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Marta Cocco 
É natural de Pinhal Grande-RS, formada em Letras, doutora em Letras e Linguística, professora de Literaturas da Língua Portuguesa na graduação e na pós-graduação da UNEMAT-MT. Faz parte do grupo de pesquisa LER: Leitura, literatura e ensino – UNEMAT/CNPq. Ganhadora de vários prêmios literários, já publicou cinco livros de poemas (Divisas, Partido, Meios, Sete Dias e Sábado ou Cantos para um dia só), dois de crítica literária (Regionalismo e identidades: o ensino da literatura produzida em Mato Grosso, Mitocrítica e poesia), um de contos (Não presta pra nada) e, com este, três infantis (Lé e o elefante de lata, Doce de formiga e SaBichões).

PIXÉ – Um reduzido grupo de amigos escritores teve a satisfação de ler antecipadamente o seu próximo livro de poesia, Domicílio. Não há qualquer restrição sobre o aspecto estético porque você experimenta vários estilos para compor um quadro mais ou menos íntimo no interior de uma arquitetura. Santiago Vilela Marques também trabalhava nesse sentido, não discriminando estilos. Na sua opinião, estamos num tempo em que superamos as antigas rupturas estéticas nas quais pregava-se a morte do passado? Ou no encaminhamos para novas rupturas? Vivemos num museu de velhas novidades, como diria Cazuza? Ou estamos menos paranoicos pela originalidade estética?

MARTA COCCO – Acho que o poema, verbal, no papel, em termos formais, já experimentou tudo. Não há mais o que inventar. No suporte digital é que podem surgir novidades. Eu nunca pretendi inventar nada, em literatura. Escrevo porque preciso. São sentimentos e visões de mundo que a gente elabora de fora pra dentro e de dentro pra fora, vivendo em sociedade. Em Domicílio, numa das seções, quis brincar com as formas tradicionais. Então escrevi uma cantiga, um soneto, 4 haicais, uma balada, um madrigal, um triolé e um vilancete.  Contudo, até essas formas fixas sofreram algum abalo. Nunca o passado volta tal como era, pois as condições materiais de existência são outras. Por outro lado, ruptura absoluta não existe.

Essa brincadeira, que fiz na primeira seção de Domicílio, talvez seja um jeito de dizer que eu acredito na ideia de que evoluímos no tempo no modo espiral, ou seja, o tempo é circular, voltamos, mas sempre num patamar diferente. Ou de dizer que o domicílio, o mundo, é o mesmo, os inquilinos é que mudam, e novos inquilinos fazem novas decorações, novos arranjos, novos estragos, novos reparos, novas ruínas, num constante diálogo com o passado, flertando com o futuro. Talvez, também (porque este livro está pronto desde 2017 com algumas alterações de lá para cá), haja certa influência de 4 anos de mergulho na poesia de Lucinda Persona, em que a imagem da casa e o arquétipo do abrigo são muito fortes. Na poesia dela, o poema encarna esse arquétipo. Na época, Lucinda esteve lá em casa e eu mostrei o livro a ela e perguntei. Será que estou te copiando? Ela disse que não, que era outro estilo. Enfim, o domicílio da poesia, no frigir dos ovos, é o poema e, no limite, a palavra. Isso de algumas rupturas estéticas quererem abolir a palavra não me seduz. Se a matéria prima não for a língua, estamos diante de outra coisa, de outra natureza que não a literária. A literatura ainda é linguagem verbal. Talvez, no dia em que as línguas forem dispensáveis na comunicação, aí sim, possamos falar de novidades.

 

PIXÉ – Não presta pra nada. Esse é o título do seu primeiro livro de contos, selecionado pelo MEC para ser oferecido no programa nacional PNLD. A literatura, afinal, presta para quê? O que você espera que aconteça com alguém que leia o seu livro de contos?

