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Lucinda Nogueira Persona

Nasceu em Arapongas, PR, e reside em Cuiabá, MT. É poeta, escritora e membro da Academia Mato-grossense de Letras. Graduada em Biologia (UFMT), Mestre em Histologia e Embriologia (UFRJ), com estágios profissionais na Universidade do Chile. Professora na Universidade Federal de Mato Grosso e Universidade de Cuiabá, até se aposentar. Livros de poesia publicados: Por imenso gosto, Massao Ohno Editor, 1995 e Carlini & Caniato, 2018 – Prêmio no Concurso Cecília Meireles (1997) da UBE. Ser cotidiano, 7Letras, 1998. Sopa Escaldante, 7Letras, 2001 – Prêmio Cecília Meireles (2002) da UBE. Leito de Acaso, 7Letras, 2004. Tempo comum, 7Letras, 2009. Entre uma noite e outra, Entrelinhas, 2014. O passo do instante, Entrelinhas, 2019. Na literatura infantil é autora de: Ele era de outro mundo, Tempo Presente, 1997 e A cidade sem sol Razão Cultural, 2000. Participou das antologias: Na margem esquerda do rio: contos de fim de século, Via Lettera, 2002; Fragmentos da alma mato-grossense, Entrelinhas, 2003. Roteiro da poesia brasileira: Anos 90/ [Seleção e prefácio Paulo Ferraz; direção Edla van Steen]. – Global, 2011. Integrou as Revistas: Poesia Sempre – Ano 9, n. 14 (ago. 2001). Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, 2001. Lado 7 – n. 4 (out. 2012), 7Letras, 2012. Revista Brasileira – Ano V, n. 87 (abr. mai. jun. 2016). Academia Brasileira de Letras, 2016. Revista comemorativa dos 95 anos da Academia Mato-grossense de Letras (1921-2016). Carlini & Caniato Editorial, 2016. Direção/organização de Elizabeth Madureira Siqueira; Marta Helena Cocco; Eduardo Mahon.

EXPOSTA À TARDE

 

Exposta à tarde

nos lugares públicos

e ruas apinhadas

uma esquina

não tem mesmo nenhum significado

A banda encardida da sua dobra

o seu dobrar de tudo ou nada

a desproporção das sombras

atrás dos seus corpos apressados.

(Por imenso gosto, 1995, 2018)

VEIO UM VENTO

 

Veio um vento

de tendências contraditórias

e revirou o que era deslocável

e estava pelas ruas

Foram para o espaço

folhas secas e papéis

Papéis e folhas secas

voltaram para o chão

            Os cães perderam o rumo

            perseguidos pela fúria

            dos galhos impelidos

            mas

            eis que todos retornam

            e agora são os galhos

            pelos cães perseguidos

E caíram frutas maduras

e verdes frutas caíram

Os raros transeuntes debandaram

uns carros queriam chegar... a cem por hora

Os pássaros não se governavam

As janelas batiam palmas

e as almas entravam por elas

O mundo iria acabar?

(Por imenso gosto, 1995, 2018)

CLARÕES DE SOL OU DE LUA

 

Clarões de sol ou de lua

invadem

minhas zonas de impedimentos

derretem meus centros

modelam meu plasma

em túmidas expectativas

Retiram um sumo adocicado

dos meus sonhos.

(Por imenso gosto, 1995, 2018)

POR AQUI

 

Por aqui

tudo quase se acaba

é no auge da seca – em agosto

quando pássaros de carvão

piam por chuvas

e o pó e a fumaça

regulam claridades

Quando o cheiro do mato

que queimou lá no cerrado

entra nas casas

e deixa um traço de cinzas

em cada rosto

e nenhum lugar é horizonte.

(Por imenso gosto, 1995, 2018)

NA PALMA DA MÃO

 

Olho de perto a profusão de sulcos na palma da mão.

Três são maiores e profundos,

uma infinidade de outros são menores e mais rasos.

Que paisagem essa!

Rosada como a luz da aurora.

Trincada como um espelho apedrejado.

É quase um deserto, as dunas se elevam serenas,

porém, não raro, brota-lhe uma água subterrânea.

Olho com paciência as ranhuras fininhas

e completamente enlaçadas.

(É preciso ter paciência com certos padrões de melancolia).

Acompanho os grandes sulcos,

aqueles nos quais a cigana lê o futuro.

As curvas a perder de vista.

Vou e venho como num passeio de mulher sem destino.

Quem sabe o que se passa por esses caminhos?

(Ser cotidiano, 1998)

DO ORVALHO SAEM AS LESMAS

 

De dentro do orvalho saem as lesmas

extraviadas nuas e tímidas de um parentesco.

Músculos sombrios e olhinhos vacilantes

à vista do mundo junto ao chão.

A parte mais sensorial delas

sentindo

orientando

o rastejar mucoso.

Usando os advérbios todos.

 

As lesmas escorregam sem pressa

belas e sinistras úmidas e lascivas

como o arrastar da morte sobre vidas

ou um passar da língua sobre a cria.

Percorrem metros e metros

segregando a baba fina

em torto caminho.

Depois estorricam

no incêndio das paredes.

No futuro de uma lesma

está o sol de sua morte.

(Ser cotidiano, 1998)

VOU À PADARIA

 

Por toda parte, no meio

e nas fronteiras da cidade

o enfraquecido sol ao fim da tarde

do mais seco inverno e berinjelas

 

no céu (lugar tão vago) enquanto

paro o carro numa vaga rente

ao meio-fio e simplesmente

vou à padaria – aonde sempre fui.

