Rafael Martins Gregorio
É jornalista, advogado, músico e escritor. Nasceu no inverno de 1982 e começou a ler com gibi e Ziraldo; a ver, aprendeu mais tarde, com Clarice e Torquato. Escreve desde a mocidade na zona norte da cidade de São Paulo, onde vive (mas há anos na faixa central). Compôs músicas que lançou em discos e shows com a banda Circo Motel e foi co-roteirista do filme “Raízes” (2019), entre outras criações fraternais. Nesses primeiros escritos, exibe fragmentos intuitivos de uma rudimentar deslembrança poética. Publica & divaga eventualmente em solodecontrabaixo.tumblr.com.
DO MAR, ADJETIVO FEMININO
fosse só a saudade
vá lá
mas é essa fixa vontade
de ti
um abrigo
um lampejo
um aviso banhando em neon
o céu sujo do bairro
à aurora
três ou quatro
sós
quarteirões
entre nós
e uma rede fiada a ausência
saliva
desejo
e memória
foste só, saudade
vá lá
BANHO DE SOL
o poeta
ele ou ela
é mesmo chegado no flerte
com a morte
transita
no indizível limiar
da consciência
sempre entre o a e o e
(entre o há
e o quer)
é esquivo
não lhe satisfaz o pouso
da abelha
ou a
florada
da camélia
e é por isso que apelo a que se perdoe a poeta
feminino ou masculina
não sabe o que faz
(mas sabe como)
vê nos muros
o poeta
ele ou ela
uma porta
outra porta, menor, para os gatos e os cães
uma janela
e mais uma
janela
e não lhe sacia a janela
nos parapeitos da vida se permite
banhar de sol
esse malabarista
do acaso
ah!
e se cai a poeta
lhe ou lha
e estatela-se no chão
há de sorrir antes do impacto
podeis verificar
ó legista voz sóbria
da concretude
esteta
abre-se em reluzentes
dentes
o cadáver lírico a parar o trânsito e sincopar o fôlego
do cidadão atrasado
às 11h30 da manhã de um dia
claro
de outono
e em sua lápide há de constar
navalhado em pedra por mãos proletárias que
a culpa, se existiu, foi do sol
que brilhou distinto sem avisar
do a ao e se lê romances
é
valeu a pena
meu chapa
UTILIDADE
não conserta a pia
não fixa o ponteiro
desafeita a dispêndios
matéria, não cria
leniente bombeiro
de estéreis incêndios
dissona a harmonia
tensiona o estribilho
oblitera a trama
se negligencia
a razão e como filho
pródigo o perdão reclama
quase nunca inteira
equação, é metade
ou mais nulidade fria
fração virgem, beira
porém, a visão da verdade
tal coreografia
não canta boleros
não ergue conceitos
mundana planície
silencia em versos
de sonantes pleitos
sua vã superfície
é ela, a poesia
deslumbrante e inútil
o cálculo ao menos paga os próprios vícios
a poesia, não
sorri contida
pede cigarros
MANHA DE MANHÃ
presto atenção no que sonho
pressinto o que sou
desatento
um mantra
meio hippie meio falsário
desterrando a existência enquanto plana
pelas ruas pelas suas
sempre à mão o samba a ponta o contra
temporal
feito mágica
do umbigo emerge um universo
variam a cor e o tom do anseio
mas não falha
é desejo forte
sob nuvens turvas calmas
faz brotar questões apátridas
outonais
insuspeitas
ganham corpo tal qual horas
como recorrentes sustos
de que se esquece
na manha da manhã
duas gardênias pra você
com elas quero dizer:
PRONOMES PESSOAIS
se quer saber, não me sobraram manchas de vinho tinto.
ainda lembro de cada uma das curvas tortas no caminho
as frases que não fiz você dizer
e os
seus
surdos silêncios cegos
mas se levantar os olhos fosse crime,
perpétua
a cada vez que vejo o sol sobeja só e decadente
uma memória
que de triste mas tão triste
assim que lágrimas
de dor uma memória a mais linda menção do amor
A MUSA DO CIRCO
ela entorta garfos
come fogo aparta brigas
faz os mortos andarem
faz os mortos sorrirem
desenrola paz e guerra
reúne as Coreias
reúne os Brasis
ela equilibra pratos
põe cor no córtex
arrepia
os cabelos do cu
é quase tão boa
quanto o sticky fingers
chapado de fumo
depois de foder
ela esquiva facas
e cura com feitiçaria
da água ao uísque
do trago à placenta
entorta garfos
e aposto que voa, essa bruxa
desabrocha flores
nos seios da pedra
desabrocha flores nos seios da pedra