Marcelo Labes
(1984) É natural de Blumenau e reside em Florianópolis-SC. É autor, dos romances Três porcos (Caiaponte, 2020) e Paraízo-Paraguay (Caiaponte, 2019) e dos poemas de Enclave (Patuá, 2018).
não faz muito a tarde incendiava
as plantas as gatas meu cabelo
despenteado os livros na estante
e esse retrato de ernesto el che
e essa nossa senhora de Nazaré
e esse quadro que ligia bordou
quando tinha dez anos e essa
bandeira da palestina que urda
me trouxe como um amuleto.
era de novo um fim de dia de
novo aquela pequena morte
dos dias de novo e de novo
aquele nó na garganta aquele
momento de dizer saudade de
dizer que tenho medo de dizer
que não tenho o impulso de saltar
por essa janela que não tenho
o impulso de escrever mais um
poema para assumir de novo que
tenho medo de novo que tenho
saudade que não tenho o impulso
de saltar pela janela que não tenho
cara para escrever mais um poema
(porque todo poema é um grito de vida)
e eu não tenho tido coragem.
como se depois da última demão
de tinta descobríssemos que a
parede é falsa
como se depois do último móvel
escada acima descobríssemos
que nos mudamos para a casa
errada
como se a madeira viesse nova
mas já corroída pelos cupins
como se a casa me dissesse vem
e eu te dissesse sim
e tu não me dissesses nada.
estão rente ao chão as
nuvens de chuva e meu
ânimo para levantar daqui
em direção a -
: faço as mãos em concha
para beber o que permites
que te escorra
da boca
das pernas
dos poemas que mesmo que evites
- eu sei que eles te comem viva -
rente ao chão não se faz sombra
rente ao chão não se sofre a queda
: faço as mãos em concha
para te beber em goles que
recendem a leite e por isso
a vida
- como se do peito brotassem flores
- como se a colheita restasse ainda
um astro de cinema se suicida enquanto
te digo que te permitas ver mais adiante
porque são tudo projeções numa parede
branca - está e não está ali o que vemos
; está e não está ali o que temos
para dividir nessas noites longas
de um inverno como nenhum outro
poderá ser
- há um poema embaixo do teu travesseiro
e é por isso que custas a dormir há um poema
no ralo do chuveiro há um poema entre as
tuas carnes e é por isso que custas a admitir
o que é preciso deixar escoar
o que é preciso permitir fugir
que é preciso se permitir a queda
mesmo o chão já nos beijando a face.