Nina Rizzi
É escritora, tradutora, pesquisadora e professora. Formada em História pela UNESP e Mestra em Literatura Comparada pela UFC. Traduziu obras de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, Clorinda Matto de Turner, bell hooks, Alice Walker, Ijeoma Oluo, Abi Daré, Langston Hughes, entre outres. Autora de tambores pra n’zinga, a duração do deserto, geografia dos ossos, quando vieres ver um banzo cor de fogo e sereia no copo d’água. Coedita da revista escamandro - poesia tradução crítica; vive em Fortaleza, onde faz laboratórios de escrita criativa com mulheres e integra as coletivas Pretarau - Sarau Das Pretas e Sarau da B1.
CANÇÃO, EM LUGAR DE TRADUÇÃO
você se pergunta se estou sozinha:
sim, estou sozinha
como a menina solitária e descalça
em suas roupas ganhadas, suas carnes lanhadas
sonhando com o através os canaviais
em cima de seu cavalo
que logo já não seria mais seu.
você quer me perguntar, se estou sozinha?
sim, claro, sozinha
como uma mãe com sua cria
uma mãe-polvo que não pode deixar nada para trás
porque a cria grita e grita e grita
e os tentáculos nunca podem dar conta
porque uma mãe sempre está sozinha, até na morte
se estou sozinha
a solidão é mulher, é preta, e é tão bonita e é além
acordar, respirar o fumo olhando a janela
como se pudesse atravessar janelas
dormir e acordar
em uma casa-oca com pajaritos fazendo festinhas
se estou sozinha
una hojita despencando lenta
no meio da floresta
tantas árvores, tantos bichos
una hojita, solita
despencando lenta
neste país onde queimam florestas.
DIÁSPORA NÃO É LAR
leio num livro em árabe a história e a história da poeta
fico martelando martelando por que não submerjo e escrevo
também pra além e além de minhas avós?
além até mesmo das vovozinhas que invento e furto
vou ao oráculo e olho bem as imagens dessa escritora
viva que se autodefine
brown
um tradutor escreve caramelo
penso em belchior
— sei dizer as sete gerações do meu cão belchior
um tradutor escreve marrom
— lembro dos lápis de cor que não eram “cor de pele”
um tradutor escreve parda
— sei dizer o papel de pão que foi meu caderno na alfabetização
que alegria se autodefinir
penso na mulatinha que fui
negrinha quando convinha
birracial branquela plebeia
kisses, megan princess, kisses!
tudo que não sei
sabe a polícia
sabem os caras do censo
sabem os brancos quando não estão matando gente
todo mundo parece saber
afogaram minha casa e minha gente no atlântico?
diáspora não é lar
gritos terríveis
cheiro de pelos de porco sapecando
vai ter carne hoje!
fica feliz a pivetada
aquela fumaça é minha família?
o oráculo não diz se minha casa foi afogada
não diz se minha família foi queimada
não diz das árvores que imagino
tantas e tantas voltas pra esquecer um nome
não diz dos laços que lanham as carnes
as carnes fodidas pra chegar a este branco
um branco coletivo — na pele, na história
gente? atlântica?
diáspora não é lar
não sou neta das bruxas que não foram queimadas
minha avó branca adotou minha mãe preta
minha avó branca espancava minha mãe preta
minha avó branca perdoou seu marido branco
que estuprou uma menina de 7 anos
— até que a morte os separe
impossível escrever dentro d’água
impossível escrever no meio do incêndio
o antes da avó postiça é tudo afogamento, ruína
o antes da avó paterna também
ela só tremia e tremia e tremia quando fugimos ou fomos expulsas
— pelo homem branco, marido estuprador
isso é tudo é a mesma coisa
diáspora, não lar
ÊH LÁ EM CASA ÊH
juntar três pau de ginga
meter rasteira
plantar roseira
êh pau de ginga êh
cavar três terreirão i arremate
subir casinha
afogar gentinha
êh terreirão i arremate êh
soprar três folha de arruda
roer ossinho de menino réi
lamber dedinho de menino réi
êh folha de arruda êh
lamber pedaço de dengo i banzo
tambor a pele mi’a
túnel a goela mi’a
êh dengo i banzo êh
amalocar aquilombar
aquilombar amalocar
êh-hhhhh casa-êh
FALO DE UM OUTRO FUTURO
tinha coração selvagem lá dentro
cova funda hq pão pra cumê
pedaços de pedra cachorro
bebê-encantado amada
mulher pajubá fenomenal do fim do mundo
tenho pressa vai devagar
tinha pau de ginga terreirão i arremate folha de arruda
dengo i banzo maloca quilombo
saci-pererê dançava em cima da ruína
a gente fez um pango da diáspora
a pertença é um beiço
o futuro não demora e tava lá dentro
sereno pra fudê