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Marithê Azevedo
É o nome em arte de Maria Thereza de Oliveira Azevedo, doutora em Artes Cênicas e Mestre em Cinema pela ECA/USP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO/UFMT), também atua como cineasta, roteirista e propositora de poéticas urbanas. Dirigiu e roteirizou mais de 30 produções audiovisuais para a educação, 04 curtas de ficção, 07 documentários, além de ter dirigido uma série em 07 episódios para o canal GNT (Canal de TV Fechado). Atuou como jurada no VIII TALLER DE GUION, XI BOLIVIA LAB. É ganhadora de diversas premiações, como o Melhor Documentário Brasileiro do FEMINA (Festival Internacional do Cinema Feminino) por “Memórias Clandestinas”. Atualmente está finalizando o documentário “As cores que habitamos” e teve o roteiro para o longa-metragem de ficção “Religare”, selecionado pelo MINC para desenvolvimento de roteiro que também foi premiado pelo Bolivia Lab e Lab Visões Periféricas.  Seus contos foram publicados em Ruído Manifesto e na revista Diversos Afins.

MEIAS FINAS COM RISCO ATRÁS

Ela esticou as meias finas. O risco da linha precisava ficar bem retinho atrás. O vestido godê duplo, rosa seco, completado pelo colar de pérolas, enfeitava seu corpo magro e elegante. Os cabelos pretos cheio de ondas que ela fazia com sabonete lux, usado como fixador, davam um toque moderno ao look do baile de formatura. Tia Lúcia adorava dançar e eu, menina, ficava só admirando, encantada com o seu jeito de se arrumar e sua exuberância nos movimentos. Ao ensaiar para o baile, me puxou pela mão com uma alegria contagiante e requebrando o corpo até o chão, naquele piso de tábuas largas, me ensinou o roquenrol, novo jeito de dançar que ela aprendera não sei onde. Ela estava concluindo o curso de normalista no colégio das freiras do Sagrado Coração de Jesus, para ser professora. Gostava muito de declamar e desenhar. Algumas vezes me mostrava seu caderno de desenhos folheando bem devagar, folha por folha, passava o papel de seda com cuidado e na folha onde estava o desenho, parava e me olhava como que perguntando a minha opinião. O rosto de uma mulher na janela mirando o horizonte e um homem vestido com uma roupa de artista me chamaram a atenção. Eu via beleza em tudo o que ela fazia, inclusive as telas, que produzia no curso de pintura com a Dona Raquel, naquela casa antiga, azul desbotada, que ficava lá na praça, lembra? Perto do posto Texaco, do outro lado da igreja Matriz? Mas eu achava que o sonho dela mesmo era ser atriz de teatro, porque inventava umas roupas escalafobéticas, juntando várias peças de cores diferentes, colocava flores no cabelo e me arrumava também, com tules coloridos, pedaços de seda. Passava batom e um pó no rosto, daquele que vinha numa latinha redonda fininha, azul claro e beige, Pond’s, que ela me dava quando ficava no finalzinho. Ah! E o perfume cabochard, esse eu ganhei só o vidro com um restinho de perfume no fundo. E aí, então, ela recitava trechos de poemas. Eu era a sua plateia, mas eu gostava muito e sentia falta quando não estava com ela. Ó Alma doce e triste e palpitante! que cítaras soluçam solitárias pelas Regiões longínquas, visionárias do teu Sonho secreto e fascinante!  falava com as mãos e com o corpo projetando a voz.


Tia Lúcia morava na casa da cidade até terminar os estudos. A vovó, o vovô e dois tios solteiros viviam na fazenda e as outras irmãs casadas viviam na cidade.  Mamãe me deixava ficar com ela quando o tio Dimas e o tio Renan não estavam. Eles vinham de vez em quando para passar uns dias. Eram dois homens fortes, tio Renan mais quieto e tio Dimas mais conversador, contador de causos. Quando vinham pra cidade, cortavam o cabelo, colocavam roupas novas e iam passear. Parece que o Tio Dimas, o mais velho, tinha uma namorada que morava aqui em Santa Rita e ultimamente eles estavam vindo com mais frequência. Quando eles chegavam eu quase não via a tia Lúcia.


