Natasha Centenaro
É jornalista, mestra em Letras – Escrita criativa, e doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS (CNPq), com estágio doutoral na Sorbonne Université – Faculté des Lettres. Escritora, dramaturga, professora e ministrante de oficinas e workshops de escrita criativa, dramaturgia e literatura de autoria de mulheres. Autora de duas vezes draMática (EDIPUCRS, 2018). Coordena a Premissa – Palavra e arte. Integrou a coletânea do Prêmio Lila Ripoll de Poesia 2010. Vencedora do Prêmio Literacidade 2014 Jovem autor com o livro de contos Aquela e outras mulheres, também selecionado no Prêmio Sesc de Literatura 2013-2014. O seu romance-peça inédito Histórias de silêncio para encenar foi selecionado no Prêmio Sesc de Literatura 2015. Tem textos publicados em antologias, revistas e periódicos.
De tempo em temo somos a resistência
CHEVETTE 88
Nem sei. Respondi. Olho pelo espelho retrovisor do chevette 88, dois oito reunidos, legítimos, de origem, só pode ser sinônimo de sorte. Sorte. Menos comigo. De seu primeiro dono, se fosse possível o sujeito ter um chevette 88 verde e persistir um homem de bem. No horizonte do terreno nem indício de corpos, móveis ou fixos, nem pneus emitindo sons, muito menos gente, sem declive ou desvio, segue em frente, reto, sempre reto. Olho pro seu pescoço, inclinou-o, de seu rosto rente no vidro, vejo o finzinho do lóbulo esquerdo, redondo, gostoso de morder, meus olhos descem por seu queixo, seguem o percurso entre o ouvido e os fios soltos no contorno desse mesmo rosto, subindo, detenho-me no limite dos olhos, que pouco vejo, nem sei se os cerrou ou os ergueu, porque se põe de perfil, impedindo-me de curti-los com todo o gosto. Me impede. É do tipo que decide quem pode ver seus contornos, responder seus impulsos e prosseguir com seus gestos. Me permito cumprir o trecho todo sem esquecer seu corpo bem perto do meu, o seu corpo. Inerte, um corpo sem sentidos perceptíveis. Difícil de resistir. Você concordou. É só o percurso, o que vem depois. Bem, depois? Depois nem sei. E que dois? É melhor entender que você prossegue sozinho, meu bem, você e o Lou. Eu. Ouço Lou Reed no velho som do chevette 88, esqueço o seu perfume e seus brincos. Some o decote no suéter. O fecho quebrou e permitiu o começo do “v” de seus seios visíveis, muito visíveis, como se se desprendessem do top preto e meus dedos, de perto, como se meus dedos conseguissem obtê-los, inteiros, no toque. Velvet underground. O episódio merece. O espelho do retrovisor insiste em refletir o sol. Os mesmos muros, de um tempo longe, me impedem. E nem o couro é fresco e cômodo. Os pés doem, os tênis comprimem meus músculos e ossos. O esquerdo dói. O esquerdo, sobretudo. O direito menos. Suporto. E o perfume diluiu-se com o vento que penetrou no interior do chevette 88. Sim. Descerrei o vidro. Um pouco. O vento sossegou. Necessito de oxigênio. Fugir. É só o percurso, o que vem depois. Bem, depois? Depois nem sei. E que dois? É melhor entender que você prossegue sozinho, meu bem, você e o Lou. Eu. Deixo meu chevette 88 onde sempre esteve.
SUJEITO A
Você sentiu a falta (a)? Para abrir espaço é preciso sentir falta. Diz a psicanálise. A falta de alguma coisa. A falta de alguém. Falta. Talvez, encontrar a falta também seja produto da resistência. Percebê-la. Talvez, o mais difícil ainda seja lidar com essa falta. Falta de quê?
