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Sergio Ballouk 
É escritor. Nasceu em São Paulo e foi criado na Vila Guilherme, nos bons tempos das lagoas e campos de várzea. Tem textos publicados em diversas antologias, tais como: Sarau da Brasa, Pretumel, Contos Afros, entre outras. É presença constante nos volumes de Cadernos Negros, do grupo Quilombhoje Literatura, com poemas e contos desde 2005, ano de estreia na literatura.  Autor  de Enquanto o Tambor não Chama (poemas, 2011); Casa de Portugal (contos, 2015) e O Batismo da Capoeirinha (infantil, 2019 ) e do recente Recital de Pedra (poemas, 2021). E, dizem as boas línguas, também visto com frequência no sarau Elo da Corrente, lugar de poesia e amigos. Facebook: sergio.ballouk.7 | Instagram: sergioballouk.

DIA COMUM NUMA CIDADE INCOMUM

Normalmente atitudes racistas pegam as pessoas desprevenidas. Quando se está à espera, pronto para acontecer, nada acontece. Acontece é quando não se espera, distraída na rua, olhando uma vitrine, procurando um presente para o amor. Bem assim. Na real, dentro de um mercado, de um espaço público, ou apreciando uma paisagem, as pessoas não esperam o afronte de um racista jogando a baba fétida, gosmenta, pra cima de alguém. Essa é a desgraça. Mal aventurados os distraídos, e céticos! Ruth dizia não ser dessas pessoas. Estava sempre atenta. Por diversas vezes, dentro de um cenário possível de se tornar um alvo registrava milimetricamente aqueles primeiros minutos, como uma cena de um filme que ela queria decorar as falas, os passos, a sequência dos fatos, o gesticular das pessoas, a sutileza dos perfumes, a respiração, a ausência de expressões nas testas. Ou apenas um olhar para uma lata de ervilha, uma embalagem errada em uma gôndola.
Meu celular sumiu!? Fui roubada!! E foi num mercado mesmo, no corredor de legumes. Só uma senhora branca e Ruth. Automaticamente dispara o sensor de prevenção anti racistas na Ruth. Como uma gravação de câmera de segurança, retorna à sua mente em slow motion o momento exato em que viu a senhora durante a escolha de quiabo no mercadinho do Seo Norberto.  Foi há três minutos, logo depois que virou do corredor de produtos de limpeza com uma barra de sabão de coco. Estava há 2 metros e 25 centímetros uma da outra. Ruth era uma chata para comer mas, incrivelmente, adorava quiabo, tanto que aprendeu a escolher e gostava de escolher. Verificar se os miúdos estalavam a pontinha entre os dedos, atestando qualidade futura na panela, e desse modo já havia no saquinho quase 850 gramas, quando uma senhora de cabelo ocre pilotava um carrinho de mercado com um moleque de 3 anos, no máximo, dentro do veículo de mercadinho. O menino segurava o aparelho de celular branco gritando que queria aquele pacote de amendoim coberto de chocolate. Contaria em minúcias o ocorrido se acontecesse de ser incriminada. Imediatamente apareceu um segurança, assim como uma funcionária que estava tomando café e, também, um senhor curioso, do corredor das cervejas. Alarme falso, pois no mesmo instante o celular desaparecido estava caído na gôndola de cebolas, e alardeava com uma irritante musiquinha lembrando a dona de tomar remédios. Ruth Prevenida, poderia ser até seu sobrenome. Mas era Silva mesmo. Prevenida. Esse era o mérito dela. Não aconteceu dessa vez, mas ela estava preparada. Ruth funcionava assim.  Às vezes desconfiava que era um transtorno obsessivo compulsivo que lhe acometia, um pré cuidado exagerado.
Lembrava constantemente de uma cena do filme do Ray Charles, em que a mãe do Charles garoto ensinava que a deficiência visual deveria ser compensada por uma excelente memória, contagem de passos, obstáculos à frente, corrimão à esquerda, um grande músico o Ray…
Ruth era brasileira, fazia aula de violão, gravava com facilidade os acordes, superou as pestanas, ensaiava suas primeiras composições. Mas os filmes eram sua paixão, principalmente os policiais. Observava com atenção desde a abertura aos pós créditos e letreiros finais. E como boa cinéfila, comentava nos sites, postagens, sempre dando ênfase aos erros de continuidade das cenas, erros de lógica, apontando a falta de uma cadeira na cena, uma manga dobrada a mais, um penteado de forma diferente, uma fala forçada, uma camiseta com dizeres de um figurante ao fundo, quase atrás de um poste. Ela era boa nisso.  Na dúvida recorria ao slow motion para se certificar do erro.  
Então quando voltava de carro naquela noite com sua família, sentada no banco traseiro, com seus pais a frente, mãe dirigindo e pai no banco de passageiro, já que o acordo dos pais era que dirigia quem não tivesse bebido, Ruth ria alto com sua irmã, e nem estranhou uma viatura que andava igual tartaruga. Foi notar quando ela acelerou e jogou na frente do carro da família. Estranhou mais ainda daquele guarda que agora pedia para sua mãe sair do carro, se bem que já estavam bem em frente de casa. Todos saíram do carro, mas cismaram com o pai. Ruth lembrava das coisas que aconteceram antes, na apresentação, durante o caminho, de apreciar a paisagem, que papai vinha contando uma história das antigas, de como eles se conheceram, passaram a namorar… Lembrava de tudo, do vento pela janela, das tranças recentes que apertavam o couro cabeludo, das músicas que Betinha, sua irmã, estava ouvindo, das letras que ela ria mas não entendia o duplo sentido.
Ruth via seu pai ser empurrado contra a parede, como um bandido, sendo revistado no corpo todo, e os policiais perguntando por droga, cadê a droga. A moça pegou sua irmã pela mão e foram para dentro do portão. Sua mãe começou a gravar com seu aparelho chinês de cinco câmeras os três policiais chutando as pernas do marido, empurrando contra a parede, ele dizendo que voltavam de um evento que ele era designer. Sim, um bom pai, até que o policial foi para cima da mãe que gravava ao vivo para uma rede social, e dizia que sem motivo algum estavam sendo tratados como animais, os direitos constitucionais rasgados por aquela abordagem truculenta. Recebe uma gravata, e é jogada no chão com uma rasteira. E o terceiro policial de arma na mão ameaça geral. O pai, que até agora estava calmo, virou um bicho e foi para cima do policial caído com sua esposa no chão. Depois ouviram um tiro de bala perdida que encontrou o coração de sua irmã. Betinha caiu morta.
Na delegacia Ruth conta a história várias vezes, todos ouvem, pedem que ela repita, que não foi daquele jeito, incluem fatos na cena, drogas, omitem a violência gratuita, repetem, repetem, cansam. Desacreditaram que sua família negra morasse naquele bairro, naquela casa vão atrás de imagens de câmeras, inventam falas, dizem que foi legítima defesa. Ruth revive continuamente a mesma cena de terror em slow motion em sua mente. Cansaço. Ameaças. Seus pais estão presos, sua irmã está morta e ela continua repetindo a única e verdadeira história.
 

© 2019 - Revista Literária Pixé.

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