 

Um vento fresco, um pouco forte

(e agindo em golpes

como golpes do destino) se joga

 

contra meu rosto tão deserto e livre

e uma sombria boca

onde as palavras só se afogam.

(Ser cotidiano, 1998)

DE SER TARDE

 

Todas as violetas

e demais flores

dessa mesma cor

refletidas no poente.

 

Labaredas roxas de nenhum fogo.

 

A grande tática

de ser diferente

em certas tardes

de ser tarde

em certos momentos

um estado e nunca permanência.

(Ser cotidiano, 1998)

PEQUENO SER VIVO

 

(deste vazio eu não morro)

 

eu

pequeno ser vivo

as vértebras doendo

olhando o firmamento

 

começa neste instante

a esboçar-se a noite

            é raro que eu não dê atenção ao fato

            é raro que eu não chore um pouco

            é raro que eu não tenha um desejo

 

diante do crepúsculo

num canto particular do mundo

reconheço

que muitos e muitos

já publicaram o assunto

e felizes foram e felizes foram

 

que modo simples e maior existiria

para eu ser feliz como aqueles?

 

qual é

ainda não sei.

(Sopa escaldante, 2001)

 

 

TATURANAS

No coração do cerrado afetado pela seca

o fogo surgiu de súbito

de um desconhecido foco inicial

tomando um rumo qualquer.

 

No inferno que se fez

o reino animal se pôs em fuga.

Seriemas e lagartos (seguidos por labaredas)

Pediam passagem à vida.

 

Ao longo de uma estrada

numa única direção, desesperadas,

também taturanas fugiam

 

centenas de taturanas enfileiradas fugiam

com seus corpos sanfonados

num insuportável esforço de sair

                                   de dentro delas mesmas.

(Sopa escaldante, 2001)

TUIUIÚ

 

De nossas necessidades

faço histórias, ponderações, estudos

explicação comum de tuiuiú eu tenho:

ele passou da conta no crescer

 

o tuiuiú, quando acorda e abre as asas,

ultrapassa as bordas do amanhecer

deste modo,

o espaço aéreo só comporta um.

 

O tuiuiú é tão grande, tão grande que

ao levantar voo

o céu sai de perto.

 

Por fim, Senhor meu, por fim

quando um tuiuiú vai a óbito

(porque nesta vida não falta adversidade)

quando um tuiuiú vai a óbito,

as borboletas requisitam guindaste

(Pelo menos para as penas – do lado do coração).

(Sopa escaldante, 2001)

SOPA

 

Os ossos

perderam cálcio e densidade.

Sem resistência, meio inclinada,

ela se entrega à sopa escaldante

 

ao aroma errante

aos vapores fatídicos que se espalham

de uma fonte de verduras

junto ao rosto

 

de tal modo que

embora brilhe o sol

nos longes do horizonte

 

escuras nuvens se formam

nas latitudes mais próximas

do coração.

(Sopa escaldante, 2001)

SEGUNDO DOMINGO COMUM

Segundo domingo comum:

aberto na ausência de um sol

parado na rosa em seu cálice

inatingível

como as mães que já se foram

 

Segundo domingo comum:

entrando pela porta da igreja

saindo pela porta do cinema

impensável

fora da vida e das coisas

 

Segundo domingo comum:

seu material é sempre o mesmo

vejo pássaros chegando aos frutos

insetos à flor

fiéis aos deveres litúrgicos

 

Segundo domingo comum:

meu dia de folga

meu dia de Deus

igual a outros domingos

como iguais são os ovos.

(Leito de Acaso, 2004)

FIGOS

 

O nada é uma grandeza indescritível

dimensão que me fadiga e maravilha.

É como se Deus me perguntasse:

O que vês, filha?

E eu não soubesse responder

com absoluta clareza

como o fez Jeremias

diante de dois cestos de figos.

(Leito de Acaso, 2004)

ZONA CRÍTICA

 

A chuva se prolonga

alaga a cidade

desfigura a cidade

faz mofar minha casa

A zona crítica é meu coração

com a água a atingir

a soleira do alarmismo

os sonhos estacionados

em desgoverno.

(Leito de Acaso, 2004)

À BEIRA DO LAGO

 

Certa manhã

(pois todas as coisas que amo, espalho)

certa manhã

sentei-me à beira

do Lago de Zurique

que continua lá

na sua paisagem comum

onde o vi como um espelho

por patos retalhado

 

Sempre volto a algum fato

pego o começo de alguma coisa

                                               um nó

para que o mistério seja possível

 

Certas lembranças

são como substâncias cristalinas

posso dividi-las em planos paralelos

e ganhar forças na recristalização

                                               (esta)

Só quero mostrar a vida

em seu estado natural

de atos e gestos

pequenos eventos, inquietações

Mas tudo é tão vasto

e qualquer poema

é um mundo à parte.

(Leito de Acaso, 2004)

 

 

 

 

A SEDUÇÃO DE CERTOS MOVIMENTOS

 

Em pleno velório

indócil à rigidez da morte

estudo o seu inverso: a vida

a voracidade

a sedução de certos movimentos ansiosos

das chamas que se agitam

 

Quero tudo

que não esteja parado

nem tenha entrado em descanso

Quero tudo

que não se deite

em posição tão paralela ao horizonte

 

Depois de o tempo se fartar das velas

(nos quatro cantos do funeral)

dou graças a mais um pormenor

que enfim me conforta:

os lagos de parafina

no fundo dos pires

(sempre fui assim)

(Leito de Acaso, 2004)

CÓDIGO DE BARRAS

Semelhante a um código de barras

a chuva invertebrada e fria

está impressa na paisagem

Às vezes

o dia se resume em chuva

e copiosas questões insolúveis

A essência dos enganos não tem casa

e pode estar agora no centro

desse campo magnético

condensado em cinza

Nenhum coração enfrenta com êxito

o que parece não ter fim

Mais do que aparência

a chuva prolongada

é líquido vidro retalhado

contra substância que lhe opõe resistência

A chuva esconde o horizonte e alisa

a ausência de uma cova

daí

a conveniência

da devida prudência.

