Marcio Vidal Marinho
Nasceu e foi criado no Jardim Ângela, na periferia de São Paulo. Formou-se mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), defendendo sua dissertação COOPERIFA E A LITERATURA PERIFÉRICA: poetas da periferia e a tradição literária brasileira. Autor dos livros Receitas para amar no século XXI (Edicon, 2010), A vida em três tempos (Ibis Libris, 2014) e 21 gramas (Ibis Libris, 2016), que recebeu Menção Honrosa do 23° Programa Nascente da USP. Atua na rede pública de ensino como professor titular. É integrante do sarau da COOPERIFA (Cooperação Cultural da Periferia) e realiza palestras em eventos, escolas e universidades, apresentando seu trabalho como poeta, seus estudos e reflexões sobre a Literatura Periférica.
VIDA DO LEITEIRO
A Carlos Drummond de Andrade
Há, no país, alguns que recebem o leite,
Outros correm atrás do prejuízo.
Noites mal dormidas
Pois é preciso entregá-lo cedo.
Há uma legenda no país,
Bandido bom é bandido morto.
Então, Rafael, que faz um bico de leiteiro,
Adia seu sonho de ser professor
E sai correndo de madrugada
Para entregar o leite às pessoas de bem.
Já são sete anos nesse trabalho
Com uma carga horária puxada
Não tem tempo para os estudos.
Seus pais o encorajam
Todas as manhãs
Para que não desista,
“Deus proverá”, diz sua mãe.
Os que aguardam o leite, em seus sonos,
logo estarão prontos para o dia a dia.
Rafael pensa nas irmãs pequenas
Não quer que tenham a vida como a dele.
Quer que elas estudem, mas não pode pagar,
Há poucas escolas no país.
Vivem longe do centro, na periferia,
Na Rua Namur, sem asfalto,
Sem saneamento básico.
Gosta das rodas de samba
Nas quais, aos 21 anos,
Já é tido como bamba.
Vai ensaiando uns passos,
Enquanto deixa o produto
À beira das casas.
E como o leite é pouco,
Mas as casas são muitas,
Vai de casa em casa,
Corredor em corredor.
Uma travessa de vez em quando.
Silenciosamente deposita o leite...
Passa quase despercebido,
Sua pele camufla-o na noite,
Pisa tão leve que seus pés
Parecem ser almofadados.
Rafael, o leiteiro,
Caminhando pela madrugada,
mais flutua do que anda.
Às vezes, sem querer,
Algum barulho acontece:
O cão da casa do portão de madeira
Entreaberto em intervalos.
Ou o gato quizilento
que se esconde debaixo do automóvel.
Alguém sempre revira na cama.
Jorge era comerciante,
Mal dormira por conta
Dos rumores de assalto na região.
O revólver, há muito
Aguardava o momento de sair da gaveta.
Bandido? Bom é quando está morto.
Os tiros na madrugada
liquidaram Rafael.
Não tinha namorada,
Mas paquerava muito nas rodas de samba.
Virgem não era desde o quinze.
Rapaz jovem e cheio de sonhos.
Seria professor de português
E compositor de sambas inesquecíveis.
Cedo demais para morrer.
Jorge repara que fora o leiteiro
E se desespera, corre pela rua.
“Meu Deus, matei um inocente”.
Arma nas mãos de gente de bem
Também mata trabalhador.
A vizinhança se assusta
Com a tentativa de assalto.
Somente Jorge defende
O pobre rapaz ao chão.
“Um engano, este é filho
de meu Pai, Nosso Senhor”.
A propriedade está salva.
Alguns ainda desconfiam
“O que fazia o leiteiro a essa hora?”
Rafael já não ouve ninguém
Alguém ficará sem o leite.
Seus objetos de trabalho
Espalham-se pela rua,
Latas reviradas e garrafas estilhaçadas.
Seu sangue escorre...
Mistura-se
Entre a noite e o dia
Formando o amanhecer
Sombrio,
Que perdurará,
Na casa de Rafael,
Mais do que uma triste aurora.
PÁTRIA MINHA
A pátria minha me nega
Nega seus filhos.
É conduzida por falsos
Condutores
Que usurparam
O direito de dirigi-la.
Não importamos apenas garçonetes,
Trazemos música, comida, cultura,
Bullying, shopping, self-service,
Importamos modelos que não nos cabe.
Negamos o que nos é raiz
Matamos o que é da terra,
Principalmente se tiver cor,
Amamos os que fazem guerra
Talvez por medo, mas acho
Que é realmente por amor.
Nosso hino não é mais sabido
Somente no soccer
É onde o ouvimos
Mesmo que pela metade.
Mesmo assim vivemos sorrindo
E nos escondendo da verdade.
Só o gerúndio demonstra o indo
Da atual realidade.
Oh, pátria amada Verde e amarela
Que adora o tio Sam
E que se puder
Mata o Mandela.
Acabaram as esperanças
E no teu céu não brilha
Mais a força, nem aqueles
Que morreriam por ti.
Morreram todos
Morrerão todos
Sem teu pão, sem teu leite.
Morrem pelo desprezo
Daqueles que a guiam.