Simone de Jesus Padilha
Nasceu em São Paulo em 1967, e vive em Cuiabá desde 1981. Formada em Letras, é professora do Departamento de Letras da UFMT e do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem. Doutora em Linguística Aplicada, é líder do Grupo de Pesquisa Relendo Bakhtin (REBAK). Apaixonada por literatura, música e artes em geral, escreve poemas há algum tempo e atualmente está se aventurando pela narrativa curta.
BICICLETA
Sim, ela se lembrava de tudo de bom que havia vivido. Sua memória era clara, e agora apenas uma cena lhe perturbava, arrastando-se sobre o seu travesseiro a derrubar o sono da cama. Quanto tempo levava para fazer 100 quilômetros de bicicleta? A qual velocidade? Quanta energia seria necessária?
A mesa estava posta, como todos os dias. O almoço, do jeitinho que ele gostava, tinha panquecas e muitas vezes o purê de batatas que ele insistia dizer que o da mãe era melhor. A roupa limpa, guardada nas gavetas, nos cabides. O guarda-roupa não era mais seu, suas roupas espremiam-se como sua alma...onde guardo minhas coisas?
- Mãe, de qual música você gosta?
Não se lembrava. Ficou olhando para o nada, tentando responder ao filho adolescente. Ela não se lembrava de nenhuma música, nenhum cantor, nenhum som nada, nada. Ah, sim, um dia disse ao marido que gostava de Fábio Júnior, mas ouviu apenas “Lixo!!”. Daí se esqueceu. Esqueceu de gostar.
Havia se inteirado, por gosto alheio, de todos os guitarristas do planeta, do Satriani, do Clapton, do B.B. King. Mas eles estavam todos ocupando o guarda-roupa, pensou. Onde posso guardar as minhas canções preferidas esquecidas? Que foi feito de minha viola? Por que vendi meu teclado? E os meus dedos tortos de dor?
Os armarinhos de plástico, de cada lado da cama, figuravam brilhantemente como mesas de cabeceira, a testemunhar as noites de não-amor. O ronco e a insônia. Os fedores e as dores nas costas. Caixas de remédio de um lado, capacete de bike do outro.
Alguma coisa errada no reino desencantado. Quando se conheceram, ele lhe dera o mundo. Sim, era o mundo, um pequeno bibelô na forma de globo transparente. Não entendeu nada, sorriu apenas e ficou olhando para aquela bolinha, acreditando ser um peso de papel. Sim, era um peso.
Essa noite, quem sabe? Poderia seguir as dicas das amigas, vestir algo provocante e deitar ali, esparramada pelos lençóis. A ilusão era sua melhor conselheira, tão viciada em inventar o futuro.
Ele estava vidrado aquela noite em uma partida de tênis, alma de aristocrata, pra lá, pra cá. Djokovich contra Nadal ou Federer ou Del Potro, milhares de sets ad infinitum e muitos pares de coxas grossas. Resolveu iniciar a batalha inglória:
- Vou deitar. Te aguardo.
Resistiu até onde não podia, cochilou um pouco, até que, madrugadinha, percebeu um barulho ao seu lado. Ele tinha vindo, se aconchegando para dormir. Era agora...
Abraçou-lhe as costas gordurosas, e ficou alisando os parcos pelos. Não correspondeu, sequer um movimento, nem um pio. Resolveu apertar mais, beijar-lhe o pescoço, mordiscar a orelha. Ele suspirou. Menos animação, mais tédio. Finalmente, ele se virou.
Ela sabia que tinha que estimular. Levou sua mão devagar até o pênis flácido, encolhido. Ia demorar um pouco, logo estaria a meio mastro, o suficiente, talvez, para conseguir penetrá-la. “Com licença”, balbuciou. Ele sempre dizia isso. Licença...
Em um átimo, lembrou-se de todas as suas vezes, ou melhor, de todos as suas meio-vezes. Da primeira, quando o rapaz fugiu e disse que ela precisava ler a Bíblia. Até lhe dera uma de presente, com linguagem facilitada, para entender bem a mensagem divina. O outro, era casado, com os olhos de peixe morto, negava-se a qualquer intimidade, pois sua esposa estava sempre à espreita, com a isca pronta a lhe fisgar a culpa. O seguinte, tinha uma reserva e uma tara, só lhe esfregava o pênis entre os seios, depois se satisfazia sozinho, nem um abraço, nem um beijo. Teve mais um, esse tinha o bafo de pinga, o que lhe embrulhava o estômago a cada vez. Espalhava antes a porra pelas suas pernas, depois se vomitava todo. Gozado com alguém? Jamais.
Mas era criatura incansável, imaginação gigante, quis ser ela mesma uma bicicleta. Quem sabe assim ele a desejasse? O quadro todo feito de aço e pintura morena prateada, sempre pronta para os pedais da vida, ao longo da estrada em que a felicidade, ao longe, eram as estrelas reluzentes da Noite Estrelada de Van Gogh. O guidão sempre aberto a amparar as lamúrias, e o selim... acho que ele amaria montar nele. Todos montavam. Essa ideia a animava, tentando inflar o coração murcho com amor, e que a vida e o mundo eram assim mesmo. Bobagens, mágoas sem freios, correntes de carência. Ia avante, pedalando sem suspensão traseira, em marcha lenta, vamos que vamos.
De repente, despertou, virando-se injuriada, quando ele fez aquilo que detestava. Enfiou a língua em sua orelha, encharcou de saliva fétida e depois soprou, forte, bem no canal. Por que insistia nisso, tantas vezes? Ela se encolhia, com muita irritação e dor. Relevou, uma vez mais, afinal isso era tão pequeno diante das atrocidades do mundo, não é?
A meio barro meio tijolo, subiu sobre ela, com um interesse sepulcral. E mexeu, mexeu esquisito preguiçoso, ela tentou se mover, ele era tão pesado, ela não tinha força, não tinha espaço, estava sem fôlego, no exit.
Até que o marido terminou. E exclamou:
- Nossa, isso é mais cansativo do que fazer um pedal de 100 quilômetros!
E caiu de lado.
Ela ficou ali, na morte súbita, melecada, ladeira abaixo, afundando o rosto no travesseiro lacrimoso, num ofício de faquir, a ouvir as batidas desreguladas de seu coração estúpido.