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Marcos Morasck 
É professor e autor de “O diário das eras”, “Castelo de Sombras” e “Uma aventura na terra da magia”.

ANUNCIAÇÃO

Dr. J. odiava os finais de semana, pior seria a aposentadoria, começava a prever. Nos outros dias ele era O-Professor catedrático, temido pelos alunos e pelos colegas do departamento. De segunda à sexta-feira, ele ensinava que a literatura era engajamento e potência transformadora da realidade e, ainda, distribuía argumentos irrefutáveis para todo e qualquer desavisado. No final de semana, por outro lado, quem mandava era ela. Na universidade, era conhecido pelo recorde imbatível de reprovações, por décadas, e pela fama de orador afiado, versado conhecedor de filosofia, dos princípios da abstração e dos fundamentos epistemológicos. Contudo, nos sábados e domingos, ele não passava de um reles e subjugado marido. Era como dizia o ditado popular: atrás de todo homem bravo-rijo, existe uma mulher com metade do tamanho e o triplo do vigor, que manda nele. J. se encaixava na descrição, com consentimento. 
Com os anos, tinha desenvolvido habilidade Jedi em esquivar-se das obrigações conjugais. Não que não gostasse da coisa, só não gostava da coisa dela, do jeito dela, das regras dela, das posições dela e dos eteceteras dela. Certamente não era feia, era desagradável. A propósito, ele tinha aprendido a conseguir coisas mais carinhosas, mais agradáveis e em melhores ritmos longe dela. Nem sempre fora assim. J. quase tinha deixado de acreditar, mas ainda era capaz de se recordar quando ela não era tão madrasta de conto infantil. 
Havia anos, ele tinha pensado em separação, mas sabia que ela não outorgaria e, além do mais, faria uma gritaria, aprontaria um escândalo. Ele não suportava confusão, odiava escarcéu. Também tinha pensado em fugir, desaparecer sem deixar rastros; contudo, desistiu da ideia por dois motivos: primeiro, porque ela, sem dúvidas, o encontraria e, depois, porque ela controlava cada centavo que entrava e saía da conta dele. Nada escapava às suas anotações feitas na ponta da caneta bico de pena preta, com aquela letra minúscula e metodicamente caligrafada, naquela agenda inrasurável, incorrigível. Dali, nunca jamais qualquer palavra foi subtraída ou retocada. É e É. O mero apontamento virava lei, edito pétreo.  
Sábado era dia de compras, de empurrar o carrinho do mercado para ela, como um boi na cangalha, e, à noite, receber os amigos (dela). O roteiro era sempre o mesmo: Veja isso, J. Pegue aquilo, J. Já fez o que eu pedi, J? J. J. J. IDIJOTA! Se tivesse coragem, teria afogado a esposa na piscina e ligado para a polícia a fim de passar o resto da vida sossegado na penitenciária estadual. Deus certamente perdoaria os que sofrem. E por falar nisso, domingo era dia de ir à igreja, já que ela era crente, fervorosa e cantava todos os louvores com emoção e voz embargada. Era de chorar, de ódio. J., por sua vez, rosnava misturando sua voz rouca e baixa ao coro e juntos desejavam o descanso eterno e o livramento. 
Nos últimos tempos, J. vinha pensando na aposentadoria e na morte, pois em poucos anos sua vida seria um interminável final de semana, um constante movimento pedra acima – pedra abaixo, regido por vocativos imperativos: J. para cima! J. para baixo! Pediu aos céus para que, pelo menos, ele morresse antes, a fim de que a misericórdia divina acabasse com aquele sisifrimento. Já tinha perdido a esperança de que ela embarcasse antes na viagem de bilhete único, pois sempre teve certeza de que o demônio não estava preparado para aquele tipo de concorrência desleal. Isso sem contar que ela comia direito, não tinha vícios, fazia exercícios militarmente e não tinha doenças hereditárias na família. Tudo ao contrário dele, é preciso mencionar. Logo, a probabilidade não ajudava a sonhar.
E, no entanto, J. não tinha consciência que a vida tem mais surpresas que best-seller. No domingo, no meio da missa, ela recebeu a ordem certa, axiomática e intransferível. Não teve tempo de gritar: J. faça isso! Tudo aconteceu num segundo de distração. J. nem viu, estava prestando atenção numa pomba branca, sentada no parapeito lateral. As penas brilhantes, iluminadas por uma luz que atravessava a janela. Quando a ave abriu as asas ele piscou duas ou três vezes, olhou para o lado, olhou para frente. Ninguém tinha notado aquele incidente misterioso, prolongado e radiante? Só ele?
Ouviu uma voz distante chamando, mas ele não queria responder, queria ficar ali, naquele momento e entender o que era aquilo: luz, pomba e ele, só ele! Um puxão e um grito o trouxeram de volta. Naquele instante, a viu, deitada no chão, de olhos fechados e de boca aberta como se tivesse sido interrompida em sua última ordem. Não fossem os dentes estranhamente aparentes e as sobrancelhas menos arqueadas que o normal, seria possível pensar que ela estivesse fingindo. 
— Deve estar em choque — ouviu alguém dizer. Estava pensando no funeral, nas instruções, na ligação para o filho que morava na Europa, no cancelamento da viagem de final de ano que ela tinha planejado, na reforma da casa do litoral, precisava trocar as tintas antes que fosse tarde. 
1) Flores brancas? — Amarelas. 
2) Caixão fechado? — Aberto. 
3) Enterrada? — Cremada. 
4) Jazigo da família? — Sem chance. 
A lista seguia e, para falta de sorte de J., ele percebeu que era impossível desfazê-la mais de uma vez. Tudo pareceu tão rápido! Prazeres são efêmeros — o poeta tinha razão. Ah, se pudesse refazer aquele velório a semana inteira, o mês todo, inclusive nos feriados e dias santos. Não pôde, lamentavelmente, e quando se deu conta, os dias já tinham se passado e lá estava o sábado nascendo glorioso, preguiçoso, silencioso, pela primeira vez em milênios. Foi às compras habituais, recebeu a visita de alguns conhecidos preocupados, conhecidos que, inclusive, ele nem gostava. Conversaram sobre ela a noite toda: Que Deus a tenha... No centro dos infernos. Era tão boa e gentil... Como a Peste Negra e o Ebola combinados. Vai fazer falta... Tanto quanto um câncer. 
No domingo, a missa de sétimo dia e as trombetas indecorosas das orquestras celestiais deixaram J. com um sentimento de realização. Ele não se sentia tão feliz desde... ele não sabia. Procurou a pomba encantada com a pueril esperança de que ela estivesse por ali, como um sinal de graça concedida. No fim, ele disse para si mesmo que tinha sido apenas uma mistura de coincidência e alucinação fortuita e afortunada.  
Na segunda, após uma semana gozando o luto, quando chegou à sala de aula com um único livro novo debaixo do braço, os onze alunos que tinham resistido àquele semestre notaram a inesperada mudança no olhar de Dr. J. Ele inaugurou um sorriso e disse apenas três palavras: 
— Mudei o programa... — e então viu a pomba! Interrompeu-se. Acreditou que era a mesma pomba sem mancha, suspeitosa, iluminada. Então, percebeu que o pássaro estava sentado no ombro dela, que sorria afável… Subitamente, antes do fim, tudo desapareceu, apagou-se a luz. 

 

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