E quando a gente ia para a fazenda passar as férias, todos ficavam na varanda esperando para nos receber, numa fileira do mais velho para o mais novo. O vovô era o primeiro a ser saudado. A gente tomava a benção dele beijando a sua mão direita. Sempre achei engraçado isso de beijar só a mão dele. Ele também tinha uma cadeira na varanda que ninguém podia se sentar, porque era a cadeira dele. E quando ele falava, todos ficavam quietos. Tia Lúcia, nestas ocasiões, era a pessoa que nos levava para tomar banho de rio e para uns lugares “misteriosos” como ela dizia. E íamos também visitar a casa das pessoas que trabalhavam na roça. Aquelas casas pequenas de chão de terra batido, limpinhas, com cheiro gostoso, quintal varridinho, fogão de lenha e as panelas brilhando.  Como eu gostava dessas visitas. Enquanto tia Lúcia conversava eu me sentava no banco envernizado pelo tempo e ficava quieta apreciando tudo em volta. Me chamava a atenção a vassoura com o cabo de galho fino de árvore e os maços de alecrim amarrados com cipó, que ficava no canto da porta. Tia Lúcia era a única que se preocupava em visitar, como amigos, as pessoas que trabalhavam na fazenda.


Na preparação da formatura da Tia Lúcia, roupas novas para todos foram encomendadas para a costureira da mamãe. Eu já comecei a querer uns vestidos diferentes. Para escolher um modelo, olhei todas as revistas que a tia Lúcia me dera e fiquei contando os dias para experimentar o vestido novo. O clube estava todo enfeitado e famílias inteiras iam assistir a cerimônia de entrega dos diplomas das normalistas do colégio das irmãs. Tia Lúcia foi a oradora da turma. Falou bem empolgada como ela falava os poemas. Foi muito aplaudida. E no final todos foram cumprimentá-la e dar os parabéns, pela formatura e pelo discurso muito bem escrito e muito bem falado. Acho que ela deve ter ficado bem contente.


Depois da formatura fiquei muito tempo sem ver a Tia Lúcia. Eu ia prestar exame de admissão no início do outro ano e precisava estudar nas férias, por isso, não fomos para a fazenda do vovô neste ano.


Passei no exame de admissão e comecei a estudar no colégio das freiras, onde tia Lúcia se formara. O tempo passou e não soube mais notícias dela, depois que ela se formou. Um dia, escuto uns cochichos na sala de casa. Chego mais perto para ver quem estava lá. Era a tia Isabel conversando com a mamãe. Quando me aproximei de onde estavam, tia Isabel me cumprimentou, perguntou como eu estava indo nos estudos e ficou me olhando e esperando que eu saísse, para continuar as conversas ao pé do ouvido. Mamãe assentiu com a cabeça concordando com a Tia Isabel. Eu saí, mas fiquei à espreita tentando ouvir o que elas cochichavam. – Ela pegou uma tesoura e picotou todos os vestidos.  Ficou aquele amontado de pano picado. Rasgou em pedacinhos, todos os cadernos de desenho dela – sussurrou a tia Isabel. – Teve a crise quando o papai disse que não podia namorar aquele forasteiro. Mamãe estava com a mão na boca estupefata, chorando e tia Isabel continuou: – Levaram em camisa de força. O Dimas e o Renan que ajudaram a levar. Já tomou umas dez sessões de eletrochoque, mas não amansa.


Fiquei triste e meio angustiada por muito tempo, até porque ninguém falava direito o que tinha acontecido com a Tia Lúcia, pois era assunto proibido.  Eu ia tentando juntar os pedaços para compreender o que ocorrera.  Mas, quanto mais eu tentava entender, mais eu não entendia. 


Um dia chegou lá em casa uma caixa com uns vestidos que eram da tia Lúcia, pra eu diminuir e aproveitar. Fiquei olhando aqueles vestidos vivos e vendo a tia Lucia neles, declamando e dançando. 


O tempo passou, mas uma frase ecoa até hoje na minha cabeça. A resposta, quando eu perguntei. – Quando ela volta? – Ela se suicidou.

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