Maristela CarneiroMaristela Carneiro
É Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – PPGECCO/UFMT. Docente da Faculdade de Comunicação e Artes – FCA/UFMT, é Mestre em Ciências Sociais e Doutora em História. Coordena o NEC - Núcleo de Estudos do Contemporâneo. Dentre seus interesses, destaque para Estudos de Gênero, Feminismos, Artes e Cultura Visual, Pensamento Decolonial e Epistemologias do Sul.
POETA FINGIDOR, ARTISTA FUGITIVO
A alegria não desfruta de boa reputação no mundo das artes. Seja qual for a linguagem artística em questão, diversão é sempre tabu. Artes feitas com prazer, que proporcionem conforto ou que induzam ao riso são frequentemente descartadas como rasas e descomprometidas, incapazes de alcançar a complexidade do sensível. Essa visão, ao menos em parte, encontra sua justificativa no grande número de obras baseadas em narrativas preconceituosas, que exploram, perpetuam e difundem em nossa sociedade as mais grotescas caricaturas de mulher, de negro, de pobre e de LGBTQIA+.
“Fuga” é uma palavra que atiça sensibilidades em qualquer debate. Muito se foge da ideia de fugir. Se fugir é o ato de se desviar daquilo que se deve fazer ou do que se espera que se faça; fugir é, na melhor das hipóteses, um esforço precipitado por sobrevivência; na pior, uma demonstração de covardia e imaturidade. Os vencidos fogem. Os fracos fogem. As crianças fogem. Fugir é a marca dos que não conseguem defender sua posição ou fazer prevalecer sua vontade.
Dito isso, muito do que mais apreciamos na existência são as fugas: medicina é fuga da morte e da doença; confortos é fuga da dore; relacionamentos são fugas da solidão; metas e planos são fugas da inexorabilidade do acaso e dos acidentes que permeiam a vida do começo ao fim.
No entanto, é comum que a fuga, se exposta em uma pintura, uma canção, uma peça, seja percebida como menos artística. Quando filmes e telenovelas são tachados como “escapistas”, isso quer dizer que as pessoas os assistem para escapar dos flagelos do mundo real, refugiando-se em um local familiar e cômodo, um quarto quente e macio, repleto de heróis indubitavelmente bons, vilões inegavelmente maus e finais definitivamente felizes.
Uma obra ou linguagem que debanda do real geralmente recebe um insulto pronto, uma desqualificação rápida, um contraponto ao elogio que fazemos às artes que nos colocam à força diante dos aspectos mais duros e desagradáveis da realidade: as falhas humanas que desencadeavam as tragédias gregas, a violência dos dramas de Shakespeare, a miséria exposta no cinema novo brasileiro, o delírio da última série mais badalada.
E se a fuga é uma marca da arte ruim (não que o seja necessariamente), certamente seus marcos fundadores não os melhores estopins para a criatividade: sonhos são ilusões com as quais se revestem aqueles que não tem força para moldar novas realidades para si. A imaginação é um engodo ao qual se apegam apenas as crianças e os fracos. Será? Num mundo em que o auge da arte é dirigir nossos olhos à aflição coletiva, há que se fugir da imaginação. Há que se fugir da fuga. Boa arte, para muitos, é apenas a que aponta as feridas abertas e em sangue vivo do contemporâneo.
Trata-se, evidentemente, de uma visão preconceituosa. Enquanto não se nega o valor dos banhos de sangue e lágrimas que são Macbeth e Hamlet, o próprio Shakespeare imaginou um mundo de fadas e gracejos em Sonho de Uma Noite de Verão, uma fantasia que é tão repleta de observações sobre o mundo e a natureza humana quanto qualquer uma de suas tragédias.
Supor que as artes mais imaginativas e menos realistas são mais rasas é precipitado, assim como é ingênuo presumir que as artes que mantém seus pés no chão se tornam objetivas e reais, e não recorrem a clichês, simbolismos baratos e artificialidades.
Não existe arte sem fuga porque qualquer tentativa de olhar a realidade exige um afastamento da mesma. A arte é sempre um abismo que nos olha de volta. Toda arte faz uso de imagens das profundezas da mente, de metáforas, de lirismos. Otimista ou não, todo produto criativo começa com uma fuga. Não existiria propósito para arte se não houvesse espaço para a fuga. Mais que um belo fingidor, o artista é um belo “fulgidor”- um belo fugitivo.
Obras que misturam realismo e fantasia, como as visualidades de Paula Rego e Frida Kahlo e textos literários como Sonho de Uma Noite de Verão ou A metamorfose, tornam muito visível a necessidade por contradição que vive em todo trabalho criativo: para viver no mundo, precisamos confrontar suas complexidades, mas não podemos travar esse confronto sem antes tomarmos distância e nos informarmos sobre o que há de belo e horrível no que nos cerca, sem encontrar sentido no caos e alinhavarmos nossas percepções em arte, em estética, em poética.