(Leito de Acaso, 2004)

TEMPO COMUM EM PALAVRAS

 

(A noite é passada e o dia é chegado)

Eis o tempo comum em palavras

Notícia bem-aventurada

que recolho dos Romanos

como se recolhem ovos nas fazendas

Ponho em todas as palavras

uma alegria serena

porque me fazem grandes coisas

porque delas e por elas e para elas

também vivo

e sem cessar me maravilho.

(Tempo comum, 2009)

OUTRA GALINHA

 

Em outro domingo

outra galinha

 

Isso não é muito

mas é um começo

 

Fugia

            Fugia

Via-se forçada (por assim dizer)

a emparelhar com o vento

 

Corria

            Corria

Mal podia dar um passo

fora do horário de morrer.

(Tempo comum, 2009)

TRAÇOS

 

Nada sei das tardes

consumidas por sua ávida memória

E menos sei de outros cansaços

demônios, amantes, rupturas

Contudo

o pouco tempo gasto nesses traços

fortalece conjeturas de tumultos

narcisos fluindo

nas máscaras cotidianas

A rigor

este é o retrato

de quando se elimina a vida

e faço

à base de virtual imagem

quando o virtual é moda

e fica bem

(e burla as dores).

(Tempo comum, 2009)

NOTÍCIA MÍNIMA

 

Coisa nenhuma se esconde à vida

e nem se esconde ao poder da língua

a notícia mínima

 

Um ovo levemente frito está no prato

a ponto de ser um sonho, elemento perfeito,

mantimento ativo

 

E tudo se reduz ao velho e justo termo:

o que vive sem sonhos, vivendo, está morto.

(Tempo comum, 2009)

AI DAQUELE QUE FICAR SÓ

 

Na vida a dois

há uma ordem que não muda

 

Um

sempre irá menos longe

do que o outro

 

Quem fica

(único habitante da casa)

não raro

acorda antes da alvorada

pedindo contas do que se passa

 

Não há criança dormindo

Não há café a ferver no fogão

Só há o que é maior do que ele

 

            Ai daquele que ficar só.

(Entre uma noite e outra, 2014)

VÍCIO DA ESCURIDÃO POR EXISTIR

 

Há noites que

(à semelhança de frutos sem sementes)

nascem assim:

sem estrelas

numa ordem diferente

no timbre da incerteza

o vício da escuridão por existir

o mundo feito das secretas coisas

sombrios refúgios do amor

Dos mistérios (o quanto possível)

o menor

(Entre uma noite e outra, 2014)

DO MESMO PARTO

 

O que é que se vê

no topo do caos?

Estrelas

festivas

buliçosas

(nenhuma se cansa primeiro)

Estrelas

faiscantes

tiritantes

(como se pode dizer diferente?)

Estrelas

tão semelhantes entre si

contornos alusivos

ao tema dos espinhos

Estrelas

cada uma repetindo

o que a outra tem

(filhas que do mesmo parto nasceram)

                        Estrelas

Estrelas

uma é amarela

e a outra também.

(Entre uma noite e outra, 2014)

PÊSSEGO EM CALDA

 

Alguma coisa está errada?

 

O que é que me assombra

na hora do crepúsculo

se o sol nadando em luz

parece um pêssego maduro

em dulcíssima calda?

(Entre uma noite e outra, 2014)

ÁTOMOS

 

Como se há de resistir

à ronda dos vazios?

Átomos perambulam no ar

átomos estão suspensos no ar

            pequeníssimos

            inquietos

            elétricos

saltam para fora de seu lugar

voltam a formar um bando

mero ponto de partida

 

Não é fácil ganhar o céu.

(O passo do instante, 2019)

ARRANHA-CÉU

 

Talvez o momento seja

subitamente propício

é maio no hemisfério sul

o outono segue tenaz

degolando as folhas

e não tira os olhos do meu pescoço

ao longe há nuvens ingênuas mascando

a cimeira de um edifício

                        insípido

                        empedernido

                        e altivo

como todo arranha-céu.

(O passo do instante, 2019)

AMOR ÀS HORTALIÇAS

 

Pequenos detalhes não me escapam

em certas necessidades

 

Enquanto persevero

fiel no amor às hortaliças

que entre a língua e o céu da boca

em glórias saboreio

            não me abstraio

            do curso indispensável

            e da característica comum dos seres

            de intestino aberto no fim

                                               (em ânus).

(O passo do instante, 2019)

ANOITECE

 

Anoitece, não hoje

Sombras já se elevam

muito acima do chão

Relações de trabalho se destecem

Veículos e pedestres

formigam nas ruas

(a ponto de colisão)

dão-se pressa para chegar

Há tristezas de permeio

 

Luzes se avivam

Cada operário procura a sua.

