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Olga Maria Castrillon-Mendes 
É professora e pesquisadora da literatura brasileira. Autora de Taunay viajante: construção imagética de Mato Grosso (Cuiabá: EdUFMT; Cáceres: EdUNEMAT, 2013); Discurso de constituição da fronteira de Mato Grosso www.unemat.br/editora, 2017 e Matogrossismo: questionamentos em percursos identitários (Carlini & Caniato, 2020).

PIXÉ – Tradicionalmente, a crítica literária é vista como um espaço de seleção. Coutinho fazia duras críticas às resenhas impressionistas nos jornais e Candido reivindicou esse poder de classificar. A crítica, na visão dele, tornou-se tão importante quanto a obra e o autor porque compõe um sistema. Não é muita pretensão? Ou é isso mesmo? Qual é o papel da crítica especializada no Brasil e em Mato Grosso? Ela faz alguma diferença para o público leitor? Os trabalhos científicos nos estudos literários impactam de algum modo o mercado consumidor? Chegam a pautar leituras em sala de aula? Têm o condão de influenciar o leitor comum?

OLGA MARIA – Eu diria, repetindo alguns, que a canonização está ligada ao politicamente correto e poucos são os que têm coragem de dar visibilidade ao crescimento (e fortalecimento) da repetição, pensando em outros eixos de produção. As instituições geram certa desconfiança na discussão do próprio cânone. É compreensível que seja assim, pois como construção histórica passa por transformações - mutatis mutandis. Antes ocupando espaço fértil nas páginas dos jornais de grande circulação, mas atingindo uma camada privilegiada de iniciados/letrados, a crítica salta das páginas diárias ou semanais para os cursos de letras. E essa é uma questão do cânone e da crítica. Então, o conjunto de reconhecidos valores estéticos que norteiam a crítica, liga-se necessariamente às instituições de poder social e ao conceito de literatura.

Literatura já foi tomada como uma forma de conhecimento, um projeto, ampliação da leitura, extensão do saber e da ação da obra. A história literária dá conta de demonstrar esse processo. Afrânio Coutinho, um clássico dos ensaios críticos, inaugura os debates da crítica e da teoria nos jornais e seu pensamento passa a ser referência até os anos 1960-70. Sua proposta é despertar o prazer do texto a partir de uma análise integral do objeto artístico (o texto) de valor estético com base em valores éticos. Sua doutrina intrínseca é oposta à extrínseca assumida posteriormente por Antonio Candido e outros que tomaram por base a sociologia. Candido, não abandona o método estético, mas coloca o “externo” da obra como parte da análise, tendo em vista sua formação mais militante. Desta forma, ele organiza a reflexão de Coutinho para criar seus próprios mecanismos de compreensão do conceito de literatura dos anos 1950 em diante, levando em conta a formação da literatura brasileira no momento de dar visibilidade ao “sistema” literário para um Brasil oriundo da cultura colonial. Esses dois intelectuais se completam no universo de compreensão dos caminhos do pensamento crítico. Para Candido era necessário racionalizar as bases de sustentação romântica para propor a constituição de uma identidade nacional. Então, a meu ver, o papel da crítica está na contribuição à sistemática do pensamento de época. Quanto mais corajosa, melhor ilumina o período; quanto mais abrangente, menos sectária.

Em Mato Grosso penso que estamos em processo de construção de um espaço de produção, embora ainda restrito às instituições. Se o jornal e a mídia em geral oportunizassem o diálogo cultural de abrangência da crítica, certamente o panorama seria diferente, menos tímido. Os bancos de dissertações e teses são de acesso restrito. O grande público, adepto das leituras rápidas, acessa as redes sociais que têm se mostrado eficiente nessa construção. E para o leitor comum pouco interessa se Paulo Coelho não está sendo visto, ou se Jorge Amado demorou a entrar na academia, tanto quanto a temática popular. O leitor comum consome a literatura que está mais acessível. Certamente, não é a erudita. Talvez esse panorama esteja passando por singelas modificações, o que será salutar para a difusão do texto literário, o único meio possível de atingir o grande público, que obviamente não está restrito às salas de aula.

PIXÉ – Para quem o escritor contemporâneo escreve? A pergunta justifica-se com o gargalo do mercado atual. Em geral, há mais autores, mais editoras, mais gente estudando literatura. No entanto, a tiragem nacional diminuiu de 3.000 para 2.000 ou, no caso de poesia, apenas 1.000 exemplares. Provavelmente, a tiragem regional também seguirá essa tendência. Em Mato Grosso, publica-se 200 a 300 livros na primeira tiragem. As editoras passaram a imprimir por demanda. A que se deve esse fenômeno? Os escritores e as editoras não conseguem se comunicar direito, o público se afastou da leitura, ou a literatura realmente é um biscoito fino demais para o povão? Em que círculos discute-se um lançamento literário? Ainda existe isso?