Pois o sujeito a, tendo recebido a incumbência profissional de escrever uma campanha de conteúdo nostálgico, qualquer, no ano de 2088 – o ano em que se comemoram os 50 anos do triunfo do movimento #elasim#resistencia# – recebeu via nanochip de informação o suporte da editora, uma ecocoach de palavras e especialista em neurolinguagens pós-traumatismos canônicos científicos e sociais de personalidades, que dizia o seguinte: Prezado sujeito a, você, agora, está escrevendo como sujeito mulher. Prestamos nossas congratulações pelo esforço e pela capacidade de simulacro. Você quase alcançou pleno êxito. Mas preste atenção no seu objeto. Cuide os detalhes linguísticos e o conteúdo de teor excessivamente psicanalítico. Nós garantimos o sucesso da campanha. Lembre-se que há décadas Lacan não é citado em nenhuma bula de simpósio virtual de resistência à distância. O sujeito a não entendeu. E se viu obrigado a acessar o tutorial de suporte ao suporte da editora, que finalizava mais ou menos assim: Sujeito a, para escrever bem, é isso, você está quase escrevendo como mul – e por uma nanofalha de interação, a mensagem cortou a palavra mulher. E faltou oxigênio ao sujeito a.
RESISTÊNCIA
No fim de Inibição, sintoma e angústia (Hemmung, Sympton und Angst, 1926), Freud distingue cinco formas de resistência; três estão ligadas ao ego: o recalque, a resistência de transferência e o benefício secundário da doença, “que se baseia na integração do sintoma ao ego”. Há ainda que contar com a resistência do inconsciente ou do id, e ainda com a do superego. A primeira torna tecnicamente necessária a perlaboração (Durcharbeiten): é “... à força da compulsão pela repetição, atração dos protótipos inconscientes sobre o processo funcional recalcado”. Por fim, a resistência do superego deriva da culpabilidade inconsciente e da necessidade de punição.
RELAÇÕES FAMILIARES E/OU AFETIVAS
Contou a minha avó a sua primeira vez com um homem. O ano era 1975 e o Brasil enfrentava um regime de ditadura civil-militar. Uma ditadura. Um golpe de estado, onze anos antes, para evitar-se outra ditadura, essa, diziam, destruiria a família brasileira. O ano era 1975 e o país era comandado por Ernesto Geisel. Um militar. Um militar gaúcho. Foi na gestão de Geisel que se começou o processo de redemocratização: “lento, gradual e seguro”. Entre os generais, Geisel era considerado mais brando, fazia oposição à linha-dura dos comandos militares e preparou o terreno para Figueiredo executar a anistia de todos os lados. O ano era 1975 e o estado da Guanabara se fundia ao estado do Rio de Janeiro. O ano era 1975, precisamente, 25 de outubro, Vladimir Herzog, o jornalista, foi encontrado suicidado em uma cela nas dependências do DOI-CODI, no quartel-general do II Exército de São Paulo. Janeiro de 1976, Manoel Fiel Filho, o operário, morre em circunstâncias semelhantes: suicídio oficial. A ditadura branda de Geisel tinha os motivos perfeitos para apressar a lentidão gradual da reabertura. Enquanto Geisel tratava de abrir o país, minha avó estava abrindo outra coisa naquele novembro de 1975. Minha avó abria a porta do chevette conduzido por um moço de nome Aurélio. Não, o Aurélio não foi o meu avô. Mas minha avó gostava dele, do Aurélio. Foi com ele que minha avó esteve, pela primeira vez, em uma reunião de movimento político clandestino capitaneado pelo Partido Comunista Brasileiro em uma cidade do interior de um estado ao sul do país. E foi nessa reunião que minha avó entendeu: a revolução não podia ser coisa de homem. As poucas mulheres que tinham, e as poucas mulheres que tinham com voz, quando escutadas, ainda assim não deviam estar na dianteira de um movimento de resistência dessa proporção. Mesmo pegando em armas, escrevendo jornais, colando cartazes, enfrentando lugares inóspitos, fugindo dos militares, sendo torturadas, muitas delas grávidas ou com crianças recém-nascidas, mesmo fazendo tudo o que um homem fazia, assim mesmo, elas não podiam exercer a palavra. E minha avó me falou o seguinte, sobre a sua primeira vez com um homem: é pela palavra, minha querida, ou vai ser pela linguagem ou não vai ser.