(O passo do instante, 2019)

      Inconformado com a nova realidade, Hans acordou muito cedo. O painel do relógio digital de cabeceira marcava exatamente quatro e meia. O tempo estava ali, na linguagem numérica, e resplandecia em verde luz na quieta paisagem do quarto de casal. Os olhos de Hans, viscosos, tentaram se acostumar às sendas da escuridão. Mais uma vez, sentiu-se um tanto perdido no calendário, embora o calendário nada significasse.

   Desinteressado da madrugada sem lua, reuniu forças para a jornada escolhida. Nunca se ligara muito na rotina cósmica, nesse tipo de ressurreição da luz, a cada novo dia. Assim, o passo seguinte, não sendo o mais difícil, foi examinar o que era visível. Convencer-se de que se reencontrara, de que poderia ir e vir e realizar seus desejos.

Devagarinho, os músculos ainda meio adormecidos, afastou a coberta e sentou-se ao pé da cama. Não queria, de modo algum, desfazer a ordem e o silêncio. Aliás, começava aí sua fervorosa operação silêncio. Réplica de tantas outras. Ele sempre tivera esse cuidado, o de evitar ruídos, evitar que Maria, sua mulher, acordasse tão cedo. Principalmente num domingo.

      Hans observou-a longamente ali no leito. Tão dócil. A velhice ofertada. O esboço do corpo sob a coberta, parecendo um tépido saco de lembranças. O travesseiro esmagado por uma veemência desconhecida. Para ele, era imperioso velar essa mulher. Articular-se em torno dela. Estender a mão, suavemente, e atravessar o tempo para, afinal, não ter coragem de tocá-la. Ela dormia e ele, dentro de um ofício repetido, cuidava do silêncio. Tomava as mais diversas precauções para ser leve, poroso, ou melhor, para não ser corpo.

     Tateando, satisfeito porque os movimentos não lhe estalavam as articulações, Hans encontrou os chinelos. Ergueu-se imaginando que talvez fosse um ausente cuja reestruturação se tornara possível. Em algum lugar, um cachorro latia. Mas era tão longe, tão longe, que não se viu ameaçado em sua missão.

         Com extrema lentidão, dirigiu-se ao banheiro. Caminhou através da penumbra num curto trajeto sem obstáculos. Na verdade, ele seguia uma velha trilha, impressa no piso. Uma trilha de muitas idas e vindas. Sem acender jamais nenhuma lâmpada. Habituara-se ao escuro.

Quando chegou ao pequeno aposento de banho, mal enxergou sua sombra no espelho. Quantas e quantas vezes ele já vivera essa cena, a sensação de se ver aprisionado, a sensação de ser orgânico e inorgânico ao mesmo tempo. O espelho proporcionava-lhe agora um retorno muito débil de velhos gestos mecânicos. Esfregou os olhos. Não queria fazer interpretações mais precisas de sua figura. O clima estava ameno. Era maio. Abafou uma tosse e voltou-se para o vaso sanitário, branco, brilhando na escuridão. Aproximou-se, urinou e suspirou num alívio sem limites. Demorou um pouco com seus órgãos pendentes na mão em concha. Acariciou a diferente matéria. Sentiu uma espécie de desorientação. Entendeu, nesse instante, o que a vida tinha por fora e por dentro. Embora devesse, não acionou a descarga. Era ruidosa demais. E ele estava a serviço do silêncio. Indeciso, soltou a água da pia num finíssimo fio. Desconfiou da quietude da água. Será que sonhava? O sabonete, verde e de alfazema, encheu-o de terno conforto. Se algum dia tivesse lido a Montanha Mágica, saberia que outro Hans, o Hans Castorp, em certa manhã, em outra circunstância, usara um sabonete assim.

Através da pequena janela de vidro, pousou os olhos nas nuvens rosadas do Leste. Quase se deixou invadir pela harmonia do infinito. As folhas de um coqueiro estavam imóveis. Sobre o conjunto urbano ao qual pertencia, o sol iria desferir os primeiros raios. Um dia de grandes dimensões estava para apontar. Um dia igual a muitos que se passaram e, provavelmente, igual a outros que ainda viriam. Nesse momento, Hans cobriu de espuma o pálido rosto. Demorou no afeto de espalhar. Depois, enxaguou. Por mais estranho que se sentisse, achou que recriava um mundo todo seu. Escovou os dentes. Penteou-se. A realidade parecia aceitá-lo plenamente.

A casa começou a mostrar consistência. Conseguiria fazer o que sempre fizera? Acreditou que sim. Dono era de uma forte vontade. Como num ritual interminável, viveria sua fantástica verdade, recolheria os jornais, prepararia o café, regaria as plantas do jardim. Bem mais tarde, quando Maria despertasse, tomariam o café da manhã ao som do próprio mutismo. E o domingo transcorreria. E viriam outros domingos. Todos desertos. E ele, insistente, repetiria os gestos pontuais e as obrigações da casa, andando para todos os lados, subindo e descendo, descendo e subindo. Sentiria menos horror da exclusão.

Hans suspirou. Nada se ouvia. Suas estratégias e manobras surtiam efeito. Mas já era hora de sair dali. E foi lentamente, pé ante pé, que fez o caminho de volta. Passou pela cama, onde a mulher dormia profundamente. Avançou até a porta que se comunicava com uma sala que se comunicava com outras salas. Deu os dois giros costumeiros na chave, abriu e voltou a fechar com extrema cautela.

Antes de sair para a extensão infinita da casa, antes de ser arrebatado pelo nada, Hans havia cuidado amorosamente para que a sempre cansada e amada Maria, sua viúva, não acordasse tão cedo.

