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Paulo Sesar Pimentel
Natural de Mato Grosso do Sul, mas residente em Mato Grosso há mais de 20 anos. Graduado em Letras, Mestre em Estudos de Linguagem e Doutor em Psicologia, é professor do IFMT Campus Cuiabá – Bela Vista. Publicou as coletâneas de contos “O cão sem penas” (2014), “Diário de Uma Quase” (2010), “Café com Formigas” (2005) e “Ângulo Bi” (2002 - com outros autores mato-grossenses).

ÁGUA, LAMA TERRA, FULIGEM, AR


Do pó vieste, ao pó voltarás!
(Gênese 3, 10)

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
(O cão sem plumas. 
João Cabral de Melo Neto)

Acordei com o apito da fábrica. Por que essa terra que nos cobre, essa fuligem oleaginosa? Tomei banho ontem à noite, antes de dormir, era tarde, tão tarde, mas eu precisava despregar o mundo de minha pele, precisar arrancar da carne o que não é carne. Lembrei-me que um dia, Jesus misturou terra à sua própria saliva, formando um barro, que colocou sobre os olhos de um cego que lhe implorava ajuda, e o curou. A matéria do homem é a mesma que formou a Terra, o ser é plasmado do pó da terra, insuflado em suas narinas o sopro da vida, o homem vivo, caminhante da terra, na terra, eternamente na mãe. Por isso, ele o curou. Nosso corpo físico é composto de cálcio, fósforo, ferro, iodo, os mesmos elementos que formam a terra, o mais poderoso instrumento de cura. O poder é o filho de deus ou a mãe que sempre esteve abaixo de nossos pés? Independo disso. Todas as noites, eu preciso tirar, arrancar essa terra, essa fuligem oleaginosa que essa mesma fábrica que me acorda lança sobre os corpos e nunca me cura de nada, só me adoece, me dói, me mata. Houve um tempo em que as coisas eram diferentes. Agora não.


Acordei com o apito da fábrica e essa terra que nos cobre, essa fuligem oleaginosa, tirada ontem à noite, antes de dormir, bem tarde, já me empesteia, me gruda, me agarra aos lençóis trocados há poucos dias, que novamente hoje precisam ser substituídos. Tomo um banho demorado, deixo a água escorrer do topo da cabeça, cascata, cachoeira, pelos olhos, pela boca, pelo peito, por mim, pernas abaixo, em direção a um ralo levemente escurecido pela terra, pela fuligem que me cobre, de dia e de noite. Desligo o chuveiro e esfrego com força o sabão, faço espuma abundante, embranqueço em bolhas frágeis, deixo por um tempo, até sentir a pele amaciada, a pureza das células epiteliais, sozinhas, sem as impuridades que a fábrica lança ao ar. Ligo novamente a água e sinto escorrer um líquido meio grosso que entope o ralo, que se esquiva devagar em direção aos abismos sob meus pés. É impossível banhar-se duas vezes com a mesma água, já a sujeira que nos cobre é como uma mosca arisca que pousa, é espantada, levanta um voo rápido e depois retorna, vagabunda rampeira que busca no imediato uma razão de vida.


Saio do chuveiro, o corpo ainda escorrendo, os olhos já despertos para as nuances dessa manhã recém inaugurada por esse sol ardido, forte. A toalha me enlaça as curvas, se esfrega em minhas dobras, apêndices e reentrâncias. Sinto uma vontade doida de beber, um trago amargo, uma cachaça forte que me desperte os ânimos, que me entorpeça alguns sentidos.


Bebo num trago, olho o copo ainda em posição, descrevendo uma elipse perfeita em direção ao balcão que uso como mesa. Sua borda denuncia o uso. Do copo, da mesa, eu. Tudo nessa casa está encardido, tudo nessa casa cheira à degradação e abandono. Até eu, que insisto na limpeza, já estou novamente coberto por uma nata de suor, onde as minúsculas partículas de óleo, de imundícies várias, pousam suaves, acariciando a pele e tentando fundir-se a ela.