RELAÇÕES TRABALHISTAS
O chevette foi o modelo nostálgico escolhido por votação instantânea para inspirar o chassi do novo modelo Phálycus – o carro da resistência ao sistema biopolítico-orgânico da ditadura feminística, ou sistema de não-controle alternativo. O novo modelo Phálycus apresentava aos seus futuros condutores a novidade de itens de série exclusivos para sujeitos homens nostálgicos, como o porta-charutos, uma peça de colecionador do início do século XX (apesar de não se produzirem mais charutos desde 2038, com o sucesso da lei antifumo) e a escarradeira portátil com multifunções touch (barba, cabelo, bigode e peeling de diamante), adaptada diretamente do século XIX: para os verdadeiros sujeitos homens rústicos – porque não se fazem mais homens como antigamente. O chevette ainda simbolizava, segundo os eleitores, a virilidade, a potência e a eficiência masculinística, representando o seu maximizado poder de instituição. Cabe ressaltar que a ditadura feminística, ou sistema de não-controle alternativo, jamais proibiu a circulação de carros como símbolo do que restava de poder institucional dos sujeitos homens e, inclusive, apoiou a eleição do novo modelo Phálycus com campanhas e propagandas oficiais nostálgicas em seus meios interativos de divulgação e de nanoinformação. O sistema também incentivou a fábrica montadora do novo modelo Phálycus com a isenção de impostos, visando gerar mais postos de ocupação e como método de elevar a autoestima de antigos homens-do-lar, uma nomenclatura criticada até mesmo pelas especialistas na área e considerada pejorativa aos cidadãos sujeitos homens.
CHEVETTE
Chevrolet Chevette
O Chevette foi um automóvel lançado pela General Motors no ano de 1973, sendo fabricado pela montadora Chevrolet no Brasil, é a 3 geração do Opel Kadett lançado na Europa em 1973. O veículo também ficou conhecido pela sua potência oferecida. Durante toda sua história, o Chevette já veio equipado com vários motores: 1.0 litro (versão Júnior lançado em 1992), 1.4 (carburação simples e dupla, esta somente em 1982 como opcional), 1.6 (carburação simples), 1.6/S (carburação dupla, a partir de 1988, um ano após sua última reestilização) e (1.6/S carburação dupla). Também foram introduzidos motores tanto a gasolina quanto a álcool. Lançado na década de 70, o Chevette tornou-se um dos mais populares veículos produzidos pela GM no Brasil. Estima-se que até o encerramento de sua produção em 1993, o modelo teria vendido mais de 1,6 milhões de unidades, tendo seu apogeu em vendas entre o fim dos anos 70 e meados da década de 80, quando nestes anos, seus concorrentes diretos saíram de linha em outras montadoras. Foi eleito por duas vezes pela Revista Autoesporte o Carro do Ano em 1974 e em 1981. Em 1983, pela primeira e única vez em sua história, o Chevette foi o carro mais vendido no Brasil.