OLGA MARIA – Silviano Santiago, em Vale quanto pesa (1978) demonstra um panorama da impossibilidade de se viver da escrita no Brasil. Num universo de 110 milhões de brasileiros, apenas cerca de 50 mil eram leitores. O panorama não mudou muito, mesmo atualizando os dados da população. Temos que levar em conta hoje a concorrência da internet, das resenhas prontas em detrimento da exigência da leitura integral dos textos, os best-sellers de mais fácil aquisição e outros meios de facilitação da leitura, além da ausência de uma política de estado para a educação e a cultura que privilegie a leitura. O cenário social se complica com as transformações da vida, inclusive nas cidades mais afastadas das metrópoles. São inúmeros os fatores contrários à formação de um bom leitor no contemporâneo. No entanto, nunca se produziu tanto e nunca outras cartografias estiveram em evidencia. Um paradoxo, portanto, mas que tem demonstrado uma efervescência nunca antes vista. A interação de mercados, a explosão de eventos ligados à literatura, o acesso às mídias que dá acesso à figura do escritor divulgando a própria obra, tem desenvolvido um novo campo literário. São outras realidades urbanas e os consequentes problemas sociais e políticos que tem dado margem para a autoficção, uma literatura mais ensimesmada. E não é mais o eixo sul/sudeste/nordeste, mas a desestruturação do local. Fala-se do que é comum a todos os espaços e fala-se para os jovem das periferias, os ativistas, os grupos experimentais. O leitor é cumplice e chamado a olhar pra dentro de si mesmo; o humor é debochado, ao mesmo tempo em que o olhar é lírico e melancólico e a poética é informal. Os temas são tirados do cotidiano, da cultura pop, da alienação, das questões das diásporas, dos traumas e uma forte tendência ao segredo profundo a ser revelado, o não dito, o interdito da linguagem e do ser. Então, o ecletismo renega o rigor e formulação de conceitos e juízos? Ou o momento é de re-ver o processo que constituiu a literatura a partir do foco eurocêntrico? A desconstrução do “centro” e do cânone não está cedendo espaço para a substituição de um cânone por outro? São observações curiosas sobre uma “guerra” contra o cânone e a necessidade de consagração imediata que torna a discussão árdua e árida.

Eu diria que o escritor está entre a tradição criada para entretenimento e a modernidade da proliferação de plataformas de leitura. A relação leitor/texto literário se transforma. A generalização e a formulação dos conceitos e juízos são diluídos e a criatividade se torna espontânea. Ao mesmo tempo em que o texto se transforma em material de consumo, as dificuldades do acesso e a distribuição são paradoxais. O que não deixa de ser uma busca histórica, tanto da revitalização do texto quanto do papel do leitor como elemento principal da cadeia produtiva do livro. É o tempo da pressa, da fluidez, da sensação de finitude. Daí talvez a necessidade da publicação. Publicar para marcar o lugar da memória, a imortalidade. Por outro lado, as crises do contemporâneo que isola e massifica o indivíduo leva-o a consumir objetos de necessidades vitais. E o livro não está na lista. É uma questão de poder simbólico estabelecido no âmago do sistema, na ideologia, na interferência direta do Estado na vida do cidadão. Essa crise, sendo econômica e social é abrangente. Então o que se sobreleva são as emergências. A literatura passa a ser um “biscoito fino” sim, pelo menos a literatura como a concebemos como extensão do saber e da ação da obra. Nesse sentido, não há grupos de ação cultural que faça frente à demanda exigida. Quem participa(va) de um lançamento literário? Só com a pandemia o público conseguiu ter acesso a ele. Acredito que as atitudes culturais híbridas são bem-vindas para o exercício de revisão da desconstrução das últimas décadas, numa perspectiva de avaliação dos movimentos e estratégias decorrentes deles. Ao serem colocadas em xeque as autoridades opressoras, novos caminhos se abriram para as literaturas emergentes e a cultura de massa. Claro que não é uma discussão nova. Já era pauta de Umberto Eco ao discutir sobre a literatura-prazer oriunda do XIX, o super-homem das massas e a cultura popular. É a histórica e necessária relação com a fantasia. Esse é o fato existente que supera todas as crises editoriais, tiragens reduzidas e mesmo a situação de margem a que se reduzem as produções. No entanto, há que atentar para algumas reviravoltas centralidade versus periferia que se move como fala Alfredo Bosi. E é preciso acompanhar para analisar, buscando colocar a literatura no centro de toda a discussão, evitando adotar atitudes que favorecem a “moda mix” na cultura e nas artes, pois quem tem que ser atendido em suas necessidades é o leitor.  

