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Paulo Sesar Pimentel
Natural de Mato Grosso do Sul, mas residente em Mato Grosso há mais de 20 anos. Graduado em Letras, Mestre em Estudos de Linguagem e Doutor em Psicologia, é professor do IFMT Campus Cuiabá – Bela Vista. Publicou as coletâneas de contos “O cão sem penas” (2014), “Diário de Uma Quase” (2010), “Café com Formigas” (2005) e “Ângulo Bi” (2002 - com outros autores mato-grossenses).

A VERDADEIRA DOR

Já fazia alguns dias que fora sequestrado. Não havia como precisar quantos. Estava fraco. Uma ração daquelas, por dia, quem se mantem em pé? Mesmo água, regrada. Fome de tudo. A liberdade é cara, mas tanta coisa boa que vem junto. Será cara a liberdade ou os seus acessórios? No final, pensando, a única coisa a se fazer no claustro, chegou à conclusão de que não sabia definir liberdade. Saberia definir algo? Por mais que seu cérebro se esforçasse, algo escapava, talvez fosse a fome, a sede, o medo, a dor. Talvez apenas o contato cara a cara consigo mesmo, sem ninguém ver quase o dia todo. Sabia mesmo que queria cama, comida, água correndo pelos poros, água mineral descendo pela garganta, gelada, tomada em um copo de cristal, pois o ritual às vezes é mais importante que a necessidade. Pensava nos seios de Mocinha, tão em flor, a moça, tão em flor seu sexo, aberto ao mundo, escancarado às vontades babentas de um velho sátiro. A esposa em casa, gorda e vestida, ornamentada de joias, rica, por ele, há tantos anos, com a alma do primeiro milhão no dia anterior.


E agora preso. E agora sem nada que não vontades e carências. No fundo, ansiava pagassem o resgate e calassem a dor. Não, não a vergonha de ser tratado como bicho, porque mesmo a dignidade é uma vaidade supérflua. Dor mesmo, na carne, em feridas vermelhas, em cancros abertos, em lascas de pele, em amputações. Aí a verdadeira dor. Todos os dias, eles vinham e cortavam um pedacinho dele. Começaram pelos dedos. Pensando bem, a julgar pelos pés, dez dias. Ao olhar para as mãos, primeiro a esquerda, depois a direita, mais três dias. Ao menos ele podia escolher. O pé, sapato cobre, o pé, sapato esconde. Ele tinha uma coleção de sapatos argentinos e italianos, caros, suficientes para aplacar a dor, que começa com os olhos. Na mão, mínimos e anulares não fazem tanta falta. Ao menos o anular esquerdo não carrega mais o compromisso e, talvez, à merda a patroa gorda, emperiquitada, enfeitada às turras pra esconder sua frustração. Quem sabe Mocinha, do subúrbio pra sociedade, do desconhecimento para as revistas da moda, tão linda, tão em flor, brilhando nas colunas sociais e despertando o desejo dos machos no cio da cidade. Dele. Minha. De mais ninguém. Só sair dali. As faltas se compensam com dinheiro. Defeito tem mesmo é pobre. Ele teria necessidades especiais. Isto o tornava até mais charmoso. Olha, aquele não é o empresário que foi sequestrado, torturado, passou dias no cativeiro, mas saiu de lá, ergueu-se das cinzas, tornou-se mais titã? Sim, é ele, e está charmoso, velho e charmoso, melhor, experiente e charmoso. Aqueles cabelos grisalhos cada vez mais brancos dão a ele, junto com a cintura, um ar de prosperidade e sabedoria que só quem viu a morte de cara tem. Quem viu a morte e ganhou dinheiro. Nessa hora, ele sorria, mesmo sentindo as hemorragias nas extremidades, mesmo sentindo a dificuldade em mover os músculos da face, inchados de tanta precaução dos bandidos. Mas vivo, prestes a viver com Mocinha, em flor, prestes a mandar uma esposa, árvore de natal o ano todo, sem presentes, ao inferno. Podia sentir a pele fresca, tão fresca, sorri pensando em uma peça rodrigueana, pensando que todas as mulheres deveriam estacionar nos quinze anos, na pele macia, pós-espinhas, pré-rugas, recém-menstruadas, ainda com o doce da pureza a escorrer nas coxas brancas, nada de marcas de sol, nada de marcas de pecado ou desejo, corpos na areia, numa espécie de grande mercado de carnes, nada de marcas na alma, homens suados exercendo sua animalidade na flor. Uma moça, ainda com pudores, quanto mais, melhor. Com dedos rápidos, a afastar dedos rápidos, que se esgueiram por suas fendas, dedos ágeis que arrancam o prazer da moça, mesmo quando a boca grita não e a raça, o instinto, insiste no sim. Dor mesmo é perder isso. Dignidade é algo que se constrói quando os ventos são favoráveis. Não tocar Mocinha, seus quinze anos em flor, é matar a alma, é morrer em guerra, é sofrer o céu abandonado por Deus. Ah, ele perdera alguns dedos, perdera algo, perderia mais, talvez. Se aquela esposa desgraçada não pagasse o resgate, se aquela mulher horrorosa que ele pensara amar, um dia, na época dos cabelos negros naturalmente, não pagasse o valor pedido pelos bandidos... o que seria dele, dia a dia, na promessa dos bandidos, a perder partes do corpo, ora essa. Deus fora generoso com os homens, dera a eles pingentes e apêndices que, à frente do corpo, avançando à frente do corpo, ofereciam o mundo como conquista. Agora, na palavra dos sequestradores, ele tinha que escolher o que perder, como se seu corpo fosse a grande loteria da carne, e ele, a enfeitada mulher que gira o globo e retira as bolas, numeradas, dando a felicidade a algum desgraçado, a loteria da carne. Não, as bolas não, metáfora cruel para alguém naquela situação. Ele podia dizer que parte seria cortada e enviada à esposa, na tentativa de convencer a megera de que era séria a ameaça. Esgueirando-se em sua mente, de repente, começou a surgir uma certeza, um medo, uma consciência. E se? Tremia e, sentindo o corpo chacoalhar, sabia que mais sangue seu vermelhava aquele chão imundo. Ele, um prócer daquela cidade, daquele estado, tão respeitado, tão admirado, tão amado. Ao menos por Mocinha, em flor, que lhe pagava os confortos físicos com braços quentes e envolventes, dóceis e ágeis, como a língua dele, como a língua dela. Ah, perder o paraíso. Perder a árvore do bem e do mal que a menina de quinze anos traz ainda entre as pernas. Caso passem os quinze anos, a fruta apodrece, se ela for colhida aos quinze, desgraçados os que tentarem naquela árvore saciar a fome. Um sátiro. Um safado. Com tanto medo. Os libidinosos, os viciados, os dependentes, toda corja repleta de pecados, tem algo além a que se apegar, sentem mais.