MARTA COCCO – Para o PNLD foi selecionado um infantil, o Sabichões. O Não presta pra nada venceu o I prêmio Mato Grosso de Literatura, na categoria contos. A literatura, eu creio, a partir do que aconteceu comigo, e do que observo na docência, tem um papel fundamental na história humana. Todos nós vamos vivendo, desde a infância, experiências que nunca compreendemos totalmente. A literatura nos ajuda a organizar esse ‘caos existencial’, a partir das experiências fictícias, em prosa ou verso, em que há uma certa ilusão de acabamento que nos permite elaborar melhor certos dramas, reflexões, intuições etc. São atividades do espírito que nos fazem humanos, diferentes de outros seres vivos. A literatura presta, entre tantas coisas, para isso também. Como vivemos num mundo em que as necessidades materiais são impositivas, negligenciamos muito aquilo que não tem uma finalidade pragmática ou, nos dizeres de Alfredo Bosi, referindo-se à poesia, aquilo que não se compra em mercado. É incrível que ainda haja a sabotagem dessa ‘humanização’, porque os efeitos são muito ruins.

A sua pergunta é muito perspicaz porque, à primeira vista, o título desse livro está relacionado com uma das personagens do primeiro conto, de como ela foi constituída no ambiente familiar, em que o trabalho manual era mais importante do que o intelectual. Mas, num segundo plano, o título é uma provocação a pensar sobre o papel da mulher e o papel da escrita.  Historicamente, a mulher só servia para procriar e desempenhar tarefas domésticas. Estava excluída dos círculos de poder e decisão externos à casa, excluída também de decisões sobre seu próprio corpo e vontades. E a escrita, que é um espaço de poder, foi negada a muitas. Então, o livro, como uma unidade, tem a ver com isso. Desde o título, passando pela dedicatória e pelo fio condutor dos contos, começando pelo desprezo aos estudos e culminando com a escrita como um ato de exorcismo, ou de catarse, ou de libertação da voz, chega-se a essa provocação que você intuiu muito bem.

O que eu espero dos leitores? Eu espero que gostem, que se emocionem. Eu fiz um livro simples, procurei não dialogar apenas com os iniciados em literatura.

 

PIXÉ – Vamos nos deter no seu livro Sábado. Trata-se de um poema longo, um encadeamento poético que percorre o tempo. É uma expressão que deve ter demandado muito trabalho. A questão é saber se, na contemporaneidade, o público que está acostumado com a comunicação instantânea consegue investir tempo na leitura. Na sua opinião, poemas longos e mesmo narrativas longas estão fadadas à leitura cada vez mais reduzida? Como explicar que a nova categoria “romance de entretenimento” possa trazer livros em série com milhares de páginas e o público permaneça arredio a poemas longos e narrativas literárias maiores?

MARTA COCCO – Olha que coisa engraçada. Sábado é um poema longo, de 30 estrofes, feito numa madrugada. Claro que depois eu refiz várias vezes. Mas a primeira versão nasceu em poucas horas. Já tinha esse plano na cabeça há tempos, só não sabia como terminar. E gostei do desfecho. Acho que Sábado foi a coisa mais bem acabada que já escrevi. Só acho, porque o autor, às vezes, não sabe tanto como imagina sobre suas obras.

Mas aquela forma foi influenciada pelos estudos do gênero épico numa disciplina do doutorado. Então sábado é um poema lírico com traços, com um leve imitar da estrutura do épico, uma vez que recorre ao esquecermos: inspiração, dedicatória e desenvolvimento da ação onde tem a presença de um expediente fantástico e, especialmente, muitas referências mitológicas. Mas é essencialmente lírico.

Devo admitir que lá em Divisas, em 1991, há um poema chamado Transeunte que já traz o germe de Sábado. Tem um outro que não está em nenhum livro, está no meu blog, chamado Imagens de natal, que tem o mesmo motivo. Sempre quis escrever algo com um eu lírico atravessando a cidade e expressando suas sensações.

Mas respondendo sobre a extensão das narrativas e o leitor, penso que o livro pode ser extenso, mas precisa ganhar o leitor nas primeiras páginas e mantê-lo atento, ansioso pelo desfecho. Essa fórmula, de prender a atenção, funciona desde sempre. Para o escritor, é o grande desafio. Como acertar a mão? 