PIXÉ – Você é uma leitora experiente que tem a sorte de não ter perdido o encantamento. Pelos seus artigos, ensaios, apresentações etc, percebe-se que sua leitura não sucumbiu à monotonia das análises críticas que mais parecem necrologias. A literatura é viva e desperta admiração. Parece que uma crítica muito formalista revela como a mágica acontece. Nesse sentido, é preciso deixar uma mensagem à geração de críticos do século XXI. Na sua opinião, como devem tratar o texto? Decompondo-o sob um ponto de vista teórico? Psicologizando? Sociologizando? Historicizando? Afinal, onde foi parar o prazer do texto? Até mesmo do texto crítico, por onde anda a fruição?

OLGA MARIA – Durante meu percurso leitor passei por variadas tendências da linguagem, da história e da crítica literária, buscando assegurar uma posição teórica sem paixões dogmáticas, por entendê-las como construções (leia-se invenções) históricas, adotando essa postura que, de certa forma, acomoda a diversidade de concepções, sem deixar de polemizar, mas conformam estratégias de compreensão. A perspectiva histórico-social propicia constantes revisões. Quando Sartre publicou “A arte de escrever” em O que é a literatura na década de 1930, disse que “o mundo pode passar muito bem sem a literatura, mas pode passar ainda melhor sem o homem”, estava a tratar a literatura numa perspectiva formal, numa historicidade pós-estruturalista e existencialista. Sua herança teórica foi de tamanha envergadura que quase meio século depois, Roland Barthes inaugurava sua famosa Aula no Institut de France, retomando o conceito de literatura como mathesis (lugar de saberes) e mimesis (lugar de fulguração do real), ancorado, portanto, na tradição. A forma continuou a tomar conta do debate, mesmo numa visada semiológica. O diálogo entre ambos pode ser considerado atual, pois ainda se fala em desaparecimento ou não da literatura, acentuado pelas ideias de multiculturalismo dos anos 1990 dos latino-americanos e franceses capitaneados por Jacques Derrida. Importa para eles não perder a responsabilidade ética.

Muito forte nos tempos do jornalismo literário, a crítica assume, nesse processo, novo papel de rever a desconstrução das últimas décadas. Isso não significa que vamos chorar o leite derramado do passado, mas avaliar os movimentos que nos envolvem para garantir o espaço dos estudos especificamente literários. Concordo com Leyla Perrone-Moisés quando afirma que a diminuição dos debates em torno da crítica é sintoma da sua diminuição como atividade. A crise da crítica é decorrente de outras crises: do sujeito, da representação, dos valores, enfim da própria instituição literária e também do livro, muitas vezes fadado a desaparecer. No entanto, não é o livro que está ameaçado, mas o formato que vem sendo adotado e as consequências diretas no comportamento humano. Quem se isola com um livro nas mãos? A concentração e a paciência da leitura combinam com a avidez do cotidiano? Nesse sentido, a concepção de literatura desde o século XVIII e, consequentemente a ideia de crítica se tornaram fluidas demais para suportar as transformações sociais e culturais. O ócio criativo herdado da polis grega está ameaçado e o tempo de maturação das ideias, tão necessário à fundamentação dos argumentos, está em crise e a atividade crítica ameaçada.   

PIXÉ – Você estuda a literatura mato-grossense há mais de 30 anos. Começou com a abordagem de Taunay e lançou recentemente o Matogrossismo. Nesse percurso, você visualiza algo diferente no século XXI? Se pudesse jogar nessa incerta loteria crítica, apostaria em alguma tendência literária? Qual seria ela? Prosseguindo nessa reflexão, qual seria o lugar de Mato Grosso no panorama nacional?

OLGA MARIA – A atividade crítica supõe valores de época, mesmo que sejam valores provisórios e são consensuais a determinados grupos de poder. É preciso construir argumentos sobre determinado assunto e comprová-los de modo a garantir certa autoridade no assunto. O julgamento crítico é respaldado por esse conjunto de conhecimentos reconstruídos e reelaborados de acordo com as próprias concepções ideológicas. Então é como construir um edifício: da base às colunas de sustentação das paredes e do teto. É uma metáfora determinante da caminha intelectual que solidifica juízos reflexivos e não determinantes. Aponta e, ao mesmo tempo, dilui convicções.

