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Mariana Belize
Que criou e escreve no Projeto Literário Olho de Belize, é mestranda em Literatura Brasileira pelo Programa de Letras vernáculas da UFRJ. Formada em Letras - Língua Portuguesa/ Literaturas - da UFRRJ – Nova Iguaçu Escreve resenhas críticas com base nos seus estudos de Crítica e Teoria Literária com base na Estética da Recepção e estudos sobre a relação entre arte e vida. Também divulga seus poemas na página Galpões de Sonho, no Facebook.

O PRIVILÉGIO DOS MORTOS


com dentes de escrever,
mastigar
esse pão.
(Paul Celan)

Olá, leitores! 


Esta não será uma resenha comum porque não estamos em tempos comuns. A reflexão que se faz necessária hoje passa por um caminho de ruínas e dor na impossibilidade de se inventar uma solução rápida para o país, para o mundo. Dentre os escombros, permanecemos entre aturdidos pelas bombas dos noticiários e nauseados pelo cheiro da morte – copiamos da terra apenas o silêncio. É possível ultrapassar essa névoa, esse período de incerteza, ultrapassar a sensação de perda e luto? Ultrapassar é realmente uma solução ou uma fuga? Domina esse tempo a nossa apatia, eu poderia dizer.


Não é apatia. Não deixe a síndrome de vira-lata falar mais alto, não nesse momento. Quando alguém passa por uma experiência traumatizante, não existem apenas dois caminhos cerebrais: a luta ou a fuga. Há também uma terceira via… Essa é a estrada que percorremos entre imagens, letras, sons e palavras, mas a ação está embotada. Travamos.


Mas leitor, leitora, que fazer senão encarar a grande noite?


Trancados em casa, alguns estão entre a sanidade e a loucura, enquanto outros manejam opiniões e notícias nas redes sociais. Alguns trabalham via internet, outros escrevem, aos trancos e barrancos, suas dissertações, teses e trabalhos escolares.


Por que resolvi escrever sobre este livro?, é o que me pergunto todos os dias, enquanto olho a lista de textos atrasados deste site. Este site não está atrasado por conta da quarentena. Este site está parado por conta de uma dissertação. A minha dissertação.


De qualquer forma, nos momentos de pausa, forçados pelo cansaço ou entre os domínios de algum desespero inútil. o livro que me vinha à mente, bem como as referências presentes nele era justamente “O privilégio dos mortos”. Não gosto de ser impressionista nas resenhas, dizer “gosto ou não gosto” – vocês sabem o quanto critico essa armadilha.


Mas esse livro não saiu da minha cabeceira desde que chegou pelo correio. Eu leio, releio, leio treleio – isso vocês também já sabem que faz parte do processo de leitura daqui do site.


Pensei, muitas (muitas!) vezes, nesse estranho título. Estranho no sentido do Unheimlich…  Um título que afirma e não interroga. O privilégio dos mortos e não “O privilégio dos mortos?”. E eu comecei a questionar, como você, leitor e leitora, também fará antes, durante e depois da leitura: Mas qual é o privilégio dos mortos? E como saber isso se estamos vivos? Angustiante, não?


Estamos vivos? O que é estar vivo? Esse texto não pretende responder a nenhuma pergunta, pelo menos não até agora. Pensei também que a narrativa participava de uma intertextualidade incrivelmente construída com Homero e a Ilíada. Você lembra da história da Guerra de Troia? Não, esquece o filme… É, pra dizer o mínimo, impreciso.


A Guerra de Troia é uma narrativa sobre o sequestro de Helena, rainha de Troia, casada com Menelau. Helena, a mulher mais bonita daquela época. Não, não temos fotos. Mas confia no Homero. Então, o caso é que numa festa estavam as deusas Hera, Atena e Afrodite. Éris, a deusa da discórdia, não fora convidada ao banquete (por motivos óbvios), mas o que faz a discórdia quando não é convidada? Ela fica quieta e tranquila? Não, ela entra de qualquer jeito porque em toda festa há uma semente de tragédia, como em toda tragédia há no fundo um riso. Dialética da tragédia.


Na maçã de Éris, rolada cuidadosamente entre as deusas estava escrito: “Para a mais bela.” E agora? As três deusas se entreolharam, cada qual orgulhosamente ostentando a própria beleza de deusas do Olimpo. Zeus, tirando o corpo fora dessa escolha, apontou um pastor de ovelhas, mas que também era príncipe, chamado Páris. Ele que se ferrasse tendo que escolher.


Páris ouviu de cada uma as propostas. “Você vencerá todas as guerras.” – disse Atena. Páris olhou para as ovelhas e pensou: “Que guerra? Eu não sou guerreiro, sou um pastor, tô aqui na minha, na paz e tranquilidade… Não tenho espada, nem carrego escudo… Não sou Aquiles, nem sou servo de Ares… O céu é azul, as árvores me acolhem, os dias nascem e morrem. Eu sou um pastor.”


Hera sussurrou: “Dou-te riqueza e poder.” Páris pensou que já tinha a natureza… E poder só trazia dor de cabeça, ele já era príncipe… Ele queria seguir ali e só lhe faltava uma coisa…


Afrodite sorriu e seu riso espalhou um perfume de rosas pelo ar. Achegou-se ao rapaz, tocou de leve seu ombro e, bem perto de seu ouvido, falou calmamente: “Te darei o amor da mulher mais bela do mundo.”


O coração de Páris acendeu de desejo, paixão e o doce sonho que é Eros fez morada em seus pensamentos. Flechado estava. A maçã, ele entregou a Afrodite. Linda história que acaba bem mal pra Troia. Enfim, por que eu tava mesmo contando esse mito?