In: RDM, 28, 05 out. 2003. p 34.

O SEGREDO

 

            Vim de carro. O cemitério se deita no chão da colina. Há meses não venho. Tudo parece calmo nesta tarde próxima do Natal, embora não me acalme o perfil de pedra da cidade que vejo ao longe. Dos túmulos, perdidos no chão, só se avistam as lápides de granito ou mármore. Ou apenas de cimento. Fiscalizo justamente o retrato de mamãe e certa vivacidade que parece brotar de seu semblante. O semblante de quem sempre escondeu alguma coisa. Só isso. Ela continua séria com sua blusa de bolinhas. E o cabelo não cresceu. Ela continua guardiã e eterna advogada de sua própria experiência de vida.

            Do sol quase posto, resta uma luz estranha, flutuante, fremente. A brisa flui com seus efeitos benéficos. Sobre o verde gramado, velhas folhas se espalham. Dói um pouco fazer este inventário, explorar esta paisagem reveladora da dinâmica do universo, dos laços entre atmosfera e terra, das trocas entre os seres e o solo. Uma paisagem reveladora do destino da matéria. E da enorme distância entre o homem e o céu.

            Tudo poderia ser pensado sem nenhuma inquietação, sem nenhum movimento, mas a vida é justamente o contrário. Assim, retiro os sentidos para um outro tempo, para uma outra ordem natural de coisas. Lentamente, abro as portas do passado. Tudo está longe, mas ainda consigo ver e sentir. Eu estava no fim da infância. Uns dez anos de idade. Acentuada sensação de pânico. Pânico por tudo, pânico por nada. E urgência de futuro.

            Foi num dia de Natal, numa inesquecível tarde de Natal, depois do almoço, que a frase de mamãe, quase cochichada para alguém, caiu nos meus atentos ouvidos: “Tenho um segredo que vou morrer com ele”. Segredo? Foi um choque. Meu Deus, minha mãe tinha um segredo. E a palavra ficou existindo soberana. Intolerável. Segredo? Do resto, o mundo ficou vazio. O que seria? Com certeza algo muito sério, tal o tom de sua voz denunciara. Ela parecia ferida de alguma verdade. E feriu-me também. A partir daí, só um desejo me movia. Conhecer aquele segredo. A cada batida do meu coração excitado, a pergunta era a mesma. Minha imaginação rodopiava pelas ruas, cidades e mundo inteiro, em busca de alguma coisa surpreendente. Alguma coisa que pudesse merecer tanto sigilo. Usei os melhores recursos para soltar a língua de mamãe e fazê-la contar o que planejara guardar para sempre. Seria segredo de amor, morte ou loucura?

            De vez em quando, aproximava-me com minha bisbilhotice, conversas vagas, indagações sinuosas. Instigações. Pedia-lhe histórias de seu tempo menina, de seu tempo mocinha. Ela caía na trama. Confessou certa vez, cheia de amarga doçura, que sua irmãzinha morrera de fome. E tudo por orgulho do pai. Ele, numa fase difícil da vida, recusara-se a pedir leite ao fazendeiro vizinho. A mãe, seca de leite, dava papa de trigo e água ao bebê. O bebê se foi. Mas é triste, pensei, e tão forte que perguntei à queima-roupa: “Esse é o segredo que você ia levar ao túmulo”? Surpresa, ela respondeu: “Não, filha. Não é esse, é um muito maior, muito maior”. E ficou mais séria do que nunca. Caí num abismo. Fiquei maluca de impaciência. Mas deixei o tempo passar. Uma vez ou outra, uma artimanha para descobrir o que mamãe considerava irrevelável. “Você casou esperando criança”? Sussurrei assustada certa vez. “Deus me livre, menina”. “Você traiu papai”? “Credo! Filha. Nem pense uma coisa dessas”. E assim prossegui no meu inquérito pueril, ano a ano, até me adaptar aos limites do respeito à privacidade daquela mulher tão austera.

            Bem mais tarde, depois de muitos percalços, tanto na vida dela quanto na minha, quando ela se encontrava num delicado estado de nenhuma saúde, quando sua alma sufocava nos profundos silêncios que antecedem um grande transe e quando tão pouca coisa eu sabia dela, nesse instante, ainda fiz uma última tentativa, uma leve tentativa movida por delicada oratória.

            Hoje, nesta tarde próxima do Natal, acerto as lembranças com certa ansiedade. Uma borboleta, pequena e alaranjada, minúsculos pontos negros nas asas, gira frenética em torno de uma flor do gramado. Para, torna a girar, numa adoração necessária e substancial. Penso nos segredos intocáveis, penso no mundo feito de mulheres que economizam histórias, no mundo feito de mulheres misteriosas que se vão para sempre com seus mistérios.

Extasiante, a brisa mantém orientação norte-sul campo afora. Já depositei na sepultura a braçada de gérberas. Olho o vazio. Olho as nuvens agora douradas. Que segredo em vão esperei e mamãe levou consigo? Que segredo foi esse que eu quis tanto roubar de sua sagrada e tenaz vontade de guardá-lo?

            O que ela nunca me disse, até hoje me persegue.

In: RDM, 39, ano IV, 21 dez. 2003, p34.

ESTRANHO SONHO

 

“Algunas veces cazamos vampiros. No son repulsivos ni malvados como cuentan las leyendas”. Maria Rosa Lojo.

