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Raquel Naveira
É escritora, professora universitária, crítica literária, Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, autora de vários livros de poemas, ensaios, romance e infanto-juvenis. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (onde exerce atualmente o cargo de vice-presidente) e ao PEN Clube do Brasil. 

Neruda,
Escrevo-te esta carta
Porque preciso de ajuda,
Poderias me enviar da Ilha Negra
Um punhado de peixes cintilantes,
Um sopro de vento salgado,
O som dos sinos
De quem entra
Em teu jardim?

Neruda,
Escrevo-te esta carta,
Acode-me,
Assim como cantaste
Os rios da América:
O Amazonas,
O Orinoco,
Artérias nas cordilheiras
Onde a neve
Desliza úmida
E as rosas explodem selvagens,
Cantei minha terra
Cheia de pássaros e pantanais,
Tiritei de frio
Sob os astros siderais.

Neruda,
Escrevo-te esta carta
Porque tudo muda a cada dia,
Menos o dever do poeta
De levar sonho,
Luz e noite,
Razão e desvario
No meio das revoluções que eclodem
Em sangue 
E fogo sombrio.

Neruda,
Escrevo-te esta carta,
A face sisuda,
Perdi amigos
Como também perdeste:
Federico, o inventor de estrelas,
Éluard, o camarada francês,
E Gabriela Mistral,
A amada filha dos joios,
Que tremulavam amarelos
Entre pedras e canais.


Neruda,
Escrevo-te esta carta
Porque estou triste
E posso escrever versos tristes esta noite,
Não desgruda de mim essa névoa,
Essa mágoa
Como a que borrifava
Tuas carrancas de proa
Nos oceanos perdidos.

Estou acorrentada
Na minha Ilha Negra,
Entre livros,
Jacarés,
Cristais partidos,
Fragmentos de lembranças.

No peito
Bate o coração
Como um relógio sufocado na areia;
Armada até os dentes
De uma ardente paciência,
Entrarei nas esplêndidas cidades,
Assim profetizou Rimbaud
E sei em que tenho crido:
No pão que amasso
Com minhas mãos,
Meu espírito,
Minha respiração,
Pois nada foi esquecido.

Escrevo-te esta carta Neruda,
Na luta pela felicidade,
Na fé que se exercita
Por longos anos
De amor indelével 
Pelo ofício.

Aguardo resposta,
Uma letra
Que venha
Como um navio numa garrafa,
Como o fantasma de uma casa,
O vibrar de uma onda
Ou o toque de uma asa de gaivota.

Aguardo Neruda,
Sou devota,
Inclino-me atenta ao silvo da poesia,
Sacerdotisa dedicada
A uma absurda liturgia.

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