“Helena de todos os abismos” (p.54)

Não vou dar spoiler, mesmo sendo difícil. Mas quando você ler, vai entender essa treta da Helena que contei. Próximo ponto. Lembrei também do romance quando reli o Auerbach, No primeiro capítulo do Mímesis, Auerbach coloca de frente a narrativa épica e a bíblica, contrapondo Homero ao Gênesis e as ideias de obscuridade e iluminação presentes nos textos. Em Homero, ele vai falar da iluminação. Na Bíblia, da obscuridade.


Iluminação, nesse sentido que Auerbach propõe, é o de uma narrativa homérica narrada vagarosamente, detalhadamente, “modelado com retidão” (p.1). Enquanto que a narrativa bíblica não detalha nada. Jeová tem a primeira palavra e a última – as lacunas pertencem ao mistério.


Mas porquê, leitor, leitora, lembrei disso: a narrativa de Whisner está numa zona cinza entre iluminação e obscuridade. A penumbra que cobre a obra vem desse narrador, que é quem conta a história desde seu início. Início e fim são realmente parâmetros teleológicos? Relacionam-se com causa e efeito?


Há uma ideia de eterno retorno presente, pelo menos, nas repetições, nos vocativos, nas cenas em repeat. Não como em Nietzsche, mas com relação à memória e ao ato de lembrar. Lembrar, recordar, relembrar – essas palavras nos ajudam a ter uma visão, ainda que penumbral, da narrativa. Como também do funcionamento da nossa própria memória.


Aqui o ato da memória, como nos conta a majestosa Jeanne Marie Ganegbin, tem mais incertezas do que verdades ou uma realidade. A gente não lembra o exato, mas do que afeta. Afeto, leitor, leitora, aqui tem um sentido mais amplo e pode ser o que incomoda, traumatiza e tal. Assim a memória tem o traço repetitivo do trauma, conforme Freud nos lembra. (Quer dizer, acho que é Freud…) Tem um vídeo da Jeanne falando sobre essa questão da memória, vou deixar aqui o link: https://www.youtube.com/watch?v=b_v0-t2vnWY&t=709s. Recomendo assistir aos poucos e com tempo livre. Dá o que pensar pra vida toda. Enfim, esta que eu não queria que fosse uma resenha comum acaba caindo no meu lugar mais prazeroso de tratar que são os aspectos teóricos e as estratégias do autor ao utilizar o gênero romance e a língua portuguesa.


Entre trama e tecido, a narrativa que Whisner entrega aos leitores não tem o interesse de linearidade, mas um redemoinho narrativo. Não espelha uma circularidade, mas constrói seu romance de maneira espiralada… E nesse espaço penumbral, conforme dito, o romance não destaca o narrador, que quanto mais fala, menos expõe –  e outras referências também participam da obra, mas exigem do leitor mais do que comprometimento com a leitura. Não vem com essa de “hermético”. O livro não é isso – palavra bonita, mas sempre tomada com sentido pejorativo para obras como essa de Whisner, mas também para autoras como Hilda Hilst, por exemplo. Um livro que requer conexões entre outras obras na cabeça do leitor não é hermético, mas promove diálogo entre tempos, narrativas e… memórias. Mas além disso, quero destacar a presença desse ponto difuso, inclusive. A memória.


Heitor, Leitor. A diferença sutil de uma letra pode deflagrar mais significados. Se reais ou não, jamais saberemos. Mas o que o autor pensou ao escrever, guardou para si e não é nossa obrigação adivinhar, a menos que seja por um exercício de imaginação. É uma narrativa amarga, mas não amargurada. Por isso a leitura não pesa, em certo sentido. As estruturas, os espaços, as lacunas, elipses. Pontuar é mexer com a respiração de quem lê, parafraseio Clarice Lispector para demonstrar que esse livro mexe com o leitor e, por mais aparelhados que estejamos nós, os críticos, às vezes encontramos uma narrativa que, de tão armadilha, de tão rede, entretece até mesmo nossas teorias – nos fazendo lembrar que ler não é apenas um exercício de relação entre teorias literárias – mas um prazer. Pensei em Barthes, de repente… Ao mesmo tempo, a obra de Whisner cita tantas referências atualíssimas… Rammstein, por exemplo.


Algumas tentativas de diálogo entre o livro e certas referências. Faço uma pequena lista:

“tenho medo do que virá.
virá o pior.”
(p.41, O privilégio dos mortos)

Poderia ser a frase de Cassandra ao avisar da Guerra de Troia e ser desacreditada – amaldiçoada por Apolo.

“não há verdade no vinho.” (145) em contraposição ao In vino veritas, como afirmavam os antigos romanos…

“deus é silêncio” (p. 138) e o diabo é redemunho – lembrando de Guimarães Rosa.

“a morte, helena, é um percurso individual” (p. 106) – essa parou aqui pela beleza mesmo.

Voltando ao Auerbach, pensei melhor aqui rapidinho, e sim, a penumbra que lemos é da intersecção de uma epopeia e da obscuridade bíblica – a penumbra do romance, em “O privilégio dos mortos” aproxima-se da ideia de Forster quando vem a dizer em seu “Aspectos do romance” que o gênero romanesco é pantanoso e situa-se entre uma montanha que representa a Poesia e um vale que representa o Épico.


Não me estenderei mais, portanto, acho que já deu de teoria por hoje, não sei… O livro de Whisner não é para se lido uma vez apenas, sob o risco de perder camadas de leitura que apenas as releituras podem revelar. Atenção é também um requisito, então o feicebuque fica pra depois. Ainda bem, né? O que tem lá é mais do mesmo. Fique com Heitor, leitor. Fique bem.
Ah, leitor, leitora… Qual o privilégio dos mortos, vocês me perguntam…


O privilégio dos mortos é passar pelo rio Letes. O privilégio dos mortos é esquecer.

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