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Lucinda Nogueira Persona

Escritora, poeta, professora e membro da Academia Mato-grossense de Letras. Nasceu em Arapongas, PR, e vive em Cuiabá, MT. Estreou na poesia em 1995 com o livro Por imenso gosto. Publicou, entre outros: Ser cotidiano (1998), Sopa escaldante (2001), Leito de Acaso (2004), Tempo comum (2009), Entre uma noite e outra (2014) e O passo do instante (2019).

IGUARIAS DE UM BANQUETE

Sempre haverá algo de surpreendente e também algo de revelador na constelação das lembranças que compõem o registro de uma vida. Não há quem, em vários pontos do caminho, não pare e não olhe para trás. Não há quem não repare no outrora. De fato, a memória é uma dimensão fabulosa, com liberdade suficiente como para deter-se a qualquer hora ou em qualquer ponto da jornada e saborear o tempo que passou. No horizonte das recordações, as horas gravitam ao redor do íntimo levando ao resgate e ajuste de contas com a fugidia realidade.


Assim acontece em Passado a limpo (Carlini & Caniato, 2018) de Icléia Rodrigues de Lima, cuja memória opera como um foco de produção, acionando lembranças. Esse exercício de recaptura é feito na esteira da crônica, consistindo em desvelar estranhamentos e vivências, conjugando essência, humor e lirismo. Ao abrir o livro, depois de um olhar atento às cores do arco-íris na imagem Shutterstock da capa, ao folhear cada breve crônica e mergulhar no âmago de cada petisco, somos de pronto fisgados e invadidos por uma variedade de sensações que vão de doçuras a alvoroços.


Em que pesem atmosferas inquietas, indubitavelmente, a escritora alegrou-se escrevendo este Passado a limpo, pois de outra maneira não se explicam a leveza e o júbilo que fluem através dos textos todos, de modo constante, tornando a leitura uma cativante experiência. Nos enxutos relatos, o sentido afinado e a grandeza da proposta vão aos poucos se estabelecendo por um estilo natural e límpido, por uma busca das imagens puras. Entre simples e requintada, a autora recria fatos e lugares da paisagem natal. É poderosa a presença da infância e da família: mãe, pai, avós, tios, irmãos, primos. Ingredientes acenados no início do primeiro texto quando escreve: “Revolvo as memórias mais antigas e nada encontro apartado de família, de escola e de igreja”.


As evocações reunidas na obra reproduzem histórias reais, ações com as quais nos identificamos, acontecimentos com os quais interagimos. Os cenários, a exaltação da vida e a matéria humana esplendem numa prosa em que a crônica é parecida ou tem muito de um conto em sua estrutura.


É uma prosa quase física. Uma prosa do olhar. Olhar a casa remota quase em silêncio ou então o mundo, quando a alma se enlaça a cada detalhe. É uma prosa do ouvido, a escutar tudo: rumores, reprimendas, comandos ou o “murmúrio dos adultos num quarto fechado”. Uma prosa do olfato que faz “experimentar algo de embriaguez” provocada pelo jasmim, ou “um aroma de alegria” com o “pudim roceiro de fim de ano”. É ainda uma prosa da recordação tátil, ao levar “um tapa com as costas da mão da mãe” que a fez cair para trás. E é festivamente uma prosa do paladar, a exemplo das “jambochas” que frequentaram seu passado catalano, em Goiás, tidas como “uma orgia do sabor”. As brevidades feitas pela avó são descritas numa receita portentosa de “claras em neve” e “fitilho de casca de limão”, expressões que flertam abertamente com a poesia.


Importa acentuar que nos textos vêm à baila, amiúde, elementos sensoriais, vigentes através do tempo, capazes de alcançar os sentidos do leitor. As imagens são tão estimulantes que oferecem um exercício de plena satisfação estética. É o que se verifica quando a autora escreve sobre a avó Ritinha: “Ela fritava toicinho e tinha latas de banha branquinha, que cheirava muito quando fritava o alho para assustar a couve para guarnecer o Tutu”.


“Assustar a couve” é de uma propriedade magnificamente sugestiva dos estertores da verdura na banha quente. É uma verdadeira viagem através da metáfora oferecida por essa voz consciente do poder e do arranjo das palavras. O que se verifica é uma escrita dos matizes, da agilidade verbal, da delicadeza, do fluir límpido “e que tais” – só para repetir uma expressão frequente no apetitoso universo semântico de Icléia Rodrigues de Lima, quando não quer usar o etc.


Visitar esse Passado a limpo, demanda caminhar por suas veredas com zelo e agudeza, pois a cada passo pode ser divisado algo extraordinário florescendo. As crônicas são tecidas com esmero, desenvoltura e sem rodeios, valendo dizer que mais parecem iguarias de um banquete e, como tal, merecendo vagarosa degustação/leitura, além de releituras pelo que avulta de gulosa paixão pelo sublime cotidiano gastronômico, seja nas “quitandas de domingo” ou no “doce verde-claro de laranja, transparente, com a imissão negra e inesperada de algum cravo aqui e acolá”. A menção desse doce com sua especiaria aromática flutuando na calda, dispara sensações e faz transbordar a alma. Os elementos culinários, servidos com graça e generosidade, fazem de Passado a limpo um cardápio indispensável para todo conviva que se alimente da linguagem impregnada de sentido.

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