 

            Na verdade, algumas vezes encontramos vampiros e então percebemos sem a menor dúvida que o mundo é absurdo. O mundo é cheio de pessoas absurdas, de coisas fantásticas e fatos imprevisíveis. Nesta história, os personagens são particularmente surpreendentes. Levam a crer que nasceram um para o outro, pois, sendo belos, seus únicos e incomodativos defeitos se justapõem e se complementam.

            Eram dez horas da manhã em Lisboa. O voo Lisboa-Roma iria durar o tempo suficiente para que ela se desfizesse de uma certa aflição. Era o que pensava, no momento em que percorreu a largos passos o túnel que a conduziu ao interior do avião. Seguiu decidida para o assento indicado no cartão de embarque. Acomodou o corpo, mas não o espírito. Fazia tudo com paixão. Estava em busca de algo totalmente novo. Indefinível, ainda. Talvez algum prazer que pareceria inusitado aos olhos do comum mortal. Talvez algo como a verdade atrás do sonho. Do estranho sonho que costumava lhe acontecer ao cruzar a espessa fronteira do sono.

            Endireitou-se na poltrona. Vestia-se com certo toque emotivo. Conjunto jeans de um azul profundo. A blusa ampla, toda aberta, deixava entrever uma camiseta florida colada ao corpo esbelto. Era jovem, extremamente bonita, cabelos longos, escuros e volumosos, contrastando com a pele muito alva. Os olhos, entre o verde e o dourado, eram carregados de um mistério inútil. Qualquer um que a olhasse, nem precisava ser com insistência, descobriria de imediato um outro detalhe do seu corpo. Uma parte anatômica com a qual ninguém se importa, mas que nela chamava a atenção. Era seu pescoço. Sim, o pescoço. Estranhamente longo. No entanto, fascinante em sua textura de seda, em sua transparência e pequena ondulação de pássaro. Na família, ganhara apelidos. Cisne, garça...

            O avião já estava lotado. Ao seu lado, sentou-se um menino. Os pais ocuparam duas poltronas próximas, na lateral direita. Ela sorriu levemente. O garoto correspondeu com um olhar tranquilo, logo desviado para a pequena cruz de rubi que ela trazia na corrente em torno do pescoço.

            Finalmente, a decolagem dentro do horário. Ela experimentou a sufocante sensação de que estava perto de se desintegrar. Depois, quando o aparelho se posicionou, sentiu-se flutuando e aí sim, acalmou-se. O olhar clorofilado perdeu-se nas orientações de voo. O pensamento foi ao passado mais próximo. Viu-se em sua clínica. Viu seu casamento desfeito após um ano apenas de convívio. Ela concordara quando ele dissera aos quatro ventos: não nascemos um para o outro. Na lembrança, a figura do marido. Amargou o instante. Respirou fundo. Mudou o rumo do pensamento. Lá fora, uma rota de flocos de algodão no fulgor do sol. De vez em quando, distraía-se com o garoto. Não fazia muito, ele derramara o refrigerante.

Era maravilhoso viajar para o desconhecido. Estar num vôo assim, dentro de uma grande mariposa de alumínio, avançando em direção ao céu da Itália, desligando-se de sua terra tropical, de sua família, seu povo e sua língua. Suspeitava, sem saber exatamente a razão, que Roma era a velha cidade do seu sonho recorrente. Desde menina, sonhava as mesmas cenas. Via-se diáfana, voando na penumbra, ora sobre um rio, ora sobre ruínas. Depois, em chão firme, percorria ruas silenciosas, desertas. Encontrava uma fonte. Mais ruas estreitas. Finalmente, uma casa em destaque. Alta, plangente, com sala enorme, espelhada, escadaria de mármore. Na sala, esperando-a, um homem de beleza indescritível. Sorridente, ele se aproximava e a beijava. No pescoço. De início, levemente, mas a pressão do beijo crescia, crescia e tudo ficava nebuloso. O sonho terminava quando ela se olhava no espelho e percebia dois sinais rosados na garganta, bem junto da jugular. Sonho obsessivo, inapreensível.

            A voz calma do comandante anunciou a chegada. Roma, eterna e triste, descortinou-se aos seus pés. Desembarcou em Fiumicino. Recolheu as malas, chamou o táxi, chegou ao hotel. Seu quarto, o 762, tinha cores claras, lindos móveis e leves cortinas açoitadas pela brisa. Sua maior sensação era a de que iniciava vida nova.

            Nos primeiros dias, as peregrinações comuns das rotas turísticas. Até visitou outras cidades: Florença, Veneza, Gênova, Pisa. Em sua décima terceira noite, acordou assustada. Quarto às escuras. Voltara-lhe o sonho. Ligou as luzes. Tomou água. Procurou instintivamente o espelho. Alívio. Nada errado se passara. A vida seguiu. Mergulhou no tempo. E foi o tempo que lhe ofereceu um mistério particular. Chegou um momento em que Roma começou a chamá-la com brados silenciosos. Eram apelos que vinham de todas as partes, de todas as vias, de todos os lábios de mármore.

            No seu vigésimo nono dia, acordou bem-disposta. Il sole entrando no quarto e na alma. Ligou para os pais. Leu. Arrumou-se. Almoçou no restaurante do hotel. À tarde, resolveu caminhar, simplesmente caminhar, sem rumo, sem pressa. Numa loja da Via Sistina comprou um batom. Chegou até a Piazza Navona. Andou mais. Fontana di Trevi. Mais ainda. Che giornata memorabile. Deu-se conta que percorria as estreitas ruas de Trastevere. A noite começava a trazer seus véus. Mas ela não tinha medo da noite. Estava sim, faminta. Desejou o restaurante mais próximo. Avistou-o, momentos depois, no dobrar da esquina. Era um grande e morto edifício. Aproximou-se numa súbita excitação. Empurrou a solene porta. Viu-se diante de uma imensa sala vazia, escada de mármore ao fundo, tapetes vermelhos, como sangue. Espelhos. Contemplou-se. Estava lilás como uma orquídea. Parecia uma virgem desgarrada da Capela Sistina. Uma linha tênue, azulada, desenhava-se em seu pescoço.