Na tentativa de compreender o Brasil a partir de suas margens, de uma cartografia não conhecida em sua totalidade orgânica, no meu caso Mato Grosso, tinha que dominar o complexo de formação cultural que passa pela compreensão do complexo político e social constituidor da ideia de Mato Grosso. Antes mesmo de assumir compreender o período de formação da nacionalidade e da literatura brasileira, com os estudos de Taunay, tornou-se necessária a construção da base dessa ideia de colonização e de romantismo que fui encontrar nos textos de viagem. Dominar uma pequena parte de imenso universo cultural da viagem e dos viajantes me forneceu valores consensuais e argumentos sociológicos, de história e teoria literária que foram determinantes para sustentar o julgamento estético. Ao abraçar as concepções dos romantismos que dominaram o mundo e se particularizaram no Brasil, foi possível emoldurar conceitos básicos de natureza e de paisagem responsáveis pela imagética de Mato Grosso. Ou seja, Taunay é tributário dos escritos de Humboldt, não como ponto fixo, mas construção móvel que não dilui a perspectiva de outros olhares e de encaminhamento do exercício artístico. Nesse sentido mais abrangente, pensar Mato Grosso é muito complexo. É estudo para muitas vidas. 

Então, Matogrossismo aparece como certa “costura” dessas ideias à constituição do meu percurso rumo à compreensão da modernidade e do contemporâneo na literatura brasileira. O efeito bumerangue desse percurso tem sido iluminador das novas (e incertas) perspectivas. Não há como ser crítico do seu próprio tempo, no máximo você pode ensaiar algumas ideias. O distanciamento histórico é necessário à maturação do objeto analisado. Como estamos carentes de valores consensuais que sustentam os argumentos, a atividade crítica se torna problemática, mesmo porque se discute hoje mais o cânone ligado que sempre está a uma elite intelectual. Então, mais que apostar numa possível tendência literária, prefiro apostar na re-visão do processo de desconstrução das últimas décadas. Afinal a literatura se dilui na cultura ou é uma proposta estética de alternativas para representar o mundo?! Nesses casos, há mais perguntas que respostas. Nossa função é estar atentos e abertos a elas.

 

PIXÉ – Mato Grosso é um estado periférico ao se tratar de mercado consumidor de literatura. Atualmente, o único nome mato-grossense que é conhecido nacionalmente é Manoel de Barros. Temos Joca Terron publicando por editoras nacionais. Ultimamente, tivemos Holloway ganhando o Prêmio Sesc e Divanize na final do Jabuti, dois autores que estão longe de serem tomados como regionalistas. O que aconteceu com o antigo conceito de regionalismo? Perdeu o viço? Não conta com o antigo interesse nacional? Sofre com uma divulgação deficitária? Ou, em Mato Grosso, essa literatura regional dos últimos 100 anos realmente não é tão boa assim?

OLGA MARIA – Como todo conceito, o de regionalismo passou pelos mesmos padrões de desconstrução, embora ainda existam adeptos da ideia de localizar a produção não canônica. Para além do já bastante conhecido axioma que apregoa que toda obra antes de ser universal é regional, não cabe mais tentar definições. Os interesses são outros e os sentimentos oprimidos ganham espaço. Não que eles deixaram de ser tema, mas são trazidos sob outras perspectivas, livres das heranças pré-estabelecidas. É falar de si para falar de um mundo desejado para todos; é buscar a liberdade de expressão da poética informal. É interessante é rever o percurso do regionalismo na literatura brasileira e o tanto que ele contribuiu para estigmatizar outros eixos de produção para compreender o complexo cultural da produção contemporânea.

O panorama que você cita é paradigmático. O que importa é o resultado que o escritor apresenta ao leitor, o tempo da experiência humana, do tempo vivido, das representações sobre as sociedades do passado que são compartilhadas à medida que se presentificam. Chamo em meu socorro uma ideia do Érico Veríssimo ao dizer que o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade do seu mundo, evitando que, sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Não é o que a literatura continua a fazer?

É muito lacunar opinar sobre uma centena de anos. O que se pode conscientemente fazer é atestar o observado e vivido, mesmo porque daqui a muito menos tempo já serão ideias obsoletas. Entre o anterior fenômeno da solidez histórica e a “modernidade líquida” de produção fugaz e maleável, as dificuldades têm sido enormes para conciliar o universo do conhecimento. Para dar conta do fenômeno social é preciso repensar os dogmas que soavam como promessa de coragem para enfrentamento do mundo, mas que soam estranhos para as crianças e os jovens de hoje, como já tive oportunidade de dizer.

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