Odair de Morais
(Ôda), cuiabano, autor de Contos Comprimidos (Multifoco, 2016) e do volume de haicais Instante Pictórico (Carlini & Caniato, 2017).
“SEGUNDA CHANCE”
Marciel, 14 anos, entregador de panfletos. O pai trabalha numa fazenda no interior do estado. Capataz. Há tempos não manda dinheiro pra casa. Marciel e os irmãos têm que se virar sozinhos fazendo pequenos bicos pela vizinhança. Oportunidade de conseguir uns trocados, graças a Deus, não falta. A irmã, mocinha, entretanto, por nada sai de perto da mãe. Pode não. A rua é onde o pecado mora.
A mãe doente, o avô aposentado... Lembra de quando se deparou com o boi morto num terreno baldio: a carne azulada se decompondo sobre os ossos apodrecia entregue aos urubus. Cospe seco no asfalto quente. Vida miserável! É acompanhado de perto por Nem, de 12 anos: um molecote franzino do bairro que ganhou este apelido porque, até pouco tempo, era levado pra cima e pra baixo dentro de um carrinho guenzo empurrado pela mãe. Ei, mano, vai mais devagar aê. Colocam os panfletos nas caixas de correio, nas grades dos portões, nas portas das casas que não tem muros. Atravessam quintais perseguidos por cachorros coléricos e esfomeados que, a todo custo, tentam abocanhar suas canelas. Dois, três panfletos atirados numa mesma casa pra acabar mais rápido o serviço. Um dia um velho zangou, gritou com eles. Xingou. Fez ameaças, caso voltassem. O braço pálido de pelancas trêmulas largou no ar uma praga ameaçadora. Bobagem, Marciel pensou.
Solão da porra. Param à sombra de uma mangueira. O vento acaricia a folha das árvores. Tempo bom pra soltar pipa. Jogar bola no campinho de terra com a molecada. Mas, o melhor mesmo, era descolar o seu próprio dinheiro. É dura a vida do pobre. Quem nasceu pra ser tatu, tem que morrer cavando, ensinara a mãe. Vambora?, ele diz irritado para o companheiro. Cê é louco, tio? Por que a pressa, meu chapa? Quero terminar logo, argumenta Marciel. A gente faz mais duas quadras e depois para pra beber água na igreja. Falta pouco. Ok, Nem concorda. Boto fé. Voltavam pra mercearia só depois de entregue o último panfleto. Certa manhã, entretanto, querendo dar uma de espertos, chegaram lá simulando inocência. Pronto, chefe. Entregaram tudo direitinho?, perguntou o patrão, desconfiado. Claro, pode ver. Sério mesmo?, tornou a indagar, incrédulo. A não ser que alguém tenha tirado, Marciel recuou. Aí também a gente já não pode fazer nada né, tio? Vamos lá conferir então. Refizeram todo o trajeto até a boca-de-lobo onde tinham mocado mais de quinhentos panfletos. Resultado: voltaram pra casa de mãos abanando. Alguém caguetou a gente, Nem. Cê ainda tem dúvida? Depois disso, sempre que podia, o dono da mercearia acompanhava de perto o serviço dos dois. Só pra saber se estão fazendo tudo certo, ele dizia. Não souberam aproveitar a confiança, ficaram sem a grana. O pior era que Marciel prometera para si mesmo que, com o dinheiro ganho naquele dia, compraria o material da escola. O padrasto, quando comprava, escolhia sempre o mais barato. Geralmente, de qualidade inferior. Sabe aqueles cadernos que você não pode nem apagar senão rasga a folha?
Tentar passar o cara pra trás foi mancada. Juvenil demais, eles recordam. Vacilo no doze, meu irmão. Pode crer. E, mesmo assim, ele ainda voltou a dar serviço pros dois, alegando que, independente de qualquer coisa, todo mundo merece uma segunda chance. Homem bom o dono da mercearia, a mãe de Marciel concorda. Coração mole. E parece que nem filho tinha. Marciel chegava cedinho: Oh, tio, meu padrasto comprou pão e já comeram tudo lá em casa. Tem como dá um refri e um Skiny pa nóis? Naquela época, ele se lembra, sequer engrossara a voz ainda. E, nos últimos meses, vinha cultivando um discreto bigodinho, conferido dia a dia no banheiro.
Gostava de falar de futebol o dono da mercearia. Torcia pro Vasco. Costumava sentar-se na cadeira de fio e ficar bebendo guaraná com os moleques no degrau, sob a marquise. Exatamente no local onde Marciel senta-se agora, balbuciando com o filho pequeno no colo. Mas a mercearia fechou. Faz cinco anos, foi obrigada a fechar. Mesmo assim, todas as tardes, quando não há nenhum serviço no bairro, Marciel vem se sentar na porta da mercearia. Às ordens, capitão, ele brinca. Bate continência. Fica horas observando os carros passarem. As portas cerradas da mercearia: de cada lado, um escudo já quase sem viço da esquadra cruzmaltina a cortar por mares revoltosos, como as pintara o antigo dono da última vez. Ninguém sabe por que motivo levaram ele. Falam um monte na vizinhança, mas, ao certo, ninguém sabe o que de fato aconteceu. A casa também está fechada. Cansada de esperar, a mulher decidiu dar outro rumo na vida. Tá enrabichada e com uma escadinha de filhos lá pras bandas do Aguaçú, comenta Marciel. Sabe-se lá quando ele vai sair da cadeia... E a vida corre na velocidade dos carros que passam a todo momento na frente da mercearia. Será que não o mataram? O olhar que lhe dirigiu enquanto era colocado no porta-malas da viatura da polícia, Marciel jamais poderá esquecer. Os homens desceram e o intimaram. Ele nem reagiu. Vestiu a camisa e deixou-se algemar.