Matheus Guménin Barreto
(1992) é poeta e tradutor mato-grossense. Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) na área de Língua e Literatura Alemãs - subárea tradução, estudou também na Universidade de Heidelberg. Publicou traduções de Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann. Encontram-se poemas seus no Brasil e em Portugal, e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018 – coleção Olho d’água).
O CÉU E O INFERNO DE GONÇALO ARRUDA
A s obras do pintor e desenhista mato-grossense Gonçalo Arruda abraçam os textos da edição de junho da Revista Pixé (nº 3) – ou melhor, assombram os textos da edição de julho; perseguem e assombram como só o fazem as obras de arte significativas. Pois bem, repito: perseguir e assombrar (através do belo ou do grotesco, através do tradicional ou do insurgente), eis o que fazem as obras de arte que contam. Assim, seria possível dizer que a geometria solar de Sophia de Mello Breyner Andresen persegue e assombra tanto quanto o grotesco noturno de Hilda Hilst, que a força translúcida de Lygia Fagundes Telles persegue e assombra tanto quanto a força escrevivente de Conceição Evaristo, que a manhã de Arvo Pärt persegue e assombra tanto quanto a noite de Alban Berg, que as cores quentes de Tarsila do Amaral perseguem e assombram tanto quanto as cores frias Ismael Nery – a lista seguiria indefinidamente.
No entanto, lendo as linhas acima fica óbvio ao leitor mais atento da Pixé que a simplificação maniqueísta que fiz em relação às obras desses grandes artistas não diz de modo algum respeito à complexidade e às nuances de seus trabalhos. É verdade que tais artistas são de modo geral lembrados pelas características que mencionei acima, mas na produção de cada um deles é possível encontrar exatamente o oposto do que descrevi, o contraponto que justamente enriquece e torna mais interessante o trabalho dos mesmos.
Também Gonçalo Arruda é reconhecido a partir de um só movimento de sua obra extensa: o movimento das paisagens claras, das figuras que festejam em conjunto, das pescarias sob a luz da manhã – tudo com pinceladas que trazem à mente uma Tarsila do Amaral da década de 20. São uma grande (e bela) faceta de seu trabalho, mas há muito mais a se explorar em Gonçalo Arruda. E é precisamente essa faceta oposta, sombria, a que persegue e assombra os textos desta Pixé.
No caso da obra de Gonçalo Arruda essa cisão entre o solar e o noturno, o simples e o grotesco, é uma cisão excepcionalmente brusca. Quem conhece apenas suas paisagens matinais, suas festas de santo, suas cenas domésticas ou suas figuras dedicadas ao trabalho cotidiano não intui absolutamente nada de todo um microcosmo infernal, insólito, quase boschiano de Arruda. Eis, enfim, o céu e o inferno do artista – dependentes ambos um do outro. Afinal, o céu é sempre mais céu quando oposto a um inferno. O inferno é sempre mais inferno quando oposto a um céu. Assim, conhecer um lado da produção de Gonçalo Arruda significa necessariamente entender melhor o lado oposto, reconhecer o antes conhecido: voltar às paisagens matinais e às festas de santo depois de ir às noites de Valpúrgis de suas figuras animalescas é chegar a outras paisagens matinais e festas de santo. Outras e melhores.
Hilda Hilst afirma o seguinte em entrevista de 1990, quando do lançamento de seu livro O caderno rosa de Lori Lamby: “[...] de uma certa forma, se você for consideravelmente repugnante você faz com que o outro comece a querer a nostalgia da santidade”.
Creio que o oposto seja também válido: que sendo consideravelmente santo se acorda no outro a nostalgia da repugnância. Uma ponta necessariamente leva à outra na tentativa de apreensão mais frutífera de qualquer fenômeno, de qualquer artista.
Que bom, então, que estas madrugadas boschianas e perturbadoras de Gonçalo Arruda persigam e assombrem os textos da Pixé. Quando ao final da leitura retomarmos as suas manhãs à beira do rio, elas serão já outras e melhores manhãs à beira do rio. Mais claras, talvez.
E, depois delas, também outras serão já as madrugadas. Melhores.