Maristela Carneiro
É Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – PPGECCO/UFMT. Docente da Faculdade de Comunicação e Artes – FCA/UFMT, é Mestre em Ciências Sociais e Doutora em História. Co-Líder do Grupo de Pesquisa ContemporArte. Dentre seus interesses, destaque para Estudos de Gênero, Feminismos, Artes e Cultura Visual, Pensamento Decolonial e Epistemologias do Sul.
PERFORMANCES
É possível pensar a arte como uma brincadeira com a realidade, o que quer que seja essa realidade ou os critérios maleáveis pelos quais a definimos. Pela mágica do deslumbramento e da experiência da apreciação estética, materiais e palavras se coadunam para compor algo que é mais que a soma de suas partes. Vemos uma superfície plana coberta com tintas e a interpretamos como parte de uma tradição bem definida de milhares de outras superfícies planas cobertas com tintas. Vemos um bloco de material desbastado, um objeto pré-fabricado colocado em qualquer contexto, e extraímos desse arranjo de substâncias uma miríade de possíveis sentidos. Vislumbramos esses sólidos e julgamos que eles são dignos de paredes, de pedestais, de museus e de páginas e páginas de livros de história da arte.
Essas parafernálias são mais que a soma de suas partes porque elas são revestidas pelo brilho que nosso olhar imprime nelas. Nossos olhos, carregados com a pesada bagagem de sentimentos, memórias e patologias que acumulamos ao longo de nossas vidas, são também pincéis e cinzéis, modelando as obras tanto quanto o próprio artista - também assim chamado por uma série de convenções que vão se acumulando e acumulando e acumulando. A criatividade não é apanágio do autor; de certa forma, ela reside mais em nós, que observamos, do que naqueles que portam os pincéis ou os cinzéis.
Dessa brincadeira, que é um pacto entre a criação artística e o olho observador, nasceram inúmeros jogos: a proporcionalidade, o claro-escuro, a perspectiva, a abstração, cada qual acrescentando novas camadas de técnica e significação ao gesto de delinear figuras em materiais inorgânicos. A essa altura esse gesto parece natural, intuitivo, parte daquilo que chamamos humanidade. Quase nos esquecemos que o impulso por arrancar formas vivas de um bloco de rocha ou de madeira é algo que não ocorreu à maioria dos seres humanos ao longo de nossa curta história nessa bolinha azul que habitamos. Parece natural aplicar cores produzidas artificialmente sobres superfícies, também produzidas a partir de complexos processos aperfeiçoados ao longo dos últimos dois milênios. O mesmo vale para a moldagem de inúmeras substâncias. Papiros, papéis, tecidos, telas, pedras, metais, plásticos. Pintar e esculpir certamente não são atividades naturais aos seres humanos, mas sim invenções compostas de dezenas de pequenas invenções anteriores, que por sua vez colaboram para o surgimento de novas invenções até os dias de hoje. Novas invenções que tornam velhas invenções obsoletas.
Por isso as obras do artista plástico alemão Lucian Freud simultaneamente acalentam e chocam. Suas pinturas e esculturas atentam para nosso primeiro lar e conforto: nosso corpo. Este, porém, também é nosso primeiro estranhamento, nosso primeiro nojo, o alvo de nossas primeiras hostilidades. Nossas experiências só são inteligíveis porque temos um corpo para lê-las pelas vias dos sentidos, o que quer dizer que nosso corpo é uma fonte infindável de prazeres, provenientes de agradáveis refeições ou de um banho quente. Por outro lado, é nosso corpo que sente as agressões do mundo e de outros corpos, que sofre nossas dores e produz nossas neuroses.
Corpos contorcidos, esticados, assoberbados por pressões e tensões de todos os tipos, de todos os lados: sinalizando, gesticulando, afastando-se de si e buscando-se ao mesmo tempo, pois não é senão um gesto híbrido de retornar a si ao tentar se repelir o que caracteriza os padrões de movimento de nossos membros, independentes, mas conectados a uma única base e uma única mente. Aparentemente. Ainda que fragmentada em mil outras mentes. Pés e mãos se deslocam pelo espaço, dedos, pele e veias descrevendo retas e curvas, como pincéis e cinzéis, sempre eles, atentando para os limites, as distâncias e as equivalências entre a arte e o corpo que a assimila.
Toda arte é, em certa medida, uma performance. Quando tratamos de performances de fato, como o “Ritmo 0” de Marina Abramović ou “Shoot”, de Chris Burden, estas existem apenas no momento e local de sua execução, restando como evidências apenas registros feitos por meio de fotos e vídeos. Por outro lado, quadros e esculturas são evidências de uma performance não vista. Da maioria das obras de arte que conhecemos ao longo da vida, testemunhamos apenas as evidências, e isso certamente é algo inquietante: para a maioria de nós, a arte existe como apenas como uma sombra de sua realidade efetiva. Nosso corpo as experimenta pelos olhos, pelos ouvidos, pelos sentidos, falhos, incompletos. Talvez até mesmo venhamos a conhecê-las por meio de recursos como a realidade aumentada, mas nossos corpos jamais se verão diante dos espaços nativos onde elas estão - ou estiveram, no caso de performances e artes efêmeras, peças cuja própria unicidade depende de sua radical impermanência, como os “Monumentos Mínimos” de Néle Azevedo e “Retrato de Ross”, de Félix González-Torres.
Os corpos estirados e torcidos de Ron Mueck nos recordam de nosso próprio estado de constante torção, performance e impermanência da forma neste mundo. Eles fazem isso com uma inegável veia cômica, um ângulo mundano e caricato e autoconsciência que falta a muitas obras de arte, contemporâneas ou não. Certamente a arte dialoga conosco. Ela busca ser levada a sério exatamente como buscamos sermos também valorizados, enquanto pressionamos e reposicionamos nossos corpos em uma performance que só se encerrará com a morte.