Luciene Carvalho
É escritora, poetisa e membro da Academia Mato-Grossense de Letras
CARBOIDRATO E PROTEÍNA
Eu e a cadela
Na mão
Um pão
Com mortadela ,
Caridade
Da generosíssima
Cidade.
A fome
Consome a mim e a ela
Sacio quem?
Olho
No olho
O bicho
E o pão
Com a fatia fina
Sem molho.
Escolho enfim:
Fico com o carboidrato,
Deixo pra ela a proteína
ROLEZINHO
"Mãe , manhêêê
Vou na casa de Teresa"
"Menina ,
Vai e já volta ligeiro
Eu tô terminando a janta
Hoje é arroz carreteiro"
A mocinha vai pra frente da casa
Pega o portão de madeira
E levanta
Ela sai...
Só ia até a esquina
Mas, a menina que foi,
Essa nunca mais voltou...
Encontrou com a noite escura
E as povoações desse mundo
De mãos
De beijo
Desejo
De comércios e gemidos
Ela voltou bem mais tarde,
A mãe já tinha dormido
O arroz já tinha esfriado
Os cães já tinham latido.
Entrou pela porta dos fundos,
Outra da que tinha ido
Seu prato ainda sobre a mesa,
Só foi ali, ver Teresa
E agora tinha partido
A CERCA
A cerca separava as casas
Uma cor de rosa
Outra, cor de nada
Numa casa
A menina estudiosa
Na outra
Monte de coisa roubada
Na rosa
Horta
Balanço de pneu
Na outra
A mãe morreu.
Na casa da menina
Chá de capim cidreira
Uma tia que era freira
Toalhinha sobre a mesa
Na outra mora tristeza
No olhar do pai borracheiro
O filho já faz dinheiro
Cheira e vende cocaína
Ah, o bordado da vida!
Começa e nunca termina,
Fio nenhum está imune,
O que o mundo separa,
Vem uma cerca e une.
Crescem os corpos
Os olhos
Crescem os pais
No trabalho
Cresce a carreira de pó
A menina sempre só,
Estuda a casa vazia.
Sempre encontra no quintal
Um jeito de encher o dia
Afinal
Qual é o mal?
Um beijo
Teco
Transa
E tal...
Normal:
A moça da casa rosa
Sempre foi estudiosa
Ela tem voz
No negócio
Arrumou marido
E sócio
3 filhos e freguesia
NA COHAB
Na casa de Cohab
O bairro sabe
Mora só
O velho e o totó
Cama, mesa e geladeira
Um sofá, uma cadeira
No fogão
Só funcionam duas bocas.
Não pode faltar café
Pão
E ração
O resto é como puder
Debaixo daquele teto.
O cachorro é o afeto
Já que tudo foi embora
A mulher
Saiu pela porta à fora
Falando de amor e nada
-vai ver algum talarico-
O filho virou milico
A filha , moça bonita,
Não manda nem carta escrita,
É puta de um homem rico.
Num dia de dor mais forte
Dele conjurar a morte
No aperto do coração,
Ouviu o abrir do portão:
Era um filhote de cão
Pequeno e desprotegido,
Pedindo para ser seu.
O cão virou o dono
Do seu profundo abandono.
Mudou seu dia
Mudou seu mundo
Naquela Cohab
O bairro sabe:
Onde o velho vai
O cão vai.
Quando algum vizinho
Chega pra pedir conselho
Sobre dor
De amor
Ao velho senhor
O velho diz:
"Quer ser feliz?
Arruma um bicho,
Gente é lixo.
Cachorro não,
Cão não trai"