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Maristela Carneiro
É Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – PPGECCO/UFMT. Docente da Faculdade de Comunicação e Artes – FCA/UFMT, é Mestre em Ciências Sociais e Doutora em História. Co-Líder do Grupo de Pesquisa ContemporArte. Dentre seus interesses, destaque para Estudos de Gênero, Feminismos, Artes e Cultura Visual, Pensamento Decolonial e Epistemologias do Sul.

TEMPORAIS

Não é novidade afirmar que aquilo que conhecemos por “verdade” se esparrama em uma cadeia infinita de variadas, por vezes conflitantes, narrativas. Todavia, diante do maremoto de fake news que diariamente nos assola, esse caráter disperso e nebuloso do real se coloca cada vez mais em questão. Os debates sobre “pós-verdade”, por exemplo, abrem espaço no meio jornalístico e no linguajar dos noticiários e, consequentemente, adentram e movimentam nossas linhas do horizonte, trazendo consigo a possibilidade de que a realidade seja, afinal de contas, uma elaborada ficção. Como uma colorida matrioska, uma história guarda outra dentro de si, que por sua vez abriga infinitas outras em seu interior aparentemente insondável.
Existe, certamente, uma realidade material, mas ela é tão incompreensível pelos nossos sentidos quanto o tempo. O tempo talvez seja a primeira de todas as grandes ficções: quantas de nossas histórias mais persistentes não se iniciam com o “era uma vez...” para designar um outrora não-específico? Inventamos a palavra “passado” para englobar tudo que já aconteceu e “futuro” para descrever o que jamais alcançaremos. Entrementes, a mais fugaz das três ficções é o “presente”, tomado para designar algo fixo, ainda que não exista em um estado sólido: o fluxo do nosso existir, deslocando-se precariamente, é um frágil barco de papel que vagueia entre tempestuosas águas doces e salgadas, de passados e futuros, igualmente difusos.
A realidade não é, portanto, uma única ficção, mas uma rede de ficções. Para além do tempo, a geografia: não é o globo algo mais semelhante a um pedregulho viajando pelo espaço que a uma esfera perfeitamente lisa? E quanto aos países e cidades? Certamente não são evidentes na natureza dura do mundo: são ficções, compostas de outras ficções – línguas, pratos típicos, ornamentos e celebrações. Mesmo o que é visivelmente existente, no relevo da terra aparentemente plana, adquire, ao nosso olhar, sentidos simbólicos e estéticos complexos: aquela montanha é um gigante que se sentou e nunca mais se ergueu; aquele rio é uma deusa que se desfez em lágrimas; o ouro é o esterco dos deuses; a mulher sofre as dores do parto porque sua mais remota ancestral empurrou o homem para o pecado.
O que, aliás, nos leva à arte, uma das maiores tecelãs de ficções. Com suas narrativas, ela nos afeta, nos conforma, nos move. Se já evidenciamos que “realidade” não é antônimo de “ficção”, ficção também não é sinônimo de “mentira” ou “faz-de-conta”. Toda ficção reflete uma percepção do real, tanto pelo que mostra quanto pelo que omite. Os valores que um autor expressa, seja pintor, cineasta, romancista, assim como os que condena, refletem sua percepção da realidade. Movimentos artísticos em suas longas durações, por sua vez, dizem muito a respeito das sociedades que os produziram.
O movimento surrealista, nesse viés, filtrou por meio de suas tintas o individualismo e consequente ensimesmamento burguês do início do século XX que, desencantado com a dureza das revoluções liberais e da Primeira Guerra Mundial, voltou-se para a mistificação da mente, a presumida interpretação dos sonhos, a erotização e a sacralização do mundo. Freud explica. Não obstante, como tantas outras políticas autorais no mundo das artes, o surrealismo não se isentou de ser majoritariamente masculino em sua composição – portanto, sexista. É impossível ao olho atento não notar a objetificação dos corpos femininos nas obras de homens como Salvador Dalí, Luis Buñuel e René Magritte.
Também é fundamental observar que os principais núcleos surrealistas estavam situados na França e na Bélgica, nações europeias que conduziram algumas das formas mais violentas de colonialismo. Homens europeus, brancos e privilegiados, nascidos em condições socioeconômicas favoráveis, em uma parte do mundo que ditava tendências artísticas para os mais diversos cantos remotos do globo. Como disse Linda Nochlin, em meados da década de 1970, não houve um “grande tenista esquimó” pelo simples motivo de nenhum esquimó ter sido acesso até então aos conhecimentos e dispositivos necessários para a prática do esporte.
Torna-se útil então olhar para a revolução dentro da revolução, a vanguarda que nos sonda de dentro da vanguarda. O surrealismo de Leonora Carrington e Remedios Varo é uma insurreição estética dentro do levante surrealista. Aliada ao realismo fantástico de Frida Kahlo, cujo olhar os surrealistas europeus tentaram cooptar para si, sem êxito, essa revolução é uma subversão poética feminina (feminista?), em terras americanas, no bojo de um movimento que já era, em si, transgressor em relação à tradição artística europeia: uma hegemonia dentro da hegemonia?
Munidos dos dispositivos que o contemporâneo nos ofertar, sondemos os olhinhos da colorida matrioska, talvez oblíqua e dissimulada, e estejamos atentos ao que ela silenciosamente desvela. Uma narrativa dentro de outra. Uma estética dentro de outra. Narrativas paralelas e simultaneamente sobrepostas e interpenetradas. Poéticas interseccionais. Tempos contemporâneos dentro de múltiplos tempos. Temporais.

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