João Antonio Neto
Escritor
POLIEDRO
– Decerto, há uma grande variedade
de seres; mas, no fundo, o que existe mesmo é uma enorme unidade de tudo,
no sofrimento e na glória!
IMPRUDÊNCIA
Meu prezado José,
Aqui cheguei ontem e já iniciei a medição das terras. O trabalho é fácil, pois se trata de cerrado plano, com pequenas fatias de mato alto a cercar cabeceiras de águas muito saborosas. Chove quase todos os dias, e venta muito. À tarde, há sempre, para ver, enorme e vívido arco-íris, o qual se diria feito tinta fresca, cintilante... Jamais contemplei coisa igual! De tão rútilo, parece palpável. Tenho a impressão de que, se fosse possível alcançá-lo, sentir-se-ia seu peso e a densidade das partículas da sua luz...
João
***
Meu prezado José,
...Anteontem passou por aqui uma vara de queixadas; matamos dois, enormes; a carne, assada, cheira a mais de mil metros; uma delícia!... Lamento não poderes vir, como estava combinado – pois encontrarias excelentes derivativos, inclusive o espetáculo do arco-íris que, conforme já te disse, é extraordinário e magnífico!
João
***
...Sim. Já conhecia a crendice popular, segundo a qual o arco-íris, quando naquela posição, está bebendo em algum rio – e que se a gente tentar atravessá-lo e for por ele também bebido, sairá, do outro lado, com o sexo trocado... (Até quando a estupidez humana continuará estragando as delícias da Ciência?...). Mas, por via das dúvidas, vou ver se alcanço o arco-íris e experimentar se ele me “bebe” – pois, embora esteja muito feliz como homem, de voz grossa e outros atributos masculinos, poderia (quem sabe?), como castigo, pela verificação, sair do outro lado do arco de minissaia, voz fina e tudo trocado, pelo avesso...
João
***
Meu prezado José,
Interrompi a medição... Fiz a experiência...
Joana
SORTUDO
Velho, feio e doente, sob um sol de fundir diamante!
Dor de dentes incômoda e fome devastadora. Sede medonha! A sola dos pés escalavrada pelos pedregulhos e espinhos. O único olho, ardendo pela constante perda de sono.
Nem um cruzeirinho no bolso. O “bucho”, pendurado às costas doloridas, mal podendo suportar a pressão da alça. E a subida, por onde iam os meandros do caminho, sem querer terminar! Só o capim rasteiro do cerrado comburido! As árvores desnudas pelo fogo da queimada!
***
Não suporta mais! Deixa-se, então, sentar à beira da estrada... De repente, salta! “— Ai!” — Um enorme formigão lhe ferroara o dedão do pé. Procura uma folhita verde, para mastigá-la e fazer um meizinha do sumo. Acha-a, tritura-a... Mas um ardor infernal lhe rói a língua, os lábios... Parecia fogo... Era uma erva daninha!
***
Finalmente, coxeando – a picada lhe provocara uma dolorosa íngua – divisa um córrego... “— Água! Thalassa! Thalassa!”. Arrasta-se... Mas, acima do filete d’água está uma vaca imensa, morta, podre. Vai mais para o alto e é quando, emergindo da “pindaíba”, aparece uma vara de queixadas, matraqueando. Arrasta-se de novo, alcança uma árvore e ainda pode subir. Encolhe-se todo e deixa a manada passar, estalando, furiosa, fedendo.
***
E é logo que vê, suspirando, aliviado, um Jipe que se aproxima, em disparada...
Enfim, eis a salvação!
Para o veículo, confundido com a poeira vermelha... E vem, lá de dentro, uma voz molenga:
— Peguemo o cabra! Teja preso, ladrão!
***
O SÁBIO
Era uma vez um Sábio, muitíssimo velho...
Também muitíssimo diferente, pois não usava barbas longas nem óculos de lentes ovais nem carapuça, como Paracelso...
Era um Sábio sobremodo estranho.
Tudo havia descoberto, desde o próvido amor que se associara à fastidiosa opulência de Deus, até a inculpável resignação insigne dos caracóis... Conhecia todas as linguagens que não dizem nada e os mutismos que recolheram a hermenêutica de todas as palavras...
