Lucinda Nogueira Persona
Professora, poeta, ocupante da cadeira no 4 da AML.
PERSPECTIVAS DO AMOR
Das colinas cuiabanas ao Cerrado, do Cerrado ao Pantanal, olhos e corações se entrelaçam, dia a dia, numa fantástica e renovada contextura de nuvens. Evocar dados da identidade regional/universal e, neste caso, declarar o céu tão diversificado por nuvens, talvez seja um dos modos alvissareiros de ganhar o espaço da poesia, principalmente para os arautos de um novo livro. Foi lançado recentemente, pela Editora Entrelinhas, “Asas de Ícaro”: Versos de Enamoramento e seus Antônimos, do poeta Ivens Cuiabano Scaff, também médico, professor e membro da Academia Mato-grossense de Letras, ocupando a cadeira número 7. Essa obra, menção seja feita, traz um primoroso prefácio do poeta e professor Aclyse de Mattos.
O título já nos convida ao vasto universo dos signos e, mesmo que sutilmente, torna perceptível a intenção temática. Ícaro, personagem da mitologia grega, fugiu do Labirinto de Creta, através de asas coladas com cera, que se derreteram à aproximação do sol, o que o fez cair no mar. Esse voo mitológico malogrado parece bem servir ao espectro no qual adejam os versos de “enamoramento e seus antônimos”, porquanto é inerente a muitos amores elevarem-se às alturas e muitas vezes caírem por terra.
Quando a capa e depois as páginas iniciais de “Asas de Ícaro” se abrem, a sensação é a de se entrar num reino de querubins, tais são as ilustrações do artista plástico Adir Sodré, imagens que dinamizam potencialmente tudo o que possui existência aérea, ou então, do ar necessita. São anjos entrelaçados em flores, peixes, pombos, que tangenciam instâncias significativas do ser. Anjos anímicos, insurgindo-se no espaço físico da página e deflagrando emoções. Esses querubins se abraçam, dormem, sonham, revoam, dançam, suspiram, amam e sugerem, acima de tudo, perspectivas do amor.
O amor permeia a poesia desde sempre e tem sido uma constante na obra de um sem número de poetas. Dante Alighieri canta “O amor que move o sol, como as estrelas” e Carlos Drummond de Andrade louva “a magnitude” do verso de Dante na epígrafe de “Amar se aprende amando”. Também em Fernando Pessoa é muito visível a faceta amorosa, sendo magistral quando diz: “O amor é uma companhia”. Um outro exemplo da dimensão desse sentimento encontramos em Adélia Prado com “O sempre amor” cujos versos dizem: “Amor é a coisa mais alegre / amor é a coisa mais triste / amor é coisa que mais quero”.
Através da produção de Ivens Scaff, vemos a poesia, uma vez mais, atendendo a esse tópico universal. Sendo o momento de referir que há vários fatores a considerar quando se trata dessa temática tão presente na lírica secular. Ana Santana Souza, num ensaio (Col. Mulher & Literatura, v. 2) traz pontos de interesse sobre a presença de Eros na escrita, quando diz: “O poeta é esse ser terceiro que fala de um outro lugar, o do amor. O sujeito amante é também um sujeito falante. A fala é o Eros que move o mundo, assim a poesia é um texto amoroso onde o sujeito define-se enquanto ser”.
Certamente, isso é apenas um esboço para desdobramentos, restando frisar que um poema por si já é um ato de amor, podendo estar num “Passaporte”, primeira composição de “Asas de Ícaro”, processada nos labirintos íntimos do poeta, na contemplação afetuosa de um retrato. Ouve-se logo a mesma conjugação de afeto e poesia em “Pensares”: “Com apreensão penso em ti / penso em nós / (folhas na tempestade). E o que são os amantes, senão “folhas na tempestade”?
Em termos gerais, chama a atenção o fato de a memória amorosa ocupar um espaço central nos “versos de enamoramento e seus antônimos”, estando muitas vezes velada, essa memória, pelas sutilezas da lírica. Alguns poemas de Ivens Scaff materializam-se no gosto das singelezas básicas, a exemplo de “Ovo frito”, um signo desenvolvido através de várias associações de grande efeito.
Escrevendo com vivacidade, humor e sábia utilização da bagagem sentimental, o poeta subverte adoçantes que possam saturar o tempero do poema amoroso. Os versos, breves em sua maioria, ostentam uma clara simplicidade léxica e trazem imagens que remetem a um histórico afetuoso do ontem e do agora. Nessa aventura lírica, o autor desvela uma “Beleza”, confessa um “Labirinto”, aponta um “Estranhamento” e lamenta um distanciamento em “Cada vez”, aproximando-se de um conceito de felicidade no amor proposto por Thomas Mann, escolhido para epígrafe do livro.
Ivens Scaff, além de fiel ao próprio universo interior, capta e utiliza um conjunto expressivo das diversas circunstâncias do homem diante da vida e do amor, e diante ainda dos fatos e inquietudes que cruzam o percurso humano, seja nas dimensões da urbe ou do mundo. Depois do último poema, “Amor”, ao encerrar o livro e fazendo jus ao caráter manhoso da poesia (afeita aos disfarces da voz que fala) o poeta deixa uma ardilosa pergunta que vale a pena analisar de perto.