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Marli Walker

É poeta e professora (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso). Integra o Mulherio das Letras/MT - Coletivo Maria Taquara. Publicou os livros de poemas “Pó de serra” (2006), “Águas de encantação” (2009) e em 2016 lançou “Apesar do amor”, selecionado pelo MEC para o PNLD. Em 2020, Lucinda Nogueira Persona completa 25 anos de carreira literária, homenageada por esta edição especial da Revista Literária Pixé e pela peça “No domingo, ele vem nos visitar”, de autoria de Eduardo Mahon, com direção de Luiz Geraldo Marchetti.

LUCINDA PERSONA, A FLOR SEMPRE-VIVA DO CERRADO

 

O passo do instante (2019) é o novo livro de poemas de Lucinda Persona, poeta brasileira e, para nós de cá, a grande Dama da poesia escrita em Mato Grosso. O volume com 60 poemas, divididos em duas partes, “Sobrevivências” (22 textos) e “Celebrações” (38 textos), chega encapado com imagem da belíssima obra “Pepalantus”, de Regina Pena. A delicada espécie do cerrado brasileiro, popularmente conhecida como Sempre-viva, apresenta um crescimento lento e a floração termina o ciclo da planta. É uma flor que mantém sua beleza, mesmo depois de colhida. Recortes das imagens da capa e contracapa são expostos em detalhes no interior do livro, como que aproximando o leitor da experiência fruitiva, puxando-o, capturando-o para dentro do universo poético.


A obra vem dedicada à memória do “filho, que em sua vida curta foi a própria encarnação do instante”. As flores e a poesia, entre sobrevivências e celebrações, constituem o lastro que sustém a poeta e a movem em sucessivos e contínuos versos, poemas, livros (anteriores) inteiros na inesgotável exploração de um mesmo tema: o tempo, este passageiro irreversível contra o qual nada se pode que não seja escrever para sobreviver e celebrar.


Sobre a apresentação de Raquel Naveira, destaco o subtítulo “a poesia outonal de Lucinda Persona”, sentença que antecipa ao leitor as sobrevivências e celebrações a serem reveladas no decorrer dos poemas. A resignação do outono é uma lição premente aos que desejam resistir e prolongar O Passo do instante.


Seleciono, então, a teoria necessária para amparar os apontamentos desta resenha. Separo o bom e velho Bosi (O ser e o tempo da poesia), escolha óbvia ante o tema da obra; Bachelard (A poética do espaço), de onde penso extrair auxílio para iluminar a fenomenologia da casa e da janela, espaços caros à poeta, sempre presentes de uma forma ou outra e, por fim, Octavio Paz (O arco e a lira – a revelação poética) para acentuar a marca da temporalidade, o ritmo, a repetição criadora que parece ser o motivo constante em Persona.


Qual será, afinal, o motivo da flor Sempre-viva neste O Passo do instante? Entre “Gênese”, primeiro poema, e “Dúvida genética”, poema que fecha a obra, está a Sempre-viva (Pepalantus). Ouso dizer que a flor e a poesia, desde o primeiro até o último verso, encerram em si o motivo de todos os passos e instantes da poeta. Lucinda celebra o outono em estado de genuína renovação e reiterada permanência na estação poética dos dias, das noites, de todas as horas da vida inteira. Este instante soa como o período de aceitação e resignação ante os mistérios inerentes às Sobrevivências e Celebrações.


Considero os poemas “Gênese” e ‘Dúvida poética” os limites que demarcam o início e o fim de uma estação (o motivo da flor), na qual a poeta concebeu uma linha temporal particular neste conjunto de poemas. Nessa parcela de tempo, a questão que lança no último poema, mudando-se a posição/ de um grupo de palavras/ gera-se poesia? é retórica, é jogo lúdico que remete o leitor de volta ao primeiro poema, “Gênese”, princípio-luz que ilumina todo o conjunto de imagens da obra. Ciente do ofício, é no princípio que Lucinda revela o esforço da criação: raramente um poema corre/ conforme o planejado/ às vezes, morre ainda embrião /…/ desenrolo/ até não poder mais/ o princípio da poesia/ eu gostaria tanto de acertar/ de não ir para a cama tão tarde. A poeta acerta em cheio a disposição da linha do tempo dos poemas, a sequência que divide o livro em duas partes e, assim, aprisiona o passo de cada um dos instantes no ritmo de uma temporalidade possível que só se exprime e se perpetua na poesia.


“Boneca de pano” é um poema para o qual chamo a atenção, quer seja pela beleza da imagem que nos coloca diante da criança brincando com sua boneca de pano, quer seja pela leveza dos versos era como jogar para o céu/ o que eu tinha de mais leve. No breve quadro elaborado por Lucinda, vemos a delicadeza com que a poeta seleciona, junto à memória, o tempo sagrado da infância para nos dizer, ao fim, que a boneca ficou no telhado/ A viver por conta própria. Diz-nos, com essa imagem excepcional, que somos capazes de soltar, libertar para o voo aquilo que temos de mais caro, mais querido e reconhecer que a vida segue, que nem os filhos, nem os amores, nem o instante mais sublime, nada é definitivamente nosso.