Agora, inegavelmente, há uma mudança, sim, na forma como percebemos o tempo. O tempo, dizemos em linguagem vulgar, está passando mais rapidamente. Entretanto, a marcação dele no relógio não mudou. Então é a nossa percepção, afetada pelos meios tecnológicos de transporte e de comunicação que está alterada. A nossa rotina, no trabalho, está mais frenética. Quem tem tempo e condições para dedicar-se a uma leitura concentradamente? O acesso a uma variedade grande de textos, de diferentes gêneros e em diferentes suportes, também mudou muito nos últimos anos. Isso permite muita distração, entretenimento, atenção a episódios sensacionalistas, fofocas, coisas que não ajudam muito na formação de um sujeito crítico.

Enfim, tudo isso muda o cenário da leitura, uma atividade - veja o paradoxo - que ainda goza de prestígio intelectual, mas é negada à grande massa na forma de distração ou de submissão a um regime exaustivo de trabalho.

Entre os leitores de obras literárias, para responder mais pontualmente a sua pergunta, também existe um intervalo grande de grau de legibilidade. De modo geral, as narrativas muito longas, assustam à primeira vista. Mas, quando apostam numa fórmula tradicional de suspense, superação de obstáculos, agradam muita gente. É o caso dos best-sellers.  Poesia é para pouquíssimos. Hoje o poema tem tido um pouco mais de espaço nas redes sociais porque é um gênero relativamente curto. Mas os longos não têm vez. Nas redes, as pessoas querem “zapear” rapidamente. Esse assunto daria muitas páginas de conversa.

 

PIXÉ – A literatura infantil deve modular a linguagem? Deve filtrar temas? Recentemente, Monteiro Lobato foi acusado de racista. De fato, há vários artigos de opinião de Lobato que o revela eugenista. Nem é esse o ponto. A questão que pretendemos recortar da obra dele é a caça de passarinhos, por exemplo. As arapucas são, hoje em dia, politicamente incorretas. Essa é uma amostra para outras centenas de hipóteses de eventual filtragem. Poderíamos dizer que a caça às baleias em Melville e a ironia de Swift com a diversidade em Liliput são condenáveis. O que fazer? Atualizar o texto? Censurá-lo? Bani-lo de sala de aula? O que se pode fazer com obras passadas e o que fazer com obras contemporâneas?

MARTA COCCO – A literatura não deve nada e pode tudo. Porque é sempre a voz conjugada de um tempo, de um lugar, de uma cultura, de um grupo, de um indivíduo. Como uma forma de arte, seu nascedouro deve ser a liberdade. Esse é um ponto, para mim, inquestionável. Quando se trata de ensino, aí eu concordo que, pensando na formação das crianças, possa haver ponderações quanto à idade, respeitando-se as fases de desenvolvimento, de amadurecimento, inclusive de amadurecimento linguístico.

A literatura pode e veicula valores, ideias, conceitos. Mas, antes de ter uma função disciplinadora, tem, por natureza, função emancipatória. O caso de Lobato é um exemplo de que o problema não está exclusivamente no texto, o qual é fruto de uma visão de mundo de uma determinada sociedade num determinado tempo. Está no modo como o lemos e, no caso da escola, da competência do professor mediador. Porque esse texto pode ser lido, inclusive, para que sejam apontados os preconceitos do narrador e, talvez, por extensão do autor, os quais podem estar filiados a um pensamento dominante. Ressalvando que um autor, muitas vezes, pode se manifestar ambíguo nas produções. É por onde a língua desliza, os atos falhos emergem. Veja o caso do conto “Negrinha”, de Lobato. Ali há um narrador claramente antiescravagista. Machista, mas antiescravagista. Então, no conjunto da obra literária dele, há essas polissemias. Mas voltando à questão, questionar posicionamentos de narradores ou eu líricos de obras de outras épocas é um procedimento pedagógico muito bom para demonstrar que as coisas mudam, inclusive e principalmente pela atuação dos movimentos sociais, pelo avanço nos estudos. Não é uma maravilha nos darmos conta de que podemos melhorar a nossa estada neste mundo?

O que eu acho que ocorreu no caso de Lobato é que as pessoas envolvidas nos movimentos contra o preconceito racial pensaram: a maioria dos nossos professores é mal remunerada, tem condições de trabalho muito precárias, o que não permite um tempo adequado de estudos, de investimento na capacitação profissional etc, por isso, é menor tirar o livro de cena. Porque se esse aspecto não for bem trabalhado, é capaz de alguma criança achar que chamar um negro de macaco é legal porque está no livro de um autor famoso e prestigiado. Então, às vezes, a gente precisa tomar decisões pontuais, pautadas não na realidade ideal, mas na realidade concreta. Infelizmente.