Descera até onde os capilares da Vida vertem a linfa das continuidades... Entendia as montanhas e até a dor sanguínea dos corais... Abrira a cornucópia dos Sonhos e surpreendera as vontades da Indiferença e os abandonos da Esperança...
O próprio conluio das constelações e das nebulosas fora atravessado pelo dardo da sua penetração.
Era senhor dos territórios da Luz, e os seus pés fervilhavam em todos os pegos e litorais.
Às vezes, ficava taciturno, preso ao fio das horas, nadando no silêncio inconsútil, enquanto a noite punha estrelas nos farrapos das nuvens...
***
E aconteceu que um dia perguntaram àquele que sabia tanto:
— Que mais falta para saberes, Ó Mago?
E ele, tristemente:
— Não sei...
SELENE
A Lua é muito autêntica: inteiramente lunar...
Nossa Terra é um verdadeiro poliedro: tem mar, tem animal, tem planta e água e vento e até céu...
De cada coisa, a Terra ostenta ou insinua um pedaço, um vestígio... Ângulos de esperanças, contornos de penhas e girassóis, realidades sombrias, subúrbios de sonhos, celas de frades e de ladrões, alcouces fervilhantes e basílicas cheias de beatitudes...
A Terra é um turbilhão, até na morte, na mansidão até...
A Lua, não. A Lua é uniforme, simples, nua, quase incólume, como as coisas que devem ser sós, longes, misteriosas – desse mistério que apenas olhos devem tocar, sem mãos que profanem ou ouvidos o percebam e entendam...
***
Desci exatamente sobre o Mare Imbrium, um pouco a leste da Montanha de Arquimedes.
Primeira sensação agradável: a liberdade! Parecia que eu me tornara um passarinho; qualquer movimento era tão fácil, que eu tinha a impressão de que ia desintegrar-se, e fundir-me, panteisticamente, na brancura silenciosa do horizonte limitado...
Nenhum rumor. Mal sentia a respiração da minha alma, transbordando das rendas dos meus nervos. O olhar fluía em torno, preso duma doçura plástica, ondulante, até se perder pelos planos e picos estáticos e nítidos. Uma sensação de honestidade essencial dir-se-ia pulsar na poeira que se abria a meus pés – poeira que semelhava um talco de pérolas.
E, quando percebi que nem monologar podia, então meu arrebatamento chegou ao máximo! Perdera essa condição lastimável, própria da Terra, onde o contato é o fio umbilical da vida e a consciência dolorosa e dramática das inquietações patéticas e inúteis.
***
Mare Serenitatis, Mare Tranquilitatis, Mare Nectaris, Mare Foecunditatis! São nomes de ladainha!... E, se há Mare Frigoris ou Oceanus Procellarum, não senti nem frios nem procelas.
Tudo é plumoso nesta Rainha do Silêncio – ou melhor, nesta transparente bolha de espuma cósmica.
Daria o maior e o melhor, para não voltar.
Mas era forçoso cumprir o destino melancólico de satisfazer ao resto dos dias, em cima da mumificada carcaça da Terra inevitável.
Finalmente, tive a tristeza de não encontrar São Jorge... Mas, em compensação, não encontrei o Homem.
OPULÊNCIA
— Dai-me uma esmola, pelo vosso amor!
O mendigo pedia assim...
Velho e estriado pelo tempo, parecia um pássaro mal empenado, com aqueles molambos sobre o esqueleto velho e desarrumado...
— Dai-me uma esmola, pelo vosso amor!
Estendia a mão igual a um galho seco e retorcido, onde já não pousavam cigarras nem floriam giestas...
Os olhos amassados pelo pisotear dos dias e das noites, batendo no chão o cajado de bambu – o báculo do pobre – ia o mendigo, sem uma véspera salvadora, sujeito ao faro imperceptível da curiosidade...
— Dai-me uma esmola, pelo vosso amor!
E, de quando em quando, caía-lhe sobre a palma côncava o óbolo miserável – a dívida que prova a distância enorme em que estamos do nosso próximo.