Talvez por isso o poema “Folhas caem” encerre em si, de modo tão acentuado, a imagem da ciranda feminina. As mulheres, seres de tantos partos e perdas, de tanta entrega (suas crias vão viver por conta própria!), elas, as mulheres, quando amam/ caem/ desfalecidas/, sejam tão semelhantes às folhas que caem amarelo-tostadas/…/ numa perda programada/ situação normal de outono/ e todas se juntam no chão/ para tirar mais partido/ do seu sentido de grupo. Eis o mistério a se revelar ao passo que seguimos irmanadas por entre tantos mistérios.


“Moldura de ocasião” impressiona pela imagem que se abre aos olhos do leitor, como quem vê, pela janela da poesia, a paisagem interior da poeta como um céu inteiro de possibilidades. Ela diz: a janela que eu tenho/ aberta para fora e para dentro/ não sai de onde está por nada/ e sempre me espera/ com o céu na cara. Se ela dissesse de outro modo, poderia dizer: a poesia está sempre aqui, aberta, à minha espera, e eu cumpro a sina com o céu na cara, porque esse é o meu motivo e o meu eterno instante.


Por isso, “Com todas as letras”, ela sobrevive e encerra a primeira parte da obra assumindo o projeto em cada passada poética, percorrendo os mínimos instantes com lucidez e ponderação:

/…/
seguir assim a pequenos passos
ponderando
veredas
reviravoltas
cambalhotas
escrever sem parar, letra por letra
as palavras que estão à espera
(mas dentro de uma força)
como se estivessem nos labirintos
de uma ostra no fundo do mar
e pelo que sejam muitas ou poucas – tais palavras
arrancá-las à ponta de faca
agrupá-las (uma ao lado da outra)
para um bem-apanhado verso
esperar que possam (no poema)
pender como pérolas
no fio de um colar.
 
Na segunda parte do livro, as “Celebrações” trazem memórias recentes e a poeta seleciona a imagem de um outubro em “Florença”, na qual o passo do tempo ganha materialidade ao descer por colinas, e acaba por entravar o cortejo: quando chegamos a Florença/ outubro coordenava o mundo/ mas o outono foi o agente provocador/ aquelas folhas amarelas espalhadas pelas ruas/ pareciam o comboio de um invisível cadáver /…/ a sombra do tempo descia pelas colinas/ e entrava a passos lentos naquele cortejo. E as folhas amarelas foram levadas como comboio de um invisível cadáver, segundo o seu mistério.


Na sequência, o poema “Tempo favorável” anuncia uma luminosa constatação: é tão bom saber que/ o tempo favorável é agora, sim, pois “Estrelas fervilham” e parece improvável que alguma noite se apaguem. No entanto, o verso seguinte apresenta a consciência de que (nosso destino também deveria ser assim), instaurando ou recobrando a sensatez frente ao instante que se esvai no destino de cada segundo.


A partir daí, volta-se a poeta, poema a poema, passo a passo, ao universo interior. Do céu fervilhando de estrelas para dentro de um “Crustáceo”, como num passo sem volta, até atingir o estágio em que se arvora entre palavras, sílabas e intervalos possíveis ou impossíveis entre elas. O crustáceo vive num reino à parte/ desligado dela/ e de todos os outros seres /…/ Não, ela não poderia digeri-lo assim/ encouraçado feito um crustáceo e cru/ unhas compridas/ pedrinhas no rim/ não poderia digeri-lo assim/ com a alma dobrada/ (a blindagem atingindo o máximo) / Que trabalho/ sugar-lhe a polpa/ dos esconderijos. Não é fácil adentrar ao universo interior sem que uma certa aflição acompanhe o exercício. A angústia se instaura definitiva no poema “Quem está vivo”, quando a poeta sentencia: só quem está vivo/ vagueia pelas horas e pode atravessar/ sem dar um passo sequer/ a paisagem que vem de dentro.


Eis que ela, a poesia, vem em seu socorro no poema “Tu me observas, ó poesia”, e num gesto de entrega, fragilidade e humanidade, Lucinda recebe, aceita e acolhe o desafio do instante sublime: que difícil equilíbrio/ da poesia em vigília/ a poesia – tal qual o amor/ vigia sempre. Ela o faz, porém, com certa “Queixa”, pois há infinitos poentes/ e este tempo/ impiedosamente curto/ para existir e escrever/ a cada instante/ sobressaltos vários. Então, como uma iluminação, surge o poema “Clarice e as palavras”, no qual a poeta confessa: encontro Clarice/ em certo momento/ quando anunciou o desejo/ de escrever/ com palavras tão agarradas entre si/ de modo que não existam/ intervalos entre elas. E, ao final, a “Dúvida genética”, já mencionada como um jogo lúdico a enlear o leitor nesse passo calculado, a poeta lança a grande questão e a responde no mesmo instante: mudando-se a posição/ de um grupo de palavras/ gera-se poesia? /…/ A resposta que me derem/ é também a minha. Sugiro ao leitor que leia o primeiro poema da obra e veja lá, detalhada, a resposta da poeta. Ela deseja prosseguir, feito animal em busca de alimento, tateando, ou como pássaros bicando cascas, porque a poesia é seu ritmo, sua temporalidade, sua essência, seu passo e seu instante.


Lucinda Persona é a flor Sempre-viva do Cerrado, é o buquet de flores que já nasce pronto a ofertar-se em poesia, neste Passo do instante e sempre, para todos nós.


Cuiabá, noite de outubro, à espera das chuvas.


Marli Walker, professora e poeta (em pleno outono).


P.S.: Os autores mencionados não foram usados no texto por total falta de necessidade de qualquer apoio teórico diante de tamanha poesia.

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