Eles entraram falando entre si. O homem se encolheu. Nova parte, novas perdas. A mulher, matrona safada e enfeitada, sentada no sofá de couro tratado, branco que doía as vistas, com a mesa de carvalho à frente, com uma jarra de cristal cheia de suco natural recém-batido, adoçado com leite condensado, calorias em lata para pelancas em corpo, estalando os beiços pintados, pendidos pela última aplicação de polímero, grandes e gordos, combinando com os seios, com a cintura, com a alma, com a mesquinhez. As amigas ao redor, ar choroso da esposa, leitoa de natal com uma maçã na boca, chorando não ter como pagar o resgate. E tinha. Tanto dinheiro, ela sabia onde estava, tudo, quase tudo, o suficiente pra pagar pela vida dele, que dera uma vida a ela, páginas e páginas de revistas de fofoca, a madame, viagens para Europa, fim de semana na casa de praia, na casa de campo, vadia gorda. Dor mesmo é aguentar aquela mulher por tanto tempo. Mesmo sem Mocinha, mesmo sem a flor, tantos jardins a se visitar, tantos parques com plantas exóticas que pedem pra ser conhecidas, e a boa e velha instituição, o medo de ser mal falado num casamento ferrado. Mesmo infundado, dor mesmo era continuar naquele barco. Agora sabia, mas talvez não resolvesse esse problema. A mulher, talvez, não pagaria. 


“Então, o que você escolhe perder agora?”


Já não podia assumir um casamento, agora não poderia assumir um noivado. Com uma dor lancinante, a faca devia estar cega, ou havia prazer na coleta da prova, ele sorriu. Agora, as instituições eram impossíveis, fisicamente impossíveis, meu amor, pensou em dizer à Mocinha, levantando uma taça, alisando a toalha de linho da mesa. Pra mim, alianças só na palavra. Sorriu, abertamente, e parecia o riso um esgar. Tão distante Mocinha, em flor, tão distante a mesa cara, elegante, tão distante seus dedos restantes no meio das pernas da moça, Mocinha, em flor. Levou um tapa na cara, dedos espalmados do bandido, os cinco no rosto, apenas três em cada mão, os próprios. Não teve tempo de explicar que o riso vinha da ironia. Talvez também houvesse a necessidade de explicar o que é ironia. Caído no chão, dormiu, desmaiou, apagou, que diferença faz?


Escuro no claustro. Deve ser noite. Sombras opacas ainda permitem alguma visão. O toco de hoje ainda sangra, dói. Não há humilhação. Não há sonhos com Mocinha, não há flores. Fecha os olhos e vê a patroa. Roncando alto, afogando em banhas uma respiração difícil, dispneia e baba, lençóis egípcios, oitocentos fios de linho puro, alvo, branco, claro, nevoento. O famoso sono dos justos. A leitoa que carrega no anular seu nome, carrega na bolsa sua conta, carrega na cabeça suas senhas, carrega no pescoço seus ouros, carrega nas costas sua vida, mais magra, muito magra agora, tantos dedos, quatorze, perdidos. Ela não pagará. Nada, nem um centavo para esses marginais, uma hora dessas, meu marido já deve estar morto, consciência em paz, não há nada a fazer, ninguém sobrevive a tantos dedos na vida. No tempo presente, ela dorme na paz do impossível, na paz da impossibilidade, na paz do outro. Ele agoniza, marido cativo, e pensa no que sobra pra cortar, pensa no que sobra pra perder, pensa no que pode ganhar e a balança pende contrária à lógica. Ele chora e nas lágrimas ainda abundantes, descobre o que é dor, dor mesmo, e percebe que elas são tantas que nem tem dedos, mais, pra contar.

© 2019 - Revista Literária Pixé.

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