— Dai-me uma esmola, pelo vosso amor!
***
Estranharam a rogativa insólita do mendigo...
— Por que não pedes PELO AMOR DE DEUS?!
E ele:
— Deus já me deu sua esmola: a Vida.
MACRO... MICRO...
– Ora... Tanto faz ser grande como
ser pequeno! Aquela estrela pequenina,
lá no fundo, não é maior do que a Terra?
TERRA E MAR
A Terra se oferece e se dá – O Mar se retrai e se recusa. A Terra exorta para a vida – o Mar convida para a morte. A Terra é feita para os encontros – o Mar para as dispersões. A Terra é franca e leal – o Mar é obscuro e pérfido. A Terra nos oferta a paisagem real – o Mar nos mostra apenas o reflexo dos panoramas.
Se o Mar tem pérolas e corais – esconde-os. Se a Terra tem flores e pássaros – doa-os. O Mar é avaro – a Terra é generosa e pública. A Terra é multivária e nunca se fatiga de transmutar-se para o nosso conforto e o nosso êxtase. O Mar não se renova – repete-se, para a nossa fadiga.
O Mar só tem gosto de sal – a Terra tem gosto de mel, de leite, de vinho. A voz do Mar apenas se altera entre os gritos da fúria e o murmurinho exausto do insondável. A Terra trila e trina, gargalha e fala e, se às vezes chora, quase sempre sorri.
O Mar é masculino: certo da força.
A Terra é feminina: convencida do poder.
O Mar se confunde com o céu, e nunca sabemos o que virá depois.
A Terra, não! Além do círculo onde se une ao azul, haverá sempre uma lareira, a bênção da nossa mãe, um copo d’água e os braços abertos do amor que nos espera!
SONHO
Nada chegou ao que é, sem ter passado pelo Sonho!
Se a Verdade é a árvore – o Sonho é a semente.
Se a Verdade é o dia – o Sonho é o alvorecer.
O que hoje é real e fora outrora ignorado, veio do Sonho, que é a fonte de tudo que foi realizado, porque não existia.
Sonha, pois, meu amigo, e não dês ouvidos aos que zombam dos sonhadores!
Os castelos de pedra são modelados pelos castelos de sonho.
Não há uma só beleza acabada sem sua anterrealização num grande sonho.
Todos os sonhos são proféticos: falam do que há de vir, antes de vê-lo.
O sonho é um advento incorpóreo.
O sonho fez a essência, antes da forma.
Criado no fundo imanifesto das imagens vagas, é prodigioso que haja o sonho engendrado todas as grandezas do mundo, todos os milagres das meditações infinitas!
O sonho é a liberação total!
Se não sonhássemos, não veríamos nunca outro horizonte, além deste que nos fecha dentro do mundo, roubando-nos alturas e negando-nos espaço.
É o sonho que nos leva a ver o que somos, além do que temos!
Há muitíssimos séculos, o homem sonha... E o sonho nunca se esgotou no seu manancial inexaurível!
Semper florens!
Ah, com certeza, no fundo de tudo, não há mais do que sonho, um grande e maravilhoso sonho!
O sonho do bem, o sonho da virtude, o sonho do amor, o sonho da vida!
Bem-aventurados os que sonham! Que o sonho é a única forma legítima de ser Deus!
CALUNIADO
O tordo – trucila.
O macaco – guincha.
O leitão – bocareja.
A abelha – zumba.
A cigarra – fretine.
O camelo – blatera.
O galo – cucurita.
O grito – guizalha.
A rã – tintingalha.
O grou – grugruja.
O papagaio – grazina.
O cavalo – trine.
O gato – resbuna.
O cisne – arensa.
A ovelha – barreja.
A cegonha – glotera.
A andorinha – grinfa.
O jumento – rebusna.
O gafanhoto – chirria...
***
E o coitado do Homem, a quem chamam de complicado, modestissimamente, apenas – FA-LA!
TUÍ
Tuí nasceu numa noite tempestuosa de sábado.
Não se sabe, precisamente, a que hora veio à luz.