            Embora não houvesse ninguém, dirigiu-se a uma das mesas. Não se sentou. Estava inquieta. Talvez fosse cedo para jantar. Quando já se decidira a sair, surgiu-lhe, como por encanto, o garçom. Sente-se, temos o melhor cardápio de Trastevere, disse ele, num tom ansioso. Ela não se moveu, de puro assombro. Ficou hipnotizada. Nunca vira um homem tão belo quanto aquele. Tinha olhos também verdes, que emitiam uma luz antiga como de estrela. Olhos fitos, não exatamente no rosto dela, mas na garganta. Ela sentiu desejos de perguntar àquele homem: há quanto tempo você me espera? Ele, aproximando-se, respondeu fascinado: há séculos. Gerou-se uma tensão. Ela só havia pensado, não falara nada. Não sabia o que estava acontecendo. Sentiu o coração accelerato. O sangue fluía irregular em suas artérias. Pescoço e púbis latejavam. Fez menção de sair. Ele impediu, aproximou-se mais e sorriu. Esse sorriso foi uma espécie de revelação. Ela vacilou, chegou a detestar o que viu, ou melhor, ficou atordoada, tão exagerado lhe pareceu. E aceitável.

            Dentro daquele sorriso, brilhavam dois caninos, levemente pontiagudos, branquíssimos, cheios de urgência. Isto, foi só o começo. Muito tempo se passou. Até que um dia, como figuras de sonho, ela e ele foram vistos num barco, no Mar Tirreno, a caminho de Capri, a ilha do amor. Mas essa, essa é outra história.

In: A Gazeta, Cuiabá-Mt. 13 set. 2001. p 3E.

UM POUCO DE PÃO

            Antevéspera de Natal, seis da tarde, o dia se fechando docemente sobre a cidade. Apenas o céu tem a grandeza e as cores de um conto de fadas. Nas ruas, rente ao chão cinzento, o burburinho, o cheiro dos combustíveis, as tensões de um dia que termina. Com pressa, estaciono o carro no meio-fio da padaria. Desço, aciono o alarme e entro. De imediato, os panetones e bolos de nozes me comovem. Minha língua dança numa enchente. O pão francês acaba de sair do forno e o seu aroma começa uma viagem pelos ares. Meu destino se parte num antes e num depois, porque um pequeno episódio, inevitavelmente, toma corpo e continua fantasma.

No meio da paisagem açucarada, um tanto indecisa, chego ao balcão. A moça que atende está visivelmente estafada, boca lacrada e olhos taciturnos, de modo que apenas escuta o meu pedido. Pão francês e panetone, falo em voz baixa, meus olhos mergulhando na massa de frutas cristalizadas. Um homem alto, segurando a sacola de pães quentes, pega seu troco no caixa e sai acompanhado por uma menina que é a cara dele.

Pausa.

Silêncio.

A vendedora é um show de lentidão e descontentamento. Mas eu tenho paciência. Aguardo, submersa em nenhum pensamento. Aqui e ali, perambula meia dúzia de inevitáveis mosquitos. Embora as portas da padaria estejam parcialmente fora do meu campo de visão, noto quando ele entra. Denota meia idade. É negro, barbudo, está descalço e veste uma camisa suja e rasgada. Devagar, ombros ao peso das agruras, peito cheio de temores e costelas salientes, ele caminha até o caixa. O dono do boteco está lá. Escuta o pedido do maltrapilho: “O senhor pode me fornecer um pouco de pão? ” Esse “me fornecer” me intriga. É um pedido de compra a prazo ou um jeito diferente de pedir esmola? Não sei. O proprietário, empapado de suor, desagradável e contrariado, resmunga entre seus bolos e pães: “Não, não posso”. Logo a seguir, insensível, despacha o mendigo que sai bruscamente, com um jeito acostumado ao não. Tudo se passa rápido, mal tenho tempo de me acomodar ao imprevisto. O tempo é tão fugaz na indecisão. Quando, afinal, a centelha me ilumina, o homem já vai longe, longe, na porta da padaria.

Pausa.

Desconforto.

Uma espécie de vazio instala-se ao redor. O proprietário, gordo, enorme, mas de esquelética caridade, não se abala. Pago minha compra, volto ao carro e parto para o mundo. Revejo o mendigo, um minuto depois, na primeira esquina do percurso. Por que não paro e lhe dou umas moedas? Por que não lhe ofereço o meu pacote de pães? Seria tão fácil. Pelo retrovisor, percebo quando ele, de olhar espantado, atravessa a faixa de pedestres. Acelero. Vou pelo fio do tempo, fugindo da desordem do espírito e presa àquilo que vou perguntar repetidas vezes, pelo resto dos natais: “Senhor, você pode me fornecer um pouco de perdão? ”.

In: A Gazeta, Cbá-MT., 24/25 dez. 2000. p 1 E.