COMPETIÇÃO AUTOMOTIVA
O primeiro dia da competição chegou. Um dia tão aguardado quanto estimado pelos pares, pelos adversários, pelas autoridades competentes, pelas comissões de jurados oficiais, técnicos, contestadores, sensitivos, pelas federações internacionais de subjetivismo e de lógica, respectivamente, pelas equipes competidoras e, óbvio, pela imprensa parcelada. Uma competição que desbancou não apenas em royalties, mas em número de audiência semipresencial, em algoritmos de visualização, em bytes de informação seletiva com curtidas, matchs, coraçõezinhos, estrelinhas, gifs, emojis, descurtidas, fake news, kkkkk, comentários de robôs letrados criticando, e todo o tipo de figurinhas arrecadadas nos grupos e salvas como favoritas, aquela que era a maior competição do planeta, até esta competição ser oficializada no calendário. Aquela eram as Olimpíadas. As Olimpíadas desde a Grécia antiga. Esta competição? Desde a Grécia antiga. Ainda no pré-jogo houve muita provocação dos dois lados. – Em defesa da ficção sagaz, custe o que custar o real a serviço do ficcional, a narrativa acima de tudo e a ficção acima de todos. – É preciso ponderar as perspectivas éticas, uma ficção autônoma, porém, sem esquecer o discurso, o poder da linguagem, é preciso ter cuidado com as fronteiras ética-estética-políticas. – Besteira, vitimismo, relativismo, encheção de saco, modinha decolonialista, gente chata, gente sem humor, fronteira não existe, a menos que se tenham muros, muros bem grandes separando países, sem paciência para essa gente mal-comi – Sem agressões pessoais, por favor, vamos nos concentrar na competição – levantou-se uma profissional da cabine de análise técnica e formal, com o livro do regulamento em mãos – Fronteira pode não existir, é verdade, nós concordamos, a especificidade da narrativa não se perde, não queremos uma ética boazinha, isso não existe e – Contradição, contradição, percebam senhores juízes, essa contradição. Vocês nem sabem o que querem nesse jogo, esse jogo não se joga assim – Não, calma, não é bem assim, não queremos um jardim com flores a cada narrativa, apesar de ser legal um cenário assim, mas não é isso de felicidade e auto – Vocês vão acabar com a ficção desse jeito – Mas nós defendemos a ficção, – Não, nós é que defendemos a ficção, a ficção de verdade – É claro que não, vocês são conservadores, a resistência somos nós. – Resistência contra a ficção, vocês são (continua). Enquanto as equipes se aqueciam e treinavam na modalidade leituras em voz alta, uma atleta de um time totalmente independente pixou na cabine das autoridades competentes no primeiro dia da competição: a culpa é da distopia resiste poesia.
GOVERNO FRANCÊS CONTRATA ESCRITORES DE FICÇÃO CIENTÍFICA PARA IMAGINAR AMEAÇAS
Exército francês contrata escritores de ficção científica para imaginar futuras ameaças
Grupo será formado por quatro ou cinco autores que deverão criar cenários nunca antes pensados pelos militares
A recém-criada Agência de Inovação em Defesa (DIA) da França anunciou que o exército francês contratará escritores de ficção científica para antecipar possíveis ameaças contra o país. Com o nome de “Equipe Vermelha”, o grupo será formado por quatro ou cinco autores que deverão criar cenários nunca antes pensados pelos militares. O time deve iniciar os trabalhos, que serão altamente confidenciais, até o fim deste ano.
A iniciativa surge em meio aos esforços do governo francês para inovar em suas abordagens de defesa. Espera-se que a “Equipe Vermelha” pense de forma mais criativa do que os estrategistas militares. Ao jornal britânico The Telegraph, Bruno Tertrais, vice-diretor da Fundação de Pesquisa Estratégica da França, explicou que a iniciativa envolve prever “quaisquer hipóteses sobre o futuro fora dos procedimentos burocráticos usuais”.
FICÇÃO E REALIDADE
Não é à toa que o ministério francês da Defesa decidiu usar a ficção científica para prever cenários e situações do futuro. O romance de 1865 de Jules Verne, “Da Terra à Lua”, mostrava três pessoas sendo enviadas à lua em uma espaçonave com algumas semelhanças com a missão Apollo 11, que 104 anos depois, em 1969, chegaria ao satélite. Já em seu romance de 1914, The World Set Free, Herbert George Wells apresentava explosões baseadas na ciência atômica.
EPÍGRAFE
Lê-me como se em todos os filmes de Hollywood os extraterrestres aterrassem em favelas no Rio de Janeiro e não num
qualquer bairro granfino de Washington ou Nova Iorque e percebessem todas as línguas que se falam neste planeta
(menos o inglês), e tudo isto porque há muito que se sabem que Tupi ou not Tupi, já nem é bem essa a questão.
Patrícia Portela (Dias úteis)
Epílogo da peça em um só tempo:
O chevette ano 1988, ano em que não nasci, ainda resiste ao tempo. O chevette ano 1988 está na garagem da minha avó, Inês, ou Amelinha, que aprendeu a dirigir aos dezesseis anos, pois não era uma mulher de esperar.