Não era bem casa, o lugar onde Tuí nasceu; um simples galpão de zinco, todo esburacado, de forma que a mamãe Adélia não sabia como abrigar o pobre recém-nascido.
O coitado grunhia, enrolando-se todo, como se estivesse com dor de barriga; mas era fome. Tuí já nascera faminto.
Particularmente interessante é que Tuí, como todos os filhos sem pai (Tuí jamais saberia quem fora seu pai), não teve assistência outra, senão o acaso feliz de sua própria mãe ser parteira.
Desproteção completa! Mas, como Tuí era viável, conseguiu resistir aos primeiros embates da vida, uma vez que (outra circunstância também particularmente notável) mais dois irmãozinhos de Tuí (tinham nascido três) morreram logo após o parto.
O certo é que na manhã de domingo havia mais um ser bulindo sobre a Terra...
***
Ao lado do galpão de zinco morava o Dr., e os meninos da casa próspera se interessaram, como era natural, pelo pequerrucho.
Tuí, por outro lado, tinha ótimo acabamento. Possuía um narizinho róseo. Não mostrava manchas violáceas pelo corpo e seus berrinhos não incomodavam. Os pezitos, também róseos. Bem alvinho de corpo. Quando segurava, com a boquita úmida, o peito da mamãe Adélia, era de se admirar sua graça! Roncava, fungava, de delícia.
Os meninos do Dr. queriam pegá-lo, mas mamãe Adélia não consentia nisso. Tuí estava muito novinho.
***
Correram dias. O Dr. resolveu encarregar-se da criação e educação de Tuí. Tuí, por sinal, era mimado. Todos gostavam dele. O certo ainda é que mamãe Adélia, vagabunda e descarada, entregou duma vez o filho e sumiu no mundo, em busca de suas costumeiras aventuras.
Tuí crescia. Já sabia exprimir-se através de sua própria muito compreensível linguagem. De quando em quando D. Múcia, a mulher do Dr., punha-o ao colo e o afagava, enquanto ele agitava as débeis mãozinhas.
Foi ficando taludo. Andava pela casa toda. Mexia em tudo. Era duma peraltice tremenda. Os meninos do Dr. é que gostavam daquilo. Não podiam prescindir de Tuí. Deu ele – por essa altura – de escapulir para a rua. Como no bairro ficava uma grande fábrica, todos os operários passaram a conhecer Tuí. Meio mundo tinha carinhos para o afortunado enjeitadinho. Até uma corrente de prata, com uma figa vermelha, lhe puseram no pescoço.
***
Tuí era realmente feliz.
Mas, um dia, Tuí brincava à frente da casa, que dava para a rua de trânsito intenso.
O inevitável aconteceu. A bola rolou para o meio da rua, Tuí correu para alcançá-la. Vinha o monstruoso Fenemê, em disparada, e uma das suas rodas hediondas colheu a indefesa criaturinha!
A morte do cachorrinho comoveu todo o bairro...
O HERÓI
A noite era tão fria que o próprio vento tiritava.
Totô, o mendigo, fora colhido de surpresa. Parecia-lhe a roupa uma tapera de pano, mostrando as caretas dos remendos e buracos...
Tempo selvagem! Nem um pouquinho de compaixão pelos seres e coisas agarrados pela desfortuna dos dias e das noites!
O céu, embuçado como um bandido, não parava de soltar aquele hálito gelado, cortante.
O mendigo, todo encurvado, abraçava-se a si mesmo, encaracolava-se, tentando diminuir-se e dar menos campo aos açoites do tempo.
A rua era negra. A cidade toda uma furna preta, pois a própria luz elétrica estava em pane, e as casas inteiramente fechadas.
Ninguém pelas calçadas. Somente Totô, o mendigo – e, com ele, aquela alma doída, sem rumo, como se todo o bem-querer do mundo o repelisse ou ignorasse!
***
E foi naquele momento que uma rajada mais impiedosa o alcançou em cheio. Totô, o mendigo, buscou uma parede ao lado, encostou-se rapidamente e... Tra! Era uma porta, que alguém deixara mal fechada. E Totô se viu caído de costas, dentro de um aposento ainda mais tenebroso do que a noite lá fora...
