Nina Rizzi
É poeta, tradutora, pesquisadora e editora; promove o “escreva como uma mulher!” - laboratório de escrita criativa com mulheres. Autora de tambores pra n’zinga (poesia, Orpheu/ Ed. Multifoco, 2012), A Duração do Deserto (poesia, Ed. Patuá, 2014), geografia dos ossos (poesia, Douda Correria, Portugal), quando vieres ver um banzo cor de fogo (poesia, Ed. Patuá, 2017), e sereia no copo d’água (poesia, Edições Jabuticaba, 2019). Coedita a revista escamandro – poesia tradução crítica; download de seus livros e mais informações em seu blogue a poema.
FRAGMENTO, 2013
ah, dandara tinha cabelos tão lindos quando morria
o dourado cintilava cada fibra de encanto com deus
aquele homem que colocava sete árvores
de heine à luz da porta
– você é tão má para mim
dizia quando acenava seu melhor sorriso
a saliva de dandara diminuía quando morria
e lhe deixavam o dinheiro sobre a cama
SEM SABER DIZER,
olho a sarjeta mais suja
qualquer um podia saber que não há menina nesse chão
sem ter sido um rastro de violência
olho a sarjeta mais suja
e sei que não posso voltar a pisá-la
dormir sob dejetos, restos de obras e cimento
a menina pisada é ainda outra e outra
a menina quem poderá dizer se nunca mais sair da sala de psicopatologia
– isto que é chama, pedra, mãos, iml
é fraco dizer alguém
é fraco dizer animal
é tão fraco dizer os rasgos de toda história
2.
uma sarjeta é o lugar onde se deixar uma menina
uma menina é um ser vivente, um ser vivente é esse
que se atravessa e mata e nunca existiu
não vou mais pisar a sarjeta de quando era uma menina
sob as mãos do pai, do outro e do outro
todo e qualquer desconhecido
um senhor me pergunta se foi um poema que se salvou
como sede de qualquer morada
o claustro, senhor, não pisar qualquer chão
ser encarcerada é um ótimo ataque, lê-se numa vala
3.
a rua lá de casa é um aguaceiro pronto
a pisar, cair, uma abertura pra o fim do mundo
o fim do mundo acontece
cinco vezes por hora a cada onze minutos
é quando um ser vivente se converte em menina na sarjeta
sob as mãos de um, qualquer um ou trinta que é mais que gente
mais que gente não é um monstro um monstro
é mito ou é beleza
não existe beleza quando uma menina está na sarjeta
eu nunca mais vou à sarjeta, mas olha:
está cheia a sarjeta de outras meninas
eu sou ainda outra, uma menina que não pode ser mais
atravessamento- violência– fim—
SORTILÉGIOS PRA MATAR O MEU BENZINHO
tenho uma escova de cerdas macias, como nuvem, como pixaim. agradáveis ao toque como meu corpo quando dói e cai a água fria.
a escova guarda muito dos meus fios. toda sexta-feira junto-os todos, fazendo um grande cocoruto de pêlo algodoado.
sexta-feira é também o dia que o pai chega de viagem. é caminhoneiro e nunca escova os cabelos. gosta de se dizer o homem da família, ri bem alto demarcando sua existência na casa, em nossas vidas.
sento na beira da cama. o quarto não tem porta. da poltrona da sala me olha como me olham seus amigos quando aparecem para beber, como me olha o professor e o médico. o mecânico da bicicletaria e o padeiro.
aperto as pernas bem firmes e tento manter no rosto a suavidade de cada escovada. penteio até que o braço doa, até que o couro da cabeça doa.
uma escova cheia dos meus pêlos.
quando já é tarde da noite e a mãe deixou toda a louça limpa, chão limpo, carne curtindo nas bacias com banha, alho e sal, do jeito que o pai gosta, viro para dar boa noite, mãe.
o pai ronca alto e um cheiro acre de álcool envolve a casa pequena.
agora todos já dormem.
retiro um a um meus pêlos da escova, enrolo meu cocoruto. o maior que já fiz. o pai sempre diz que uma mulher com pêlos é uma mulher nojenta.
pego a lâmpada que escondi entre as calcinhas e a esmigalho firmemente, enquanto ouço na cabeça de choros abafados de mamãe, o som grave do punho do pai em suas costas e o engasgo profundo e seco.
esmigalho até que seja puro pó em minhas mãos que sangram, puríssimas.
arranco a carne da bacia e estraçalho um pedaço, recheando-a com meu cocoruto de pêlos e vidro moído.
recito baixinho as palavras mágicas de mamãe: só teremos paz quando ele morrer.
fecho a carne, como costurando a minha.
beijo o pedaço ensanguentado.
eu sou judas.
salomé.
me beija.
me come, papai.