios são comuns para homens e mulheres. O espelho pegava toda a parede de cerca de quatro metros, separando os dois banheiros. Do lado oposto, na parede, havia duas máquinas de secar as mãos.


Postei-me diante do espelho, passando o fio dental entre os dentes, quando percebi a chegada de um rapaz alto, magro, de óculos redondos e vidro azul, que se posicionara às minhas costas secando as mãos no aparelho. 


Contrariamente a seu aspecto simples e modesto, seu alter ego tomava o elevador do Burj Khalifa, o maior edifício do mundo, em Dubay. Sentia-se tão autoconfiante que por um milésimo de segundo pensei tratar-se da reencarnação de John Lennon com aqueles óculos redondos e pequenos que viraram moda à época. Mas não. A atitude daquela presença era suspeita: não fora ao banheiro, não lavara as mãos, e mesmo assim estava com uma delas estirada no secador, de costas para a máquina secadora, olhando para o espelho em minha direção, de peito aberto como se estivesse se oferecendo. Estávamos apenas eu, ele e o espelho transmitindo códigos ou mensagens subliminares, que para mim tornaram-se incômodas. 


Baixei a cabeça para lavar os dentes e direcionei toda minha atenção para apenas um dos cinco sentidos: a audição, exclusivamente para aquele barulho do secador de mãos. Até então eu não tinha certeza se o que olhava era para seu ego inflado como um balão vislumbrando a imagem do que considerava ser poderoso e irresistível ou se sua fixação era eu.


Lavei os dentes, levantei para ver-me no espelho, quando tive a certeza. O rapaz havia tirado os óculos e seu olhar eram duas minhoquinhas nos anzóis querendo atrapar um peixe, acreditando que a mulher de meia idade, bonita, atraente e solitária estava à procura de uma aventura. Sim, ele se achava a presença masculina que tiraria o sono de qualquer mulher, seja inocente ou experiente. Talvez pensava em ganhar uns trocos também para enrolar-se nos imaculados lençóis carentes da pobre mulher solitária.


Assim permaneceu, olhando-me pelo espelho em tom provocativo e cheio de autoestima. Enquanto sentia-se a última bolacha do pacote, fez-me lembrar de um personagem de antigamente na televisão brasileira, o Zé Bonitinho, que era a caricatura de um homem usando gravata borboleta e uma roupa extravagante, um sedutor muito feio, porém cheio de autoestima. Tive vontade de rir, mas aquilo poderia ser interpretado como uma brecha para ele invadir ainda mais meu espaço.


Virei-me, então, para ele com cara de descontentamento e perguntei:


– O que é que você está olhando?


Minha reação não havia sido prevista por ele. Ficou desconcertado, mas logo se recompôs e disse:


– Estou olhando o espelho. O quê? Tá achando que olhava para uma velha como você? Deus me livre. 


Sentindo-se acuado, Zé Bonitinho fugiu para o banheiro.

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