Marta Cocco
Marta nasceu em 18/09/66 em Pinhal Grande-RS, veio para Mato Grosso em 1992 e atualmente reside em Tangará da Serra. É professora de Literaturas da Língua Portuguesa da UNEMAT, Doutora em Letras e Linguística, membro da AML e autora de 11 livros.
PALAVRA DIFÍCIL
viver no mundo
é uma corrida
em trajeto de só esquinas
…
Deus,
você tem certeza
de que este destino era meu?
(Santiago Vilela Marques)
Aproveitamos que o dia estava mormacento, o serviço adiantado e fomos visitar, eu e a mãe, uma amiga dela de juventude. A minha irmã Maria, pra variar, não quis ir. Ficou de papo com um desses inumeráveis amigos pseudo intelectuais que ela tem, bons de discurso, ruins de serviço. Como ela. Adora passar mensagens de autoajuda pelo celular. Nunca se prestou para a caridade em termos práticos. Nem com nosso irmão, que Deus o tenha, ela era paciente. Ele sofria de uma doença rara na pele e ficou muito tempo em repouso. Tínhamos de trocar a roupa de cama duas vezes por dia. Ela jamais lavou um forro de travesseiro. Olha aí, já estou me desviando do assunto. Ah, sim! Chegamos até a casa de repouso onde estava Dona Carina. Ela não nos reconheceu. Estava com a memória bastante danificada. Quem é esta? Perguntava. Nós respondíamos e ela dizia: não conheço, não estou conhecendo, coisas assim. Sentíamos nela uma profunda tristeza por não conseguir lembrar das pessoas, dos nomes das pessoas. O nome, que palavra difícil. Depois de um certo tempo, não sei se alguma coisa lhe clareava, segurava a mão da minha mãe e dizia, fica aqui, não vai embora. Estava muito magra, o cabelo aparado e totalmente branco.
Nós saímos de lá com o coração apertado. Será que está sendo bem tratada? Ela não teve filhos, não casou. O pai e mãe morreram há bastante tempo e os irmãos e irmãs que ainda estavam vivos moravam longe e sequer ligavam para saber notícias. Perguntei à mãe por que ela não havia casado. Nunca teve namorado, disse a mãe, exceto um tal que de vez em quando aparecia e falava em namoro, mas o pai dela botava pra correr. Diziam que o sujeito era vagabundo, não aguentava uma tarde de sol no cabo da enxada. Depois disso, segundo a mãe, nunca se soube de mais nada e ela foi envelhecendo e ficando sozinha, à mercê de um irmão, que ficara com a parte dela na herança, mas que já havia morrido, aí ela ficou com um sobrinho. Quando a doença se agravou, não foi possível mantê-la em casa. Gritava muito, tirava a roupa em qualquer lugar e não sabia mais usar o banheiro. E não era fácil convencê-la a tomar banho. Precisava de um lugar onde houvesse pessoas dedicadas a cuidá-la em tempo integral. Então encontraram a tal casa para idosos. O lugar era limpo, as vestimentas das velhinhas também, embora muito simples. Havia um oratório na entrada, à esquerda, foi a primeira coisa que minha mãe notou. Na saída me fez ajoelhar e rezar uma dezena do terço. Quando eu ia levantar, pediu: vamos rezar mais uma, para que não aconteça com a gente. Reza aí, mãe, eu vou dar uma geral e conversar com as mulheres da cozinha. A minha mãe rezava o terço praticamente chorando, uma gravidade no olhar, uma coisa dramática. Quando fomos embora, eu disse: não gostei do cheiro de coisa velha deste lugar. Impressão sua, está tudo limpo. É, mas que tem um cheiro esquisito, tem. No oratório, a cara triste de um Jesus com o coração sangrando, à mostra, deixava o cenário ainda pior. Reparei em tudo, até nas flores de plástico, desbotadas, feias, num pequeno vaso de porcelana branco. Nada havia ali que me agradasse. As cortinas eram mal feitas, a toalha da mesa da cozinha tinha um remendo e o pátio era cimentado.
Um mês depois ligamos para lá, minha mãe queria repetir a visita, estava impressionadíssima com a doença, passou a rezar o tempo todo para não perder a memória. Se acontecer comigo, que Deus me leve logo, dizia.
A diretora não estava, quem atendeu o telefone foi uma funcionária da copa: a Dona Carina morreu. O quê?
Ligamos para o sobrinho dela cobrando o convite para o enterro, minha mãe estava chateadíssima de não ter sido avisada. Ficamos pasmas. Ele soube por nós, da morte dela. A mulher morreu, a enterraram e ninguém ficou sabendo. Foi um constrangimento. A família quis processar a diretora, mas depois… Não vai adiantar, isso não a trará de volta. Outro dia, conversando com a esposa do sobrinho, descobrimos que a tal diretora ainda conseguiu sacar outra aposentadoria, com o cartão do banco. E que ela foi enterrada sem nenhuma cerimônia, como indigente, num cemitério da cidade.
Noite dessas, desliguei a luz e me deitei na cama. Quis gritar, mas a voz não saiu. Uma mão geladíssima segurou a minha, abri os olhos e enxerguei a mulher, pálida, com uma camisola branca. Saltei da cama e quando acendi a luz ela sumiu. Na noite seguinte de novo. Não era sonho, era real, era a Dona Carina, com a mão gelada sobre mim, parecia que queria me dizer alguma coisa, mas não dizia nada. Só aqueles olhos tristes, fundos e arregalados. Fiquei apavorada, o que ela iria querer comigo? Algum recado, algum aviso, algum pedido? Ninguém segura na mão de outro a troco de nada. Fiquei com medo, e muitas noites assim se sucederam. Contei pra minha irmã que se limitou a dizer que é por causa disso que não visita gente doente, pra não ficar impressionada. A mãe, pra variar, tinha sempre a mesma solução: reza! Numa dessas noites, fui pra cozinha, fiz chá de cidreira. Voltei pro quarto e mantive a luz acesa. Daí me veio a ideia de botar tudo isto no papel. Na noite seguinte ela não apareceu. E na seguinte também não, e nunca mais. Contei pra mãe e mostrei o texto. Olha aí, escrevi sobre a Dona Carina e sabe que ela parou de me aparecer? Acho que exorcizei ela. Antes de ler minha mãe perguntou o que significava exorcizei e implicou. Ninguém gosta nem entende as coisas que você escreve, porque fica botando aí palavra difícil.
Leia mãe. Aí não tem palavra difícil, eu garanto.
Mas ela tinha que pôr um defeito. Marta, você só sabe escrever assim? Não é capaz de contar alguma coisa diferente, uma coisa alegre, uma coisa que ter-mine bem?
Respondi que não, que a mim coube a pior parte. Está no evangelho.