Mirian Schio
A quem possa interessar, lá pelo final dos anos 60, nascia em Santa Clara D’Oeste – SP Mirian Schio. Não nasceu rodeada de livros, mas sua paixão pelas letrinhas começou muito cedo: aos 7 anos de idade, ainda fora da sala de aula, quando tentava decifrar a linguagem não verbal das histórias em quadrinhos dos Gibis. Tarefa orientada pelo grande amigo adulto Amado – Sim, esse era o nome dele. A paixão pelo jeito continuou, pois na 8° série do primeiro grau – a nomenclatura mudou, né? - ganhou um concurso de redação promovido pelo colégio no qual estudava, com o tema “A importância dos estudos na vida das pessoas.” No final dos anos 80, quando terminou o Ensino Médio, deu uma pausa nos estudos, mas a paixão pelas letrinhas continuou sendo alimenta pelas leituras, cuja obrigatoriedade era apenas o prazer. De tão bem alimentada, essa paixão ganhou força e a impulsionou, em 2007, para o Curso de Letras da Unemat – Universidade do Estado de Mato Grosso. Nessa casa de conhecimento, ganhou, em 2008, o II Concurso de Contos e Poemas, com o conto “A pasta preta com cheiro de mofo”. Em 2007, teve o texto “A terra e o tempo: vozes do quilombo” publicado no Diário de Cuiabá. Hoje, formada em Letras e pós-graduada em Docência na Educação a Distância, a paixão pelas letras aliada ao senso crítico desperta nessa autora repugnância a qualquer tipo de supremacia, fazendo-a expor em suas obras as chagas humanas. Assim, dando ênfase à verossimilhança como mera coincidência, seus personagens ora são subservientes, ora se rebelam como podem, como fez a franzina.
JERIMUM COM QUIABO
O esposo chegou e, como às vezes, abraçou-a levemente e beijou-lhe a testa. O almoço já estava posto na mesa de madeira capenga de uma perna. Ela se serviu de arroz, ovo frito e salada de tomate. O jerimum com quiabo deixou tudo pra ele – ao contrário do esposo, ela odiava jerimum, ainda mais com quiabo. Terminada a refeição, que para o casal poderia ser considerada banquete, ela se levantou, guardou a sobra de arroz na vasilha de plástico sem tampa e depositou cuidadosamente na sacolinha de lixo a sobra do jerimum. Amontoou a louça no tanque – a pia da cozinha estava entupida há dias - e começou a esfregar com a bucha vegetal. Ele, como às vezes, a ajudou secando, mas antes mesmo de terminar a tarefa sentiu o suor escorrer pela testa, descer até as bochechas e ensopar a camisa. Julgou, então, o sol a pino responsável pela desidratação. Embora insistisse em permanecer de pé, não foi capaz. O corpo tremia, as pernas ficaram fracas, o labirinto se desequilibrou. Foi com a ajuda da esposa que encontrou o caminho da cama. A cama pareceu-lhe um santo remédio, mas não foi. O vomito escuro jorrava pela boca e nariz. Começaram as alucinações: a esposa ora era demônio com ferrão, ora bruxa a gargalhadas, ora anjo que lhe tocava sutilmente, ora dragão, cobra, criança brincando de ciranda, fantasma, Deus na porta do céu, demônio na porta do inverno. O oxigênio desapareceu. A esposa saiu à procura de ajuda. Andou três quarteirões e chegou ao postinho de saúde. Sem ambulância para agilizar o socorro, o único médico de plantão foi a pé mesmo atender a ocorrência. Ao entrar na casa, o senhor de cabelo grisalho, nariz saliente, olhos apertados já sentiu o cheiro agridoce. Chegou ao quarto e viu o corpo arroxeado, colocou dois dedos no pulso, logo em seguida na jugular. Espalmou a mão direita e colocou-a no peito – nem se incomodou com a poça de vômito. Sem aparelho algum para lhe ajudar na perícia, contou com sua longa experiência para atestar a morte por congestão. A esposa providenciou o enterro com a ajuda de meia dúzia de amigos.
