Mário Cézar Silva Leite
É professor titular da Universidade Federal de Mato Grosso. Atua na Graduação em Letras/Literatura (IL) e no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO-FAC). Fundou e coordena o Grupo de Estudos em Cultura e Literatura de Mato Grosso-RG DICKE (CNPq/UFMT). Doutor em Comunicação e Semiótica, é crítico literário e escritor. Dentre suas publicações destacam-se: Recuerdos de Mi Abuela & Outros Estilhaços em Charla (Cathedral Publicações/Carlini e Caniato Editorial, 2020); Memorial [IN?]Descritivo: auto-ópera-biográfica-burlesca para professores titulares em literatura (Cathedral Publicações/Carlini e Caniato Editorial, 2017); Literatura, Vanguardas e Identidades: as Brenhas do Regionalismo (Cathedral Publicações/Carlini e Caniato Editorial, 2015).
GRAVATAS EM SEDA AZUL COM RANHURAS CINZAS
Atravessávamos as madrugadas fumando maconha, tomando café e transando. E rindo, rindo muito. Ouvindo Urubu, de Tom Jobim. A Arquitetura do Homem rodando, rodando, rodando numa velha e colorida vitrolinha a pilha. A vermelhidão do dia surgindo injetava em nós redemoinhos psicodélicos de pura luz. Era fácil rir e daquele modo estar feliz sempre. Na dança das luzes eu projetava horizontes que se desdobravam e se multiplicavam em si mesmos. Em mim. Não éramos diferentes de milhares e milhares da gente jovem daqueles anos que transava, fumava maconha e tomava qualquer coisa, seja lá o que fosse, em qualquer lugar do mundo. Tudo era muito jovem, o mudo tinha viço, acho que essa palavra nem existe mais. Pelo menos para nós era assim. Rir das madrugadas, rir do sabor das palavras que eram muito engraçadas. Rinoceronte, horizonte, tresantontem, horrrrriiii, ho, ho, horror, camuflagem, no fla a língua vai fazer cócegas no céu rosado da boca, mas tem que falar sílaba por sílaba para sentir o fla, fla, adaptável, no ap a boca deve fazer um beicinho como os franceses, api, idiossincrasia, que porra quer dizer essa palavra, já ouviu? Já, mas não tenho ideia do que quer dizer, mas nos dois ss tem que fazer beicinho e assoprar ao mesmo tempo, sssi, ssssssssi, o que é nhambu? Um pássaro. Será? Acho que é um tipo de lagarto verde-rosa. Mangueirense. Não, a música fala que o nhambu cantou lá na floresta. Ah, é mesmo. Cantou, é pássaro. Nham, nham, nham, bu, bu, bubu, bububu. Malemolência, mal, malllllll, lemo, lemo, coloca a língua atrás dos dentes de cima, molê, molê, molê, cia, melancia, melancia, violência, viol, viola, lencia, lenço. Esporrar, espo, espo, exposição, porrar, porrar. Gozar, gozar, gozar, matar. De gozar, matar de gozar. Gozar de matar. Era isto, rir dos projetos e sonhos e transar muito. Entre um cigarro e outro, cama. Entre um café e outro, cama. Disse-me uma vez que jamais usaria gravatas. Seus planos eram mais simples, se formar em arquitetura e trabalhar em projetos de construção de casas populares. Parecia-me pequeno no sonhar. Manteria então para sempre aquele jeito doce de hippie classe média. Um desbotado sempre novo, os cabelos longos e sedosos e o olhar. O olhar? O olhar sem horizontes. Talvez minha mania de grandeza fizesse-me achar isso muito pouco. Os olhos dele, não sendo de “ressaca”, por suposto, raramente brilhavam. Davam-me a impressão de não ir muito além de uma limitada linha de um horizonte que findava em si mesmo. Como se brilhassem só até ali, perto, horizonte próximo. Não entendia isto. A ânsia de viver se manifestava na volúpia e na fúria com a qual jogava o corpo contra o meu. No gemido abafado do corpo sob o meu que injetava nele todo o meu desejo de uma vida plena, de vastos horizontes de alvorecer e anoiteceres. Mas e se usasse gravatas? Seriam em seda azul. Só, só? Não, seriam em seda azul com ranhuras cinzas. Ra, ranhu, rahu, tem que ter um arranhado que vem da garganta para o céu da boca e aí sai. Ranhu, ranhu, também faz biquinho. No redemoinho do existir de cada um que põe, repõe, dispõe, transpõe, trovões, voens, voos, vazios, vasos, casos, anos, anus, anjos, an, an, an, jos, jojos, demônios, ônios, sinônimos, ânimos, desânimos, animas, almas, calmas, valsas, vidas, vidas, vidas, perdemo-nos das madrugadas entre sexo, maconha, café, estalar de língua, arranhar gargantas e o Urubu. Outros corpos nos esperavam. Outras vidas, outros sonhos, talvez, outros desejos. Fomos, simples assim, fomos. Outros discos, outros horizontes, outros risos, outros motivos. Vez em quando sabia dele. E não sei dizer se sabia de mim. No juntar dos em quando, se formou em arquitetura, mudou de cidade, trabalhava em uma grande empresa. Usava gravatas. Gra, gragra, grava, atas, atos, atros, atroz, atro, antro, atrocidade. Sempre, todo dia de trabalho, usava gravatas. Não sei ao certo, idiossincrasia, redemoinho, ranhuras, violência. A última vez que soube dele ele já não tinha como saber de mim. Não sei quem me disse, lembra do xxxx, vocês ficaram juntos um tempo, lembra? Violência, crença, excrecência. Vi, vio, vivivi, o, oooo, lenço, lência, gravatas, gravatas, gravatas azuis. Ele morreu. Mataram ele. Foi encontrado todo amarrado com gravatas dentro do guarda-roupa no apartamento dele. Enforcado com uma gravata em seda azul com ranhuras cinzas. Não se sabe quem o matou. Sabe-se muito pouco ou nada. A polícia? Tratou como trata todos os casos deste tipo. Há veladamente, será?, uma permissividade, per, per, pérola, perna, o ssi tem que ser soprado pela boca quase fechada, ssi, ssi, PERMISSÃO, para não se investigar muito. É sempre o mesmo. O veado pegou um cara na rua, levou para casa e aconteceu. Aconteceu! Aconteceu? O quê? Ah, de repente o cara não era bicha e se ofendeu. Sério? É, isso acontece muito. Se o veado não fosse veado, estava vivo até agora. Assim, é assim que pensam. É assim que agem. É assim que ensinam a fazer. Fiquei febril e com náuseas. É só mais um gay. Essa é a “resolução” do caso. Dos vómitos e vómitos, uma ideia foi tomando corpo, assento, posse, em minha mente. Ente, crente, vivente, corrente, descrente. Coisa muito simples, se ninguém se importa, eu me importo, me incomodo, vou achar quem fez isso. Comprei no dia seguinte uma gravata em seda azul com ranhuras cinzas e me mudei para a cidade que ele morava. Mas e se usasse gravatas? Seriam em seda azul. Só, só? Não, seriam em seda azul com ranhuras cinzas. Ra, ranhu, rahu, tem que ter um arranhado que vem da garganta para o céu da boca e aí sai. Ranhu, ranhu, ra, ra, rara,nhu, nhu, nhunhu, ranhura.