O caso da arapuca, reflete um tempo em que não havia estudos sobre questões ambientais, não se falava nisso, o mundo ainda estava sendo guiado por uma narrativa mítica e, portanto, poderosa, de que o humano deveria dominar os outros seres. É complicado falar disso sincronicamente. É preciso olhar para a história, com algum distanciamento, na dimensão sucessiva e também não-linear.

Voltando à questão e concluindo, nenhuma obra precisa ser censurada, desde que haja competência para se fazer a mediação e que a seleção seja feita de acordo com o processo de amadurecimento do leitor. Bom senso e capacidade crítica.

 

PIXÉ – A maior reclamação de um adolescente foi e continua sendo a obrigatoriedade da leitura dos clássicos brasileiros. A preparação para exames no final do Ensino Médio conduz o jovem leitor a estilos com o qual não está acostumado. Além do mais, o prazer do texto, em geral, é trocado por formas didáticas de identificar estilos, mais uma razão para o afastamento do jovem. O ensino de literatura não seria o maior desfavor à literatura? Não seria mais interessante parar de ensinar literatura e simplesmente passar à leitura livre? Como abordar a juventude? Qual a melhor estratégia?

MARTA COCCO – O ensino da literatura, do modo como sua questão sugere, vem sendo debatido desde meados do século XX. Isso de ensinar pela historiografia, por periodização é muito criticado. Mas há um imbróglio para mudar os currículos, porque isso demandaria outro tipo de estrutura na carga horária e na atribuição de serviços, na relação professor-aluno, na qualificação do professor, na infraestrutura das escolas etc. Mesmo na universidade, onde supostamente temos alguma liberdade, não conseguimos efetuar muitas mudanças porque há normativas a seguir, vindas do MEC, há resistências etc. Não dá para fazer uma mudança radical de uma hora para outra. Os futuros professores nos cursos de licenciatura são, a maioria, trabalhadores oito horas por dia, muitos até aos sábados. Como falar em mudança qualitativa nessas condições?

Nas escolas, o livro didático e as apostilas tendem a trabalhar com o texto fazendo abordagens interpretativas sobre aspectos temáticos, contextuais, estruturais e linguísticos, o que não é ruim, tudo contribui com a formação do leitor. Mas não pode ficar apenas nisso. Porque é uma perspectiva um tanto fragmentária. Para uma formação mais consistente, programas e projetos de leitura, inclusive interdisciplinares, são mais eficazes.  Nos programas de mestrado profissionalizante, em que professores efetivos têm uma licença para se dedicarem aos estudos teóricos, ao desenvolvimento de uma pesquisa-ação e à escrita de uma dissertação, tivemos uma experiência muito positiva com projetos de leitura, em que as etapas foram bem planejadas. Desde a motivação ao produto final. Então, um dos caminhos pode ser esse. O leitor precisa ter espaço para exercitar sua autonomia.  Mas, no cotidiano de suas salas de aulas, com vários alunos, várias turmas, pouco horário disponível para planejamento etc, como fazer? Além do que, nesses projetos, geralmente mestrandos/as investem dinheiro particular nos materiais utilizados.

Agora, a escola, sozinha, não faz milagre. Olhe para a nossa cultura. Onde o livro é valorizado?

Imagine uma grande campanha, de norte a sul do país, uma campanha oficial, envolvendo todas as esferas do poder, em favor da leitura. Feiras, prêmios, gincanas, atividades interativas em redes, em suportes digitais, envolvendo ciência e outras artes também... Há dinheiro para isso? Quanto se perde em corrupção, desvios, maus investimentos, obras inacabadas? 

Dez anos de uma força tarefa em favor da leitura, no sentido amplo, e o Brasil teria outra cara. Lembra do cigarro? Quando os custos para a saúde pública ficaram muito altos, o governo resolveu investir em campanhas antifumo. Os resultados foram significativos. Tudo é questão de consciência e vontade política. Precisamos acordar para o fato de que o custo da ignorância é mais caro que o do investimento em educação de qualidade, como disse um ex-reitor de Harvard.

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