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Nathalia Campos
Mineira de Belo Horizonte. Escritora, doutora em Letras pela UFMG, professora e revisora. É autora de Desinifinito (Patuá, 2017) e O guru da Lopes Chaves (Nea-Edições, 2016), com publicações em antologias e periódicos, nacionais e internacionais. Está entre os doze novos poetas brasileiros contemplados na antologia bilíngue Inventar la felicidade – Muestra de la poesía brasileña reciente (Vallejo & Co., 2016), organizada por Fabrício Marques e Tarso de Melo. É colunista do site Homo Literatus (https://homoliteratus.com/).

EPIDEMÍSTOLAS

(da série de cartas sem destinatário de uma quarentenada)

Alô, querida!
Como vamos?
A loucura já é um bem universal por aí? Por aqui, positivo. Ela é a única com liberdade de ir e vir, pra cima e pra baixo. Despaisou o mundo. Às vezes ela me olha nos olhos, querendo se encostar, pegar amizade. Até o momento, me fiz de desentendida. Ou então apago a luz.
O ar viroso diz que nunca houve tanta graça em ir lá fora, cê não acha? Em compensação, de repente, ficou verdade aquela música do Pink Floyd, “Wish you were here”: cada um tem papel principal na sua cela. Só não é mais questão de escolha. Nem ganhar guerra nem descobrir penicilina, ser herói está em liquidação: acordar às 11 horas todo dia c’est tout ce qu’il fault para ser heráldico na história.
Mas eu também sei que liberdade ganhou outro uso, que imprime outra imagem: um pasto difícil daquelas leituras e vazios que (sempre) quisemos, onde vai subindo o mato das contas não pagas, infestado de gafanhotos digitais, ao som do 4’33 de John Cage.
Topei com minha vizinha de porta hoje de manhã, com a unha pintada de vermelho. Achei de uma dignidade absurda. Coisa assim como um retrato da vaidade feminina em versão ascética. Invejável.
Você já parou pra pensar como, pela primeira vez, dá pra alcançar o mundo todinho – de Varginha a Vladivostok – no som de uma palavra? “Muuuuuuuundo” (as palmas das duas mãos se enganchando num redondo perfeito). Esse caso raro de justiça sígnica me abre o apetite, e por isso resolvo te escrever. Uma carta, veja bem, coisa tão fora de moda. Eu me explico. Outro dia eu li que a medicina ayurvédica aconselha que se comece a comer pelos alimentos naturalmente adocicados. Pois bem, as cartas são, pra escrita, como os doces; elas criam uma salivação favorável à pièce de résistance, que, com fé, há de vir. E, se não vier, ninguém vai duvidar da minha desambição, do descompromisso dessas linhas, o que também me pintará com a luz de uma certa virtude. Em todo caso, há lucro. 
A grandeza ronda. Na carta ainda há perigo, mas um perigo controlado. É como caminhar dentro de uma mata convenientemente localizada no fundo do quintal, ou entrar numa piscina onde se vê bem o fundo. Tanta gente adorou se encher desse ânimo que as cartas injetam, de Rimbaud a Mário. Outros escreviam diário, que é como a carta, só que com um destinatário mais borrado: Woolf, Mansfield, Plath. Tanto um quanto a outra orbitam pela questão do não escrever, ora servindo de antídoto contra a falta de inspiração, ora de festa da autocomiseração, ora de subterfúgio para evitar a própria escrita. “Bem ou mal”, sente o escritor, “estou vivendo das minhas próprias palavras”. Minhas palavras, minhas regras.
É o phármakon, que cura com o veneno. Escrevo-porque-não-escrevo-para-não-escrever-para-enfim-escrever.
No geral, as palavras me exigem decisões rápidas e definitivas demais, você sabe, ossos do ofício, e eu francamente não tenho maturidade pra isso. Bom mesmo é brincar de existir alienada delas, fingindo que são só uma utilidade indiferente (apesar de sempre disponível), como uma faca ou um automóvel. Palavras respondem melhor e com mais doçura aos amadores. Amadores são diferentes de impostores, concorda, na pretensão. A pretensão é uma coisa sempre tensa, rédea curta. Carta é o álibi perfeito. Muito convincente, antes de tudo, para o remetente.
Isso sem contar que cartas são off-topic, ou, seria melhor dizer, topic-free? Fazem qualquer um parecer interessante, porque caiu na rede é peixe: o potencial de glosa é ilimitado, o que significa que o assunto nunca acaba. A parte do destinatário no pacto é sorrir em anuência, porque logo os papéis giram, e analista anda muito caro.
Corte abrupto, porque já vou fazendo narrativa e não quero estragar minha licença.
Por aqui, o tempo está sem data. Comprido, mas sem duração. Dias que acabam, sem virar memória. Quero dizer, duração é memória, né. O que chamo de dias é o que o restou de uma convenção de linguagem, pra falar do dia depois do outro com a noite no meio. Ocupar um tempo sem porções, valores – minutos, horas, dias, meses – é como jogar baralho com cartas sem naipe. Sem posicionamento diante do acaso, sem estratégia, mas também sempre contratempos. É um pouco como voltar a ser criança, quando a gente não sabia quando chegava o carnaval, o Natal e o aniversário, nem quando já era “depois de amanhã”.
Estamos no recreio.
O recreio é o limbo, no seu melhor sentido. Um lugar no meio, na margem, antes do pecado e da virtude, reservado a quem não escolhe um lado de ação. Nosso caso é defensável: as frentes de ação estão, quase todas, suspensas. Música é pausa, mas e quando é só pausa – conta como música? A qualidade da tinta que se deixa na partitura do silêncio decide quem merece o céu e quem merece o inferno. Uma vez no papel, não há borracha. A última palavra é a sentença, como a nota do professor. Mas e se a gente não escreve nada, sem a desculpa da dúvida ou da inércia, mas com a legitimidade do interlúdio? Vai pro limbo. É onde estamos: na partitura em branco. Estranhamente, não é ruim; é quase beatífico.
Esses dias, meu lugar preferido tem sido a área de serviço, onde se lavam na sombra as roupas de baixo, pijamas e camisetas de remotas eleições. Me demoro pensando em como o varal rende uma estranha metáfora dessa vida pendente. As roupas descansando, assim, suspensas, os pulmões vazios, me fazem pensar no quanto é bom não estar em lugar nenhum, em poder ser ninguém, pra variar.
Taí. O lugar mais provisório da casa é também o de um assentamento: a pausa molhada, que costuma ser sinônimo de inconveniência, é a nossa melhor promessa de que a brincadeira, uma hora ou outra, começa de novo.
Wish you were here,

Justine


P.S.: Tremi de chiqueza ao me dar conta de que inauguramos os anos 20 do século 21! Já temos algo em comum com Hemingway, Gertrude Stein, Fitzgerald e cia. A coincidência me faz pensar em como já somos antigos.

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