João Antonio Neto
Escritor
REFÚGIO
Ali estão os nossos mortos
e os mortos dos outros...
Todos reunidos na necrópole,
como num canteiro de mortos...
Os que morreram na hora da morte,
os que morreram na hora da vida...
E no dia dos mortos,
até lá vamos nós,
não porque os mortos estejam sozinhos...
Nós
é que estamos sós.
NATIMORTO
Antes de ver a vida
como ela é,
perdeu a fé...
Confiado no ovo,
adormeceu de novo.
PUDICÍCIA
A Justiça cobriu os olhos
com aquela venda,
em sinal de pudor,
para não ver a venda
e o vendedor.
ALUCINAÇÃO
O pigmeu
acha que é um gigante
que não cresceu...
PERTINÁCIA
O apego à vida é tão forte,
que o morto fecha os olhos
para não ver a morte...
SUBTERFÚGIO
Quem dá aos pobres,
empresta a Deus...
(Algo de muito obscuro!)
– E se Deus logo lhes desse,
não seria mais seguro?...
OPÇÃO
Em vez de histrião, torto e falho,
em meio a homens daninhos,
que tal ser como o espantalho:
– palhaço de passarinhos?
BUQUÊ
Cobriram o anjinho
de rosas ágeis,
de lírios lépidos,
miosótis frágeis,
de cravos tépidos,
boninas de opala...
Mais parecia
um arranjo de flores,
para enfeitar a sala.
SATÂNICA
A Pátria é grande e boa,
merece viva e loa!
É bamba,
é de escol,
é legal!...
– É samba,
é futebol,
é carnaval!
INSENSIBILIDADE
Deitado eternamente em berço esplêndido,
seria uma burrice
(ou muita insônia)
se não dormisse!...
SINETE
Até nas horas de luz,
nossa fatal condição:
– a sombra que o homem produz,
a nódoa do homem, no chão!
ADESTRAMENTO
Dormir é meio-morrer
e desse jeito treinar
para, quando a morte vier,
a gente não se espantar...
RELÓGIO
O tic-tac do relógio
é a prece do Tempo
e o nosso necrológio...
PANACEIA
Álcool para aquecer,
álcool para esfriar...
Remédio para esquecer,
remédio para lembrar,
remédio para dormir,
remédio para acordar,
remédio para fugir,
remédio para avançar,
remédio para querer,
remédio para odiar,
remédio para sofrer,
remédio para gozar...
Remédio para viver,
remédio para matar! ...
REPULSA
A mão que esbofeteia
a face mais bisonha,
fica vermelha...
de vergonha.
AUTENTICIDADE
A caveira,
desinibida,
ri da comédia da vida...
INEVITAVELMENTE
Inevitável é a morte;
a vida, não;
logo, a morte é a regra
e a vida é a exceção.
LAPSO
O culpado
é Noé – o Patriarca –
– e ninguém mais!
– que devia ter ficado,
e posto na Arca
somente os animais...
PRORROGAÇÃO
A água que mata a sede
nesse deserto
de areia escura,
não é a água que se encontra,
– é a que se procura...
PRODIGALIDADE
A magnânima Lua
esbanja tanta luz, quando está cheia!...
Só porque a luz não é sua,
só porque a luz é alheia...
PERPLEXIDADE
A borboleta pousou
levemente
sobre a flor,
como joia no engaste...
– E agora não sei
quem saiu pelo ar
e quem ficou na haste...
PARTO
Foi tanto o esforço do botão
para se abrir em flor
no jovem galho,
que ainda de manhã
suava orvalho...
ASCENSÃO
Subindo pelo tronco,
a trepadeira impávida
grudou-se à casca,
galgou os ramos,
transpôs os nós...
E lá na copa,
íngreme e alta,
como bandeira de triunfador,
desfralda a flor!...
IMUTALIDADE
Mesmo feita de ouro,
a algema é grilhão...
Nem por ser de seda,
deixa o casulo
de ser prisão.
ESTIGMA
Se o sândalo perfuma
o machado que o fere,
também deixa
na lâmina denegrida
a mácula do golpe
e a nódoa da ferida.
VÁCUO
Oco,
imóvel,
frio...
Cheio de vazio...
RECEITA
Para pôr fim à aflição
e retomar a doce calma,
só uma pequena alteração:
– arma, por alma.
I.R.
O Leão pôs a mesa,
para jantar a presa...
Mas quem almoça o manjar
e lambe os pratos
são os ratos...
DESVANTAGEM
O que se tem visto
é quase sempre isto,
com poucas variações:
– para cada Jesus Cristo,
no mínimo dois ladrões.
ARITMÉTICA
O amor tem três operações:
somar,
multiplicar
e dividir.
O ódio tem uma só:
– subtrair.
ANTÍPODAS
O homem rouba,
para fazer o mal.
A abelha rouba,
para fazer o mel.
DESCUIDO
A cabeça guardou a ideia
numa caverna de osso,
grosso,
bem fechada,
trancada,
lacrada,
para ninguém perceber...
– Mas esqueceu de fechar a boca...
E pôs tudo a perder...