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Natalia Borges Polesso
É uma escritora e tradutora brasileira. Publicou Recortes para álbum de fotografia sem gente (Editora Modelo de Nuvem, 2013), com o qual recebeu o Prêmio Açorianos de 2013 na categoria contos; o livro de poemas Coração à corda (Editora Patuá, 2015); e o livro de contos Amora (Não Editora, 2016), com o qual recebeu o Prêmio Jabuti de 2016. Em 2019, publicou “Controle” pela Compainha das Letras.

AQUILO NÃO BASTAVA*

(*Conto do livro Recortes para álbum de fotografia sem gente [Modelo de Nuvem, 2013])

 

E pensou, ser amada era o suficiente. Foi adulada e admirada incondicionalmente. Com o tempo sentiu que isso não bastava. Então, ela decidiu que amar era o suficiente, amar por dois ou três, quem sabe. Entregou-se até a última gota de si e teve prazer em doar-se assim. Com o tempo ela sentiu que aquilo não bastava. Então decidiu que queria amar e ser amada. E o fez. Com o tempo ela percebeu que aquilo também não bastava. Tão triste e incrédula que estava, resolveu morrer. Jogou-se de um prédio e de forma bem dramática pousou na calçada, toda quebrada. Percebeu que aquilo não adiantava. Era uma grande besteira morrer. Então, reviveu, mas aquela dor, aquela dor não passava. Então, foi a um psiquiatra. Ele receitou comprimidos muito fortes que a faziam morrer em vida. Ela gostou daquele estado por um tempo, mas viu que aquilo não bastava. Então, ela foi a um banco. E aplicou todo seu dinheiro em ações. Ficou rica num instante. Esbanjou como pôde e quis, e ainda sobravam cifras imensuráveis. Com o tempo ela viu que aquilo não bastava. Então, ela foi a uma vidente. A mulher lhe disse coisas assombrosas. Ouviu atentamente, deu-lhe toda a sua fortuna e matou uma galinha. Tingiu-se do sangue e esperou por seu destino. Nenhuma mudança ocorreu, a não ser ter ficado pobre. Viveu na rua por um tempo, roubando e usando drogas baratas para poder suportar aquela dor, aquela dor que não passava. Chegou a condições sobre-humanas, sim, sobre. E ali permaneceu desfrutando de sua sina. Com o tempo viu que aquilo não bastava. Então, ela pegou uma carona e foi viver no campo. Achou trabalho em uma estância. Não falava. Achavam que ela era muda ou louca. Ou muda e louca. Cega não era, por certo. Nem surda. Seu voto de silêncio levou-a a intrincados conceitos de vida e modo de vida. E quando abriu a boca pela primeira vez em tantos anos, desatou a falar. Foi um tratado sobre a existência, um tratado filosófico sobre. Pediram que repetisse aos amigos e parentes dos estancieiros. Ela o fez. Pediram que repetisse mais uma vez, ela sem pestanejar o fez. E assim muitas vezes. Com o tempo viu, aquele lero-lero não bastava. Então, ela resolveu publicar um livro. Para tanto, voltou a seu silêncio e abandono do externo e, de uma só vez, escreveu tudo. E como se não bastasse, ainda escreveu mais um tratado, “Das coisas pequenas e simples”, que saiu junto com o primeiro. Quando ia engatar uma terceira obra, viu que aquilo não bastava. Então, ela foi vender os livros. Muitas pessoas compraram, muitas pessoas reproduziram as suas ideias. Um filme foi feito e ela foi convidada a participar. Com o tempo, ela viu que aquilo não bastava. Então ela comprou um telefone, mas não tinha pra quem ligar, e também não poderia conversar com uma pessoa àquela altura da vida. Logo, ela jogou o telefone no lixo. E comprou um microfone e um amplificador. Agora sim, não precisaria falar a uma pessoa, poderia falar a ninguém e a todos os interessados, ao mesmo tempo. E falou, falou, falou tanto que a língua secou e paralisou. E então ela voltou ao silêncio, mesmo tendo um microfone, um amplificador e uma plateia. Ficava no meio de tudo, acima de todos com a língua inútil e os olhos mansos. Assim foi por incontáveis dias. Com o passar do tempo, ela percebeu que aquilo não bastava. Então ela decidiu esquecer tudo. E como quem apaga um poema feio, escrito a lápis, ela se desfez de todas as memórias que tinha. O que restou foi um grande espaço em branco, um enorme e envolvente vácuo, um mar de folhas contínuas, umas iguais às outras. Um espaço sucedendo o outro. Ela corria para um lado e acabava no mesmo, sem deixar vestígio algum e sem achar qualquer sinal de lembrança vivida ou mesmo inventada. O vazio foi ficando dolorido e aquela dor, aquela dor não passava. Com o tempo ela entendeu que aquilo não bastava. Então ela teve uma ideia. E pensou, ser amada era o suficiente.

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