Ela era ainda muito jovem, quase criança, quando conheceu o homem que julgou ser o seu príncipe encantado. O namorico acontecia todas as tardes na praça da pacata cidade. O futuro esposo nunca ia aos encontros de mãos vazias: balas, bombons, chicletes e muitas vezes flores colhidas ali mesmo na praça alegravam a franzina menina e refletiam o esposo com quem sempre sonhou. Cansados da rotina de dois meses de namoro, providenciaram o casamento. Pra que padre, pra que juiz de paz? Não precisavam de formalidades para se tornar esposa e esposo – e se tornaram. Pegou as poucas roupas que tinha e levou para a casa do esposo. Encontrou o lar doce lar sujo, a pia do banheiro com limo, o vaso sanitário com as bordas amareladas, o piso encardido, roupa suja misturada a roupa limpa, geladeira com odor de peixe podre. Achou graça, achou muita graça e começou logo a faxina. Agora estava tudo muito simples, mas tudo muito limpo: a cama asseada, o banheiro com cheiro de eucalipto, a geladeira limpa – porém vazia -, o fogão desengordurado. Trabalhou duro, mas ainda deu tempo de preparar um almocinho para o esposo. Ele chegou abraçou-a sutilmente e beijou-lhe a testa. Serviu-se do pouco que havia sobre a mesa e elogiou a esposa pelo banquete. Essa cena até que se repetia, mas não com frequência. De frequente mesmo só a escassez das refeições, do zelo da esposa, da pontualidade do esposo e a incerteza que a consumia e a deixava ainda mais franzina. O comportamento mutante do esposo atordoava a esposa causando-lhe pânico, insônias, pesadelo, taquicardia e uma incerteza muito grande, mas como sempre, pôs a refeição sobre a mesa. Ele chegou entediado, sentou-se à mesa e com voz alterada considerou o arroz empapado, o feijão cru, a macaxeira dura e até encontrou um resquício de sujeira no garfo. Impaciente, levantou-se bruscamente a ponto de quebrar uma perna da mesa deixando-a capenga. A franzina não sabia mais o que fazer, o que pensar nem como agir. Recordou que no dia anterior tinha sido tratada com esmero, recebido elogio pela sopa rala, ajuda para organizar a louça e até flores colhidas na praça. Não havia na vida daquele casal uma rotina de violência nem de harmonia. Não sabia nunca a esposa quem ela receberia para o almoço: o esposo ou o algoz. Vivia assim: incerta. Estava sempre sobressaltada. Quando era o esposo, nem conseguia mais desfrutar da companhia agradável e da candura daquele homem. Quando era o algoz, se desfalecia com tanta humilhação e xingamentos, como naquele dia em que chegou sentou-se à mesa e não se agradou do prato do dia. De súbito, jogou a panela no chão, esbravejou contra a esposa e ainda desferiu uma cusparada na mesa em nome do nojo que sentiu ao ver a polenta com molho de tomate. Não faltavam dotes culinários à esposa, faltava capacidade de fazer milagre.
Tentou adivinhar quem ela receberia para o almoço naquela fatídica manhã e apostou no algoz. Arrumou os poucos móveis, lavou as roupas e foi se dedicar ao almoço. Preparou um arroz soltinho, fritou dois ovos, temperou uma salada de tomate colhido ali mesmo no quintal, cortou o jerimum e o refogou com quiabo. Para dar um sabor a mais no prato preferido do esposo, regou o jerimum com rodenticida – o chumbinho diluiu-se rapidamente. O esposo chegou e, como às vezes, abraçou-a levemente e beijou-lhe a testa. O almoço já estava posto na mesa de madeira capenga de uma perna. Ela se serviu de arroz, ovo frito e salada de tomate. O jerimum com quiabo deixou tudo pra ele – ao contrário do esposo, ela odiava jerimum, ainda mais com quiabo.