 

 

 

 

VOVÔ MORRERÁ HOJE

 

            Pois lhe conto. São quatro horas da tarde. É espantoso sim, mas vovô morrerá hoje. Mais espantoso ainda é que ele estará morto antes mesmo de morrer de fato. Com oitenta e dois anos, apesar de forte e saudável, vovô morrerá hoje. E será no início da noite. E atrapalhará o jantar. Este é meu jeito estranho de recordar o que ainda vai acontecer. Como não pode ser de outro modo, acompanho os antecedentes do atropelo.

            Neste momento, apressada e atônita, uma barata avança bem rente ao rodapé da parede de adobe. Ela avança por partes, de vinte em vinte centímetros. Percorre uma distância total de cerca de dois metros, para, gira rapidamente entreabrindo as grandes asas, volta pelo mesmo caminho, dá outra parada e se ajeita para atravessar a sala. Estou seguro de que vai atravessar a sala. E será em desabalada corrida, quase como um relâmpago, pois num campo aberto assim, o risco é enorme. Enquanto ela mantém as antenas duvidosas frente ao mundo, mudo o rumo do meu silêncio.

            Contente de voltar da escola, eu descubro que o dia é muito grande para mim. Também já sei que a noite é o núcleo em torno do qual gravita o meu destino, e o destino de vovô, e de todo mundo. É engraçado, o número de horas que gasto sem fazer nada está acima da cota de tempo que me foi dada. Difícil este cálculo. Meu ócio é mais duradouro do que minha própria vida. Por conta disso, engano o tempo. Talvez fique tão velho quanto vovô, que morrerá logo mais.

            Todas as tardes, entrincheirado em algum lugar, faço-me atento aos movimentos da casa, que bem pouco se mexe. Papai está sentado num jirau, lá perto do cajueiro. Aos pés dele, cautelosas e taciturnas, três galinhas ciscam. Seriam quatro não tivéssemos comido uma no domingo. Mamãe está fora do meu foco, mas vem da cozinha doce aroma de chá. Nas sombras da varanda, alheio aos bens terrenos, vovô está na rede – seu lugar cativo.

            Diante dos meus olhos, afasta-se o dia, assim: a pacífica luz do entardecer sai de mansinho de dentro de casa. Ergue-se do chão da varanda e deixa vovô na penumbra. Ela, a luz pacífica, sobe no velho telhado para entrar nos olhos do gato. Enquanto eu for pequeno, isso me acalma. Vovô se embala na rede, lentamente. O semblante vago, como se ignorasse o que está ao redor. Vejo que há muitas noites sobrando nas bordas de seus olhos. Vejo a eternidade que se aproxima.

Vovô se balança na rede, suavemente. A rua dança e dançam as folhas da mangueira. As amarelas caem. Estão cansadas. Vovô está cansado. E este vento repentino, gerando certezas fúnebres? E a eternidade, com fome? A barata continua imóvel. Um leque marrom – aquelas asas semiabertas. Volto àquilo que se vai. Meu peito dói ao frio perfume. Uma sombra, maior do que a casa, está dentro da casa. Quero correr e não consigo.

            Vovô, chamando por vovó que já morreu, começa a roncar levemente. Um leve crepitar. Já não lhe vejo um dos pés imprimindo embalo à rede.

— Pai, o que foi? Está sonhando? — Pergunta papai, que se ajeita para sair do quintal, o vento já lhe alcançando o sangue.

— Nada não — gemeu vovô ao filho, desde muito longe, como se estivesse deitado na curva da meia-lua. — Nada não — voltou a dizer.

Agora, vovô está roncando forte, numa sequência de sons cada vez mais secos e obscuros. Papai se aproxima, desassossegado. Vovô transpira em bicas. Papai se alarma. Vovô não está nada bem. É preciso chamar o médico. O médico é vizinho, que bom, e vem no ato, e examina vovô, e pega aqui, e pega ali. Depois recua, chama papai num canto. Fala claro. — Seu pai está morto — e papai, admirado, retruca.

— Mas como?! Ele respira, pude perceber. E o ronco? É de vivo.

O médico, amigo, entre sério e abalado, mas muito convicto, repete:

— Estou dizendo, está morto. Vai lá, pega nele.

Papai, num átimo, vai e toca em vovô, empapado de suor. A seguir, volta tartamudo.

— Nossa! Ele está gelado, doutor. Tem uma água pegajosa no corpo. O que é isso? — E o médico, olhando o horizonte imediato, responde.

— É a morte, pode crer. Conheço-a muito bem. É ela.

Vovô, de modo surpreendente, morto antes de morrer, retumba como um trovão fora das nuvens. Papai não sabe o que fazer. Olha para todos os lados. Ninguém pode fazer nada. Vovô para de roncar. Seus ossos se quebram e a alma se vai. Está morto enfim. Mas parece mentira.

Mamãe, já dentro do meu foco, com gestos suaves, acendeu uma vela. Uma névoa negra de pernilongos frenéticos, cantando fininho, vem chegando para o velório. Ninguém se lembrou ainda de me procurar. Puxa vida. Nesse tempo todo em que estive esperando vovô morrer, perdi de vista a barata. Da última vez que lhe pus os olhos, estava hirta, incapaz de atravessar a sala. Deveria percorrer poucos metros até alcançar a cozinha, talvez, ou algum lugar no meio da noite. Foi para criar coragem, com certeza, que ela se deteve. Coragem para armar os passos e se atirar sala afora, sem esbarrar na morte. Sem esbarrar na morte.

 

In: Na margem esquerda do rio: contos de fim de século, organizada por Juliano Moreno e Mário Cezar Silva Leite. Contos. São Paulo: Via Lettera, 2002.

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