 

Há alguns dias, notei uma estranha transformação. Acordei pela manhã e, empapado de suor e fuligem e terra escura, senti uma coceira enquanto me dirigia ao banheiro. Todas as manhãs, eu preciso tirar a terra, tirar a fuligem, tirar o suor que conquistei inconsciente durante a noite. Isso ainda me faz sentir-me vivo, sentir-me humano – tirar, nunca acumular, que me embrutece. Mas nesse dia que acordei pela manhã, empapado, sumarento, mesmo tendo na noite anterior deixado a água correr violenta sobre meu corpo, escurecer-se e escorrer por um ralo, sempre escuro, sempre manchado, nesse dia, percebi pequenas placas na altura dos braços, placas metálicas que formavam uma pulseira, das mãos ao cotovelo. Elas estavam lubrificadas e lisas, brotando da pele, se estendendo como escamas de um ferro sujo, no caminho da oxidação. Puxei-as com as pontas das unhas crescidas e vi saírem, uma a uma, muitas, empilhadas sobre o chão do banheiro e deixando atrás de si, em mim, no que sobrou de mim, um líquido espesso, óleo, sangue, barro, não sei. Talvez eu devesse ter me assustado, quem sabe, ao menos gritado, ou gemido baixo. Apenas bati os dentes, gastei o esmalte, triturei as carnes da boca com os incisivos, os caninos, os molares. Saí do banheiro, a carne viva de meus braços chocando-se contra as partículas que flutuavam por toda minha casa, poluindo o ar com a fuligem dessa maldita fábrica que além de tudo apita insistentemente. Sai do banheiro e enchi um copo. Era cedo e eu estava molhado e machucado e nu. Enchi um copo com uma cachaça forte, ardida, e virei garganta adentro. Depois, deixei o tempo correr, esgotar-se. Apagado no sofá, acredito que no sono não houve sonhos. Um deslizar suave, uma fagulha se agitando contra a brisa, sátiros brincando com uma cinza no ar, um balé esquisito, uma dança gostosa aos olhos e inútil ao mundo.

 

Acordei com o apito da fábrica. Quantos turnos, três, quatro, todos? A fábrica trabalha ininterruptamente, dia e noite, de segunda a segunda, sem o dia do descanso do senhor? Mesmo sem olhar na janela, sabia que o tempo todo, em frente de minha porta, de minhas janelas, uma profusão de operários obedientes seguia rumo à grande entrada, uma bocarra com incisivos e caninos, sem molares, sem pré-molares, a se abrir para o calor da cidade. Eu dormi horas, talvez dias, talvez... acordei e era noite. Lembro-me do banho, lembro-me da cachaça, do sono profundo, não lembro nada. Olho meus braços e, novamente, vejo-os cobertos por uma mistura de poeira, terra, fuligem, cinza, metais oxidados que estão sendo lubrificados pelo ar. Há óleo escorrendo de mim, de meus poros e, triste, não desesperado, não louco, não fora de mim, mas dentro, percebo que a fuligem, o fumo ardido, não vem de fora, nunca veio de fora, brota de mim, vem de mim, está em mim, está em mim essa substância preta, pulverulenta, essa fumaça depositada nas paredes e no teto do meu corpo, nos canos que correm sob minha pele. A fábrica apita, mais uma vez e outra e mais outra e tantas vezes que não consigo mais contar, involuntariamente, ela apita. Ouço minha voz, uma boca sem dentes, já sem dentes, vejo manchas pretas, irregulares, esparramadas por meu corpo, vejo em alguns pontos, sulcos, reentrâncias, apêndices prateados, dourados, oxidados e eles se espalham, não tenho unhas para retirar e a pele dos dedos se confunde com o metal, é metal. Abro mais uma vez a boca para gritar, mas sou confundido com o apito da fábrica que brota no meu peito. Fecho os olhos e vejo o metálico cerrar a paisagem. Penso ver também vultos, pessoas, uma multidão, uma legião vindo em minha direção. De pequenas bailarinas de fumo e fumaça, eles se tornam humanos, vagamente humanos e pousam em mim. Começa o trabalho e eu durmo, não sei se feliz ou infeliz, nem sei se humano.

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