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Lucinda Nogueira Persona 
É escritora, poeta, professora e membro da Academia Mato-grossense de Letras. Nasceu em Arapongas, PR, e vive em Cuiabá, MT. Estreou na poesia em 1995 com o livro Por imenso gosto. Publicou, entre outros: Ser cotidiano (1998), Sopa escaldante (2001), Leito de Acaso (2004), Tempo comum (2009), Entre uma noite e outra (2014) e O passo do instante (2019).

FRAGMENTOS COMPONDO O TODO ENCANTATÓRIO

Quando se vê, o ato de ver não tem forma – o que se vê às vezes tem forma, às vezes não.

O ato de ver é inefável. E às vezes o que é visto também é inefável.
Clarice Lispector (in: Água viva, 1990)

No correr do tempo, há sempre um instante, uma hora, um dia para começar algo e, neste caso, retratar um artista. Alguém que pertence a esse contingente humano que nasce sensível e se insere no foco de interesse coletivo, através de sua imaginação criadora e através de seu talento harmonizado com o compromisso de responder à realidade, representando-a pela experiência do olhar, pelas emoções e embates da alma.
Neste exato ponto, a indagação: Como retratar o artista cumprindo seu destino? Como retratar Emerson Persona em seu fecundo acontecer? Em seu diálogo com o mundo e a vida? Em suas incursões borgianas no universo dos seres imaginários? Como retratar este mestre da pintura e do corte das imagens? Luminoso, preciso e emocionado, numa elaboração em que lhe sai das mãos o que entrou pelos olhos e ficou na alma.
Emerson sempre viajou através dos traços e tintas, começando sua grande aventura na infância, dentro de circunstâncias cotidianas da casa e da escola, conjuntura fundamental de sua formação. Tempo em que o mundo começava a morar em seus olhos e seu olhar a demorar-se no mundo. Tomando uma página do passado, conta-nos Sumaya, prima de Emerson, ter posado para ele num instante fortuito do cotidiano infantil. Foi desenhada a giz branco num espaço cimentado do quintal da casa. Ambos entre 7 e 8 anos de idade, alicerçados em afeto e magia. Ela faz o relato sorrindo. A lembrança inapagável. No chão de cimento batido, sua imagem de vestido rodado, pulseira, tiara de princesa menina. Uma fusão de realidade e fantasia. E torcendo muito para não chover, para ninguém pisar/apagar, mantendo-se guardiã daquele tesouro. Lá estava Emerson, com naturalidade, inaugurando experiência estética, numa superfície de textura rugosa, áspera, o que nos remete às superfícies das cavernas e abrigos rochosos onde se registraram as mais antigas manifestações pictóricas da história humana. Lá estava Emerson ensaiando a delirante atmosfera do futuro, anunciando, por assim dizer, a presença do feminino em seu universo imagético.
E nesse futuro-agora, emerge o artista em plenitude, com clara consciência da resvaladiça realidade, marcando-se pela inversão do sentido habitual das coisas/objetos/personagens e pelas incursões numa atmosfera particular, convertida em morada onírica durante o trabalho compositivo. Uma pintura que chega ao observador com desafios singulares, surpresas e metamorfoses, convidando a arrancar o sentido das formas. Pintura que se alça e se estende como um território de buscas, onde tudo e cada coisa pode significar sempre algo mais, fazendo parecer que ao semear seus mistérios não entrega facilmente o ouro ao bandido. “Ao lidar com as imagens trato de algumas questões que não necessariamente podem ser reconhecidas pelo outro” – diz Emerson numa entrevista. Sim, sua viva e portentosa plástica desperta para infinitas leituras, sobressaindo de pronto a dimensão transformadora, grandemente multiforme, intimorata aos voos ambivalentes. Laborioso, concebe uma pintura das coisas incomensuráveis e das metamorfoses lúdicas. Com vigor e liberdade salvaguarda não apenas os espantos, mas também outras emoções que nascem na caminhada dos humanos.
Em sua aventura mítica, apaixonada, híbrida, quimérica, Emerson compõe plantas ternas e sinuosas que sobem pelo ar, flutuando em jardins secretos. E tantas cabeças e rostos e formas “Humanais” arroxeadas, faces com o poder dos femininos e masculinos, a doce tristeza morando no olhar, a exemplo de seu trabalho “Deserto” e ainda o ardor oculto de um “Duplo” solitário. A policromia é esplêndida e os lugares secretos são avivados pelo silêncio de “Flores maravilhosas”, carnosas, vermelhas. Um vermelho que não é sangue, nem a percepção da cor como tal, mas sim a inevitável torrente do espírito, em momentos de um contexto perturbador refletido na obra. O “Vermelho”, levado a efeito em recente Exposição no MuMA, Curitiba, Paraná, referida pelo autor como “um sinal de alerta”.
A produção de Emerson desvela as formas inesperadamente interrompidas. Ou não. O corpo avulta como grande tema, apresentando metamorfoses inexoráveis na ordem clássica da divisão (cabeça, pescoço, tronco, membros). O artista vai representando anatomicamente, vai caminhando como anjo ou samurai, ora em direção ao todo, ora para as partes. Neste último caso, os fragmentos não são simplesmente fragmentos, pois sugerem conexões sempre novas. São pedaços de criaturas, frações de vida alimentando a fome do espetáculo e o desejo da imagem que não se limita a guiar para o óbvio e fixo, mas antecipa divagações, propicia extensão e variabilidade.
No fundo, uma realidade que se rompe em pedaços no fluxo da criação, quando as mãos, livremente, dão curso aos sentimentos mesclando cores e formas. Todas as cores tornando-se mais belas no jogo das imagens, com rosas que se prolongam de boca em boca e espinhos (signos recorrentes) enterrados ao redor dos olhos, pescoços e talos vegetais, provocando um manancial de emoções.
Em Emerson, a linguagem artística intensifica a ideia da concepção, gestação, crescimento e transformação a partir de incisões e reconexões. A partir de fragmentos compõe o todo encantatório. Trabalha a beleza de cada porção minimizando a ideia da adaga. Ou do bisturi. É o real sendo deglutido pela voraz boca do imaginário. E por isso, Emerson Persona reverbera em nossos corações a cada instante em que contemplamos suas imagens enfeitiçadas de realidade.

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