Maria Elizabete Nascimento de Oliveira
É doutora em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso/PPGEL-UNEMAT. Professora formadora da área de Linguagens, no Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica/CEFAPRO - Cáceres/MT. Membro dos Grupos de Pesquisa: No Centro-Oeste da “MARGEM”: Cem Anos de Relações entre Cultura e Literatura em Mato Grosso (1916-2016) - UNEMAT; Poética Contemporânea de Autoria Feminina do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil, UNIR/Universidade de Rondônia.
A POESIA DA (RE)EXISTÊNCIA, COM LUCIENE CARVALHO
Luciene Carvalho é corumbaense, porém vive em Cuiabá desde 1974, tendo já recebido o título de cidadã cuiabana, além de membro da Academia Mato-Grossense de Letras/AML e expoente da cultura e da arte em Mato Grosso: “[...] meu corpo é um choque/de tanta ternura./Sou loucura e arte,/fonte e correnteza” (CARVALHO, 2009, p. 99). Estes versos ajudam-nos a compreender alguns traços da biografia da autora diagnosticada com transtorno afetivo bipolar de humor.
Na literatura a autora encontrou o trejeito para viver seus excessos, já que apenas com a vida real não daria conta de suportar todos os sentimentos, as angústias, as dores e os encantos do seu mundo particular. Portanto, foi necessário deixar-se habitar por outras mulheres e outros elementos presentes no cosmo: “[...] como um acaso bipolar da natureza/Sim e Não/Vida e Nada/O horror e a Beleza/Uma quer!/A outra espera/Uma é santa;/a outra vira fera/Uma é chão outra é quimera” (CARVALHO, 2009, p. 2). A literatura recebeu com generosidade seus excessos e ofertou-lhe à poesia, talvez como forma de redenção.
A trajetória literária de Luciene apresenta a história dos registros de quem a luta foi/é companheira, fazendo escorrer poeticamente a existência, a (re)existência feminina e, assim, desnuda a percepção estereotipada que recai na figura feminina de modo a trazer uma linguagem “limpa” que foge aos padrões convencionais. Há um fascinante jogo entre a criação poética e as experiências vividas, brotado em quem foi jogada ao submundo do sistema manicomial e conseguiu emergir pela/com a arte literária. Acessar o espaço da poética de Luciene Carvalho é caminhar pelo terreno simples, intimista, mas revelador de uma poesia viva que traz a força da mulher em seus múltiplos expoentes e ancestralidades. Além de poeta, é também exímia declamadora de versos, na arte cênica desnuda suas múltiplas versões, unindo diversas artes, com domínio do corpo, da voz e da palavra. E, em seu discurso, encontra-se o afloramento das dores e das injustiças, mas envoltas na sensibilidade de mulher que soube aprender com seus silêncios e seus vazios.
As produções de Luciane são marcadas por lembranças, memórias de familiares que trazem em seu bojo a essência dos ancestrais e o jogo do duplo contido na imagem do espelho que aparece frequentemente, demonstrando que a imagem primeira nem sempre é projetada da mesma forma na imagem segunda, no entanto, permanece o esboço, a gene dos antepassados. “[...] Às vezes em forma de Margarida,/Às vezes em forma de Narciso”. Duas imagens, de um lado, a flor como representação do espaço exterior e, de outro Narciso como a imagem interior, convivendo de forma simultânea e mesmo indissociável; ambas capazes de metamorfoses que instigam à observação da árdua tarefa do viver.
Os trabalhos de Luciene Carvalho trazem para cena literária essa mulher comum como a personagem Tereza do poema Descuido ou a personagem Milena do poema Conselhos e tantas outras mulheres que tem a vida representada em seus versos, uma vez que, a poesia recupera os sentidos, ou melhor, atribui novas significações aos episódios cotidianos.
O verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria. Ou, como dizia Machado: não representa; apresenta. Recria, revive nossa experiência do real. Não vale a pena assinalar que essas ressurreições não são apenas as de nossa experiência cotidiana, mas as de nossa vida mais obscura e remota. O poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente (PAZ, 2003, p. 46).
No poema, portanto, o objeto representado amplia o seu campo simbólico. A flor deixa de ser apenas a parte integrante de uma planta e torna-se um objeto de resistência da mulher, ser ladra de flores, por exemplo, é desprender do sentido do patriarcado no processo do ressignificar e da libertação. As flores trazem o perfume da voz-mulher, o jeito feminino e sensível de ver e sentir o mundo, além disso, a dupla flor-poesia pode ser ampliada para a tríade ser-poesia-mulher, com o odor de suas contradições e limites, desmistificados na intimidade de quem vê o invisível, ouve o inaudito e, portanto, é capaz de outras representações que as transformam em Dona. O eu-poemático criado por Luciene exala os sentidos da poesia, contrapõe-se ao ser dos discursos oficiais e:
“[...] projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela” (BOSI, 2000, p. 227).
Em Luciene encontramos o eu-poemático multifacetado, misticismo e episódios cotidianos, em diálogo, vivendo os conflitos dos devaneios e da vida que pulsam pelos poros, matéria e espírito, que pode e deve viver/sonhar suas insanidades. Assim, coloca-nos diante dos múltiplos eus femininos que convergem e que movimentam a dinâmica do mundo. Desta forma, são transformados em arte pelas mãos criadoras de quem, ao mesmo tempo, em que refugia em seu reduto particular e insano, devolve as neuroses, os sentimentos e as memórias em forma de poesia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. A flor e a naúsea. IN: A rosa do povo. 27 ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
BACHELARD, Gastón. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_____. A água e os sonhos. São Paulo Martins Fontes, 2002.
_____. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Cultrix: Ed. da Universidade de São Paulo, 2000.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CARVALHO, Luciene. Crisálida. In: Devaneios poéticos. Cuiabá: EdUFMT, 1994
_____. Caderno de Caligrafia. Cuiabá: Cathedral/Unicem publicações, 2003.
_____. Conta-Gotas. Cuiabá, MT: Instituto Usina, Brasil, 2007.
_____. Aquelarre ou Livro de Madalena. Cuiabá, MT: Instituto Usina, Brasil, 2007.
_____. Sumo de Lascívia. Cuiabá, MT: Instituto Usina, Brasil, 2007.
_____. Insânia. Cuiabá, MT: Entrelinhas, 2009.
_____. Ladra de Flores. Cuiabá: Carlini & Caniato editorial, 2012.
_____. Dona. Cuiabá, MT: Carlini & Caniato Editorial, 2018.
PAZ, Octavio. Signo em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 2003.