Levantou-se com dificuldade, tateou. Havia por ali alguma coisa parecida com móveis, prateleiras. Apalpou.
— Panos! Panos! — foi o solilóquio do mendigo.
***
E houve, então, o barulho de uma porta que se abria em outro lugar do prédio. Uma luz de vela clareou lá no fundo...
Totô, o mendigo, pensou ligeiro:
— É alguém! Serei tomado por um salteador! Além de mendigo, ladrão?! Que seja!
Agarrou aquela coisa que parecia uma coberta, aquele grande rolo de pano, pô-lo debaixo do braço e saiu para as trevas, deixando a escola (pois era uma escola o lugar onde esteve Totô, o mendigo).
***
Correu, cambaleante. Aumentara o vento. O frio parecia ainda maior. Sentiu, por fim, que chegara à Praça da cidade. Já era sua conhecida. Procurou, quase pelo faro, um daqueles bancos amigos, debaixo de uma sibipiruna copada. Ajeitou-se, cobriu-se, embrulhou-se dos pés à cabeça com aquele pano...
E como era quente! Num instante, um calor gostoso inundou-lhe as carnes. Jamais tivera um cobertor mais impermeável às intempéries! Dir-se-ia um banho morno de licor de rosas.
E ele pensou:
“Quantos ricos, neste mundo, desejariam morrer embrulhados num cobertor assim!”.
Quando, pela manhã, o guarda viu aquela coisa, ficou passado de susto.
Que seria aquilo? Aproximou-se, cautelosamente... E, ao puxar a ponta daquele pano, lá estava Totô, o mendigo, morto, encolhidinho como um feto, com um sorriso divino colado no beiço roxo – puro herói da desventura – entre as dobras da Bandeira Nacional!
O VELHINHO E A MORTE
Com o feixe de lenha às costas, o velhinho, outonal, ia...
A estrada era pedra. O sol fervia no ar. As árvores pelada estavam mudas, com os galhos retorcidos num gesto inútil de agressividade anêmica.
O velhinho arquejava como fole furado. Caiu a primeira vez, caiu a segunda vez, outra vez, mais adiante.
Cada queda era uma sangria em sua força caduca. O suor lhe escorria do corpo todo, como se ele fosse um molambo que se torcesse.
***
Depois da quinta queda, quase já não se pôde erguer... O molho de lenha jazeu ao lado, abandonado. O velhinho inda tentou erguê-lo, mas foi debalde!
Desesperado, então, rogou:
— Morte! Oh Morte bendita! Tu que és a última porta de quem não tem mais saída, vem a mim! Abre-me os teus braços! Leva-me contigo, ó Morte! Não quero mais viver! Acaba com este martírio! Já estou exausto! São setenta anos! Chega! Leva-me, ó Morte!
***
— Aqui estou, meu amigo!
E o velhinho viu a Morte ali à sua frente, muito viva e patente, sorrindo através da arquitetura irregular da cara enorme e branca. Sua voz tinha o som feio que o vento faz quando sopra pelas solapas escuras; uma aura glacial exalava da sua presença metuenda.
O velhinho estremeceu.
E a Morte:
— Anda! Para que me queres?
E ele, baixando o rosto e mandando-lhe um olhar transversal:
— Cha... cha... chamei-te...
— Vamos! — disse a libitina.
Chamei-te para saber se tua sentença é irrevogável, se a tua palavra é como a do rei que não volta atrás. Se, ao decidires, está decidido...
— E duvidas?
— Eu? Ora, quem sou eu, dona Morte, para duvidar de ti? — e o velhinho abrandara o tom, tornara a voz macia e manhosa.
— Pois é assim — falou a Parca, peremptória —, o que digo está dito! O que decido está decidido!
— Então, minha amiga, quero que me prometas uma coisinha... Uma coisinha muito insignificante, antes que eu me entregue inteiramente a ti.
— E é possível, o que me pedes?
— Ora, sim! É!
— Pois, então, está prometido!
— Assim sendo — disse o velhinho —, quero que me dês mais vinte anos de vida.
***
E o velhinho pegou, muito lépido, sua lenha, e se foi, assobiando...