top of page
22.png
Luciene Carvalho - foto.jpg

Luciene Carvalho
A escritora é corumbaense, vive em Cuiabá, no Estado de Mato Grosso/BRASIL - desde 1974 - tendo já recebido o título de cidadã cuiabana. É membro da Academia Mato-Grossense de Letras/AML. Entre as obras poéticas publicadas, citamos: Aquelarre (2007); Insânia (2009); Ladra de Flores (2012)  e Dona (2018).

TERRA DO SACRIFÍCIO​

Meu pai
Baiano, veio por São Paulo
Trazer o trilho do trem
Pra Corumbá.
Minha mãe
Veio pra esquecer alguém...
Estações são lugares
De encontros e partidas
O encontro dos meus pais, 
Logicamente,
Me trouxe à vida
Nasci na fronteira do tempo
Com o nada
Terra alagada
Rio Paraguai
Largura que se perde
Além de onde o olho vai
Na seca
- o rio ainda enorme-
Ilhas aparecem
Plantações de cana caiana
Na cheia
-mar de água doce-
Toda ilha some
O rio engole a chata
Engole o boi
E tudo que pra beira foi
O trem e o rio
O rio e o trem
Pouca gente vem
Pra passeio ou visita,
Nosso passeio 
Era de trole
Ou na égua
Que ganhei
Aos 5 anos
Íamos ver
Vitórias-régias
Íamos ver
Nuvens de borboletas amarelas
Tão belas
Tão belas
Brincávamos em meio
A nuvens de borboletas
Uma vez,
Numa viagem de trem,
Vi um nascer de lua cheia
Em plena planície pantaneira
De alguma maneira
Parecia que a terra paria a lua
Imensa
Intensa
Incendiada
Não consegui olhar para mais nada
Mas eu era criança
Não sabia o valor de uma lembrança
Não sabia que era do pantanal
Eu era um animal,
Brotado lá
Nascida em Corumbá...
No hoje , mulher,
Vi minha terra
Ser tomada pelo fogo
As chamas
Tinham a cor daquela lua cheia,
Não consegui entender
Como aquilo poderia acontecer:
Quem poderia querer
- em meio a uma seca infernal-
Queimar a vida que habita o pantanal?
O jacaré
Cotia
Tatu
Ipê
Anjico
Chamalote
Piranha
Siriema
Anu
Jaracussu
Sapo gia
Eu vi na tv
Queria não ver
Não fiz live
Não postei nada no face
Não liguei
Não orei
Não chorei
Parei
Olhei
E adoeci
Nem entendo 
O que acontecia
Fiquei sem alegria
Enquanto o pantanal ardia
Fossilizaram os bichos
Fossilizaram as árvores
Onde a passarada
Onde o peixe farto
Onde a macacada
Onde a água de tudo lugar
Encolhi
Não fiz nada
Frente ao suplício
Vendo o pantanal
Virar Terra do Sacrifício
Sou bicho de lá
Meu corpo
Soube a dor
E ficou mudo
Frente a tudo
Parou de comer 
Carne
Ave
Ou peixe
Como um luto
Como uma admissão:
Sou bicho pantaneiro
Tá marcado em minha pele
Essencial que eu revele.
A enorme linha de fogo,
É jogo que interessa à quem?
Quem foi a mão maldita
Que causou tanta desdita?
O que me deixa sem ar
É a pergunta que não quer parar:
Eles vão voltar?
Eles vão voltar?
Eles vão voltar?
Vão queimar?
Vão queimar?
Vão queimar?
Vai acontecer de novo?
Como vai ficar o povo pantaneiro?
Fiquei em Cuiabá
No quintal
Não disse nada
Fiquei calada
Assistindo tudo que é jornal
Queimaram o pantanal
Queimaram o pantanal
A chuva chorou a morte
Dos bichos
Das plantas 
Da minha ingenuidade
Na verdade,
Eu queimei.
Nem sei
Onde me guardar
Se não na poesia?
Porém, minha poesia
Também tem um berço inicial:
Minha poesia,
Como eu,
Nasceu no pantanal

© 2019 - Revista Literária Pixé.

  • Facebook
bottom of page