

Paulo Sesar Pimentel
Natural de Mato Grosso do Sul, mas residente em Mato Grosso há mais de 20 anos. Graduado em Letras, Mestre em Estudos de Linguagem e Doutor em Psicologia, é professor do IFMT Campus Cuiabá – Bela Vista. Publicou as coletâneas de contos “O cão sem penas” (2014), “Diário de Uma Quase” (2010), “Café com Formigas” (2005) e “Ângulo Bi” (2002 - com outros autores mato-grossenses).
DEPOIS DE ONDE
Convém que você conserve
a pele grudada,
cobrindo os ossos.
É preciso – cada vez mais
e mais –
esconder o esqueleto.
Na madrugada
os ossos ficam querendo
se descobrir, se mostrar.
Mas mantenha-os
quentes.
(ADVERTÊNCIA - Lilian Aquino)
Hoje, é segunda-feira.
Hoje, é domingo.
Ontem, foi sexta-feira.
Anteontem, foi quarta-feira, o dia em que mais chorei.
Não sei quando cheguei a este banco pela primeira vez, mas sei que, desde então, todos os dias venho a este parque, sento-me neste mesmo lugar e não falo com ninguém. Vezes houve em que havia pessoas ocupando meu assento. Pensei em gritar, pedir, atacar. Se eu cuspisse, atirasse fezes, urina, se eu tirasse toda a roupa e começasse a balançar os braços, como um louco... nada fiz – e farei - além de esperar. As pessoas que ocupavam meu banco, meu lugar no parque, na cidade, na vida, levantaram-se de mãos dadas e seguiram um caminho confuso.
Não sei quando cheguei a este banco pela primeira vez, mas, em todas elas, pude me sentar, às vezes, de imediato, às vezes, depois de uma espera interminável, sempre de costas para o nascente.
Talvez seja agosto. Como não guardei datas, apenas caminhei errante e, chegando aqui, sentei, pode ser que em outubro tenha começado. Faz dois anos – ou onze. Só sei que este banco é um ponto fixado num mapa mágico e eu preciso todos os dias sentar e esperar. Primeiro, eu não sabia o que esperar. Apenas sentava e ficava, nos idos de uma terça-feira, em julho ou dezembro, ou teria sido uma quinta-feira, em abril? Apenas me sentei, naquela primeira vez, domingo, e fiquei de frente para no norte. Era outono e as folhas caíam desoladas. Então, elas vieram.
Tenho a certeza de que estou no parque em Amsterdam. Ou Marrakech. Sei que hoje é dia primeiro, ou dia dezessete. Estamos bem no meio do começo da semana, ou no começo do meio do ano. Sentindo o sul que sobre ao meu lado, elas já chegaram e era verão.
Da primeira vez que vieram, eu não as esperava, ainda que soubesse que este dia chegaria. Cheguei a este parque, no Japão, num fim de tarde, quando o sol se escondia no leste. Não era a primeira vez que eu vinha, era a primeira vez que elas vinham. Pousaram em meus ombros, duas, amedrontadas pelo calor que soprava do deserto, naquele meio-dia, siroco anunciando o atracar de um navio de guerra.
Elas vieram de todas as partes e pousaram em mim naquele inverno insuportável. Suas bicadas eram suaves, como carinhos, como carícias, como sentimentos injetados na carne, nos músculos, nos ossos, como socos, como tapas, como empurrões auxiliados pela gravidade. De frente para o mar cristalino de uma desconhecida praia australiana, onde decidiram colocar aquele parque inglês, eu estava sentado, pela milésima noite seguida, com mil e três histórias de morte e de vida, e elas bicavam tão suavemente e, ao mesmo tempo, de modo tão firme, tão certeiro, que eu ninava sonhos sombrios. Eu sabia que, depois das três primeiras (ou seria só uma), outras viriam. E vieram. E em suaves afagos, naquele sábado, elas festejaram o mês, daquele ano bissexto, comendo alqueires de minha pele. Preservaram meus olhos, pois elas deviam saber que eu perambularia por toda a cidade velha e, no dia seguinte, pegando o elevador, da cidade velha para a novíssima, precisaria voltar para elas, como a fome sempre volta ao estômago, como o soco sempre volta aos dentes, como a alma sempre se perde na carne.
Neste primeira vez, ou foi na sétima, décima terceira, ou não importa o dia, que era primo, eu sabia que voltaria, cada um dos trezentos e sessenta e todos os dias do ano para elas. E elas me esperavam. Depois da primeira, ou da terceira, ou da décima sétima, vigésima terceira, eram dezenas, famintas, mas gentis, a me morder com dentes invisíveis toda a extensão do corpo. Sempre naquele banco, sempre de frente para o sol, que geralmente se escondia em tempestades de neve e ventos frios daquela impronunciável primavera. Era o último dia antes do solstício, ou seria o equinócio?, e elas vinham em rodeios no ar, serpenteando um bailado fúnebre e natalício, esperando adestradas eu me sentar naquele banco de frente para aquele parque que encanta Moscou, ou entristece o México. Se o casal de apaixonados não saísse, que vontade sempre me deu de jogar pedras, de empurrar, de espantar as pessoas do meu lugar no mundo, naquele velho mundo onde havia um banco, para onde o tempo e o a que horas do espaço convergiam.
Não sei quando cheguei a este lugar pela primeira vez. O barco que ancorei ali em frente, nas águas calmas do mar do norte, sem saber de onde vinha, já foi levado pela força das águas do Pacífico, gigante e impassível. A cor do saveiro, ou seria escaler, uma baleeira, ou um bote, meia chalana, balsas inteiras, amarelo-ouro ou vermelho-sangue, desbotou-se e a madeira lentamente apodreceu e afundou, flutuando em cinzas que cobrem a Amazônia. E eu, sentado, com elas cobrindo meu corpo e bicando cada centímetro de pele, num farfalhar de penas, peles, pelos e cascos, arrancando nacos que vinham molhados de vida, olhando, olhando e pensando que ainda tinha olhos, mas não lábios, nem língua, nem diafragma, nem sonhos. Naquele Congo desolado de setembro, até então...
Não sei quando foi a primeira vez, mas sei da última. Sempre famintas, eu cheguei, sentei e elas cobriam meu corpo. Aquele banco tinha uma posição perfeita para ver o oeste, um pôr do sol vibrante e colorido. Elas mordiam com mais veemência e uma delas, depois outra, mais uma, outra, outra e outra e, por fim, a última, chegaram ao meu rosto, uma para cada abertura, e entraram. Neste dia, lembro, era maio, e eu não tinha mais carnes que me prendiam à terra, aos dias, aos lugares, aos meses, aos pontos cardeais, às estranhas estações dos anos. Era o último suspiro daquele mês, e eu não tinha sangue que me confundisse com o marulhar das águas, rasas e profundas, de todos os mares. Então, voei – ou foram elas, cheias da minha carne, do meu sangue, que voaram. Mergulhei e afogado em terra, abri os olhos e chorei, líquido amniótico lubrificando meu deslizar no novo mundo.
Eu voei para o outro lado do mundo. Eu me afoguei em todos os mares. Cada terra sepultou-me inteiro.
Aqui estou.
Que este caminho de desgraças comece.
Sobrevivi à não-existência; sobreviverei à vida e às suas prisões.