Mário Cézar Silva Leite
É professor titular da Universidade Federal de Mato Grosso. Atua na Graduação em Letras/Literatura (IL) e no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO-FAC). Fundou e coordena o Grupo de Estudos em Cultura e Literatura de Mato Grosso-RG DICKE (CNPq/UFMT). Doutor em Comunicação e Semiótica, é crítico literário e escritor. Dentre suas publicações destacam-se: Recuerdos de Mi Abuela & Outros Estilhaços em Charla (Cathedral Publicações/Carlini e Caniato Editorial, 2020); Memorial [IN?]Descritivo: auto-ópera-biográfica-burlesca para professores titulares em literatura (Cathedral Publicações/Carlini e Caniato Editorial, 2017); Literatura, Vanguardas e Identidades: as Brenhas do Regionalismo (Cathedral Publicações/Carlini e Caniato Editorial, 2015).
MULHER PRETA COM SOMBRINHA COLORIDA
Amy WineHouse. A dimensão da renovação na música pop ocidental que essa moça magrela e desengonçada fez ainda está para ser percebida. O trânsito da cidade, na cidade, não é “caótico” como dizem. Ele é engessado. Tudo aprisionado em um gesso quente. Andamos em blocos. Nada se movimenta nas ruas. Sinal verde, sinal vermelho. Tudo engessado. Um bloquinho anda, outro bloquinho anda bem depois. Tudo parado. You should be Stronger Than Me. You been here seven years longer than me. Don’t you know you supposed to be the man not pale in comparison to who you think I am. Da paralisia do trânsito, vejo a mulher preta com sombrinha colorida parada na calçada. De onde eu a via, pelas costas, só parte das pernas levemente tortas o resto do corpo escondido pela sombrinha colorida. A tarde já parada parou completamente. O que a mulher preta com sombrinha colorida olhava, olhar que eu não via, tão intensamente. Since I’ve come home Well, my body’s been a mess. And I miss your ginger hair and the way you like to dress. Oh, won’t you come on over? Baixei os olhos e a mulher preta com sombrinha colorida olhava um mendigo deitado na calçada sobre um grande papelão. Amy juntou gerações. Conectou a juventude com os grandes mitos, mulheres pretas, do blues e do jazz. Trouxe, com sua voz levemente rouca toda, as divas dos anos 1950, 1960 renovadas no frescor de uma geração que nada sabia delas. O blues e o jazz de pretas norte americanas invadiram o mundo como uma das coisas mais pop-contemporâneas dos últimos tempos. E não era o jazz, não era o blues. Era Amy Winehouse! Um outro-mesmo como uma alucinação, um delírio. O que a mulher preta de sombrinha colorida tão intensamente queria com o mendigo deitado na calçada sobre um grande papelão? O que ela queria saber do mendigo, eu quis saber dela do mendigo. A tarde ficou engessada como o trânsito, todo em suspensão. O mundo translúcido entre a mulher preta com sombrinha colorida, o mendigo deitado na calçada sobre um grande papelão, eu e a Amy Winehouse. Tudo engessado num ínfimo instante da tarde. Depois de um tempo percebi, notei, vi o que a mulher preta de sombrinha colorida olhava tão intensamente. O mendigo deitado na calçada sobre um grande papelão parecia não respirar. Lembrei de Janis Joplin, Billy Holiday, Elis Regina. Vieram-me as imagens de Billy Holiday, Janis Joplin, Elis Regina. They tried to make me go to Rehab, But I said no, no, no. Yes I’ve been black, but when I come back You’ll know, know, know I ain’t got the time. And if my daddy thinks I’m fine, They tried to make me go to Rehab. A tarde desengessou-me e segui deixando a mulher preta com sombrinha colorida olhando o mendigo deitado sobre um grande papelão. Nunca soube se a mulher preta com sombrinha colorida descobriu se o mendigo deitado na calçada sobre um grande papelão respirava ou não. We only said goodbye with wordsI died a hundred times. You go back to her And I go back to. Sumi na tarde. Talvez morrer seja apenas se deitar na calçada sobre um grande papelão e ter em companhia, numa última visão, uma doce e preocupada mulher preta com sombrinha colorida.