Luciene Carvalho
A escritora é corumbaense, vive em Cuiabá, no Estado de Mato Grosso/BRASIL - desde 1974 - tendo já recebido o título de cidadã cuiabana. É membro da Academia Mato-Grossense de Letras/AML. Entre as obras poéticas publicadas, citamos: Aquelarre (2007); Insânia (2009); Ladra de Flores (2012) e Dona (2018).
GENEALOGIA BRUTA
Nasci na janela do mundo
Meio que de lado
meio que de esguelha
Última filha do meu pai
Única filha da minha mãe
Sem irmãos, só meios-irmãos...
Casar? No papel, uma só vez,
No mais, casei todas as vezes que pude.
Cedo fui órfã de pai,
Não fiz filhos, nem abortos,
Neta de devota de São Benedito,
Bisneta de parteira,
Filha de Virgínia Conceição,
Fiz versos, virei poeta
Moro em Cuiabá, no Porto
E Porto é meu coração.
(Ladra de Flores, 2012, p. 19)
FORMA ORIGINAL
Faço verso
porque disseram
que é pra isso que presto,
Não sei
se levo isso
como elogio,
como desclassificação
como recado.
Faço verso
porque quando não dou conta
do resto das coisas do mundo
dou conta
de – com minhas mãos –
ir arranjando as palavras
assim, de forma original.
E tudo e matéria-prima
e as palavras contam,
através de minhas mãos,
imagens e rimas.
Me reforço no verso feito.
Me ressignifico!
Construo algo maior
que passa a existir no mundo
e o mundo então
fica mais rico.
Faço verso
porque é meu melhor produto, porque não tenho escolha,
porque não tem motivo.
(Ladra de Flores, 2012, p. 24)
VÉSPERA
Todo dia é dia de morrer.
À noite, após a solidão instalada,
arrumo minha casa
como se no dia seguinte
fosse de velório.
Como se fosse receber
a visita de todos os amigos
em última revista.
Deixo todas as coisas
em seus devidos lugares,
todas as palavras ditas,
contas pagas,
afetos manifestos.
Todo dia é réquiem do outro,
sem que haja
uma gota sequer de morbidez.
Todo dia
posto meus olhos
na plenitude do possível.
(Ladra de flores, p. 54)
DO QUE É DE CADA
Não gosto de suores
dos sonhos alheios
respingados em mim.
Sonhos são assim:
Cada um que sue os seus.
(Ladra de Flores, 2012, p. 80)
REPASTO
Deitada, na manhã,
constatei a feminina umidade
fruto da memória da saudade
do havido.
Não há ouvido tapado
que impeça
a voz da lembrança.
(Sumo de Lascívia, 2007, p. 21)
CANÔNICA
Santos são aqueles que nos salvam
quando resvalamos
por estados de tristezas profundas.
Santos são aqueles que nos salvam
quando incorremos em blasfêmia.
Santos são aqueles
que nos coletam fragmentos,
no exato instante da última esperança;
São o sarã no barranco
do esfalfado da sorte.
São a sombra do meio-dia,
toldo estreito na tempestade.
Se santo não houvera,
a sagrada e fêmea fé
os criaria.
Mesmo que fosse
para vale do degredo.
Ah! Santo desabafo
ao pé do nicho em segredo,
ou prece feita em ofício,
com pedido inscrito.
Santo: carteiro do sonho menino,
currier entre o humano e o divino,
corrimão no medo
sopro do destino.
(Aquelarre ou Livro de Madalena, 2007, p. 42)
FEBRIL
Fez frio nesses dias,
recolhida às cobertas
tive febre
e algum tempo pra pensar
que a nós mulheres
à liberdade fere.
Soltas e atônitas
experimentamos a dor da escolha.
Ninguém virá
com proibições e limites?
Ninguém trará
o chicote a mão pesada,
as obrigações conjugais?
Que de liberdade
também faz-se o medo.
Ainda olhamos, receosas,
à soleira da porta
à espreita do senhor
e tememos que ele venha,
e tememos que ele não venha...
O frio foi rápido;
a febre já dura há mais tempo.
(Aquelarre, 2007, p. 43)
CANÇÃO DA INICIAÇÃO
O mestre que me iniciou
chegou e partiu,
pois é feminino
a nutrição as sementes.
O mestre que me iniciou
é como o fogo:
chegou e partiu
pois cabe ao feminino
gestar o futuro das gentes.
(Aquelarre ou Livro de Madalena, 2007, p.37)
GUARDIÃS
As damas da minha corte
Possuem mãos e bocas,
aguardam um gesto
que novamente puxe
o fio do novelo.
Que se desenrole
o próximo capítulo
da longa novela.
As damas da minha corte
sabem sortilégios
de trancar princesa em torres,
de adormecer sereias em atóis,
de reter iaras no fundo das locas;
Minhas damas
são guardiãs do corpo
que minh’alma habita.
Cuidam das flores
cuidam das velas
- para que se mantenham acesas –
cuidam dos cereais e hortaliças.
São vestais e fazem de mim
a pérola mais recôndita.
E cantam canções de ninar,
ensinam bordados,
inventam passeios de acordar sorrisos.
No alto das horas,
saciam desejos de qualquer origem,
só ouço sim,
desde que mantenha
a corte na torre.
(Sumo de Lascívia, 2007, p. 25)
LUNARES
As mulheres rezam
porque conhecem a força da vida
dentro de si.
As mulheres oram
por conhecerem a dor da espera
e a recompensa da esperança.
As mulheres oram
porque amam em vão
e tocam espelhos com as mãos
ao pensar em seus amados.
As mulheres rezam
porque é de sua natureza
murmúrios súplices.
As mulheres crêem no sagrado
e captam o transcendente
e se comprazem em sua Natureza.
As mulheres carregam pagãs
em suas preces cristãs,
banham-se com frutos e flores,
acompanham as fases da lua
as mulheres são luas
as mulheres são fé.
(Aquelarre ou Livro de Madalena, 2007, p. 38)
FÊMEAS FORMAS
Abauladas, seios, ancas.
Baús, potes, cabaças
côncavos, úteros, curveios
ovais, conchinhas e taças.
(Aquelarre ou Livro de Madalena, 2007, p. 24)
COLO
O colo que hoje busco
- corpo e abrigo –
não é o de perfume
de aconchego.
Não!
Não quero o colo
de me esconder do medo,
Não quero o colo
que tira minhas pernas do chão,
não!
O colo que anseio
não é o da proteção empoderada
que me faria títere,
refém.
O colo que aspiro
é cúmplice como um biombo,
excitante como uma gangorra.
E me sentar nele, será
como se fosse num cavalo,
para ir além...
Percorrendo e percorrida.
O colo, sem pudicícia,
abusará do fato
de eu estar de saias
e brincará com minhas partes
incentivando meu riso,
descortinando o lúdico
do meu prazer.
O colo com que sonho
- Isis sem véu –
vai me mostrar à vida
no encanto arte
que há no carrossel.
(Sumo de Lascívia, 2007, p.28)
CARNE VIVA
O pote que saliva
o meu viés,
quer mais,
deseja muito.
Porém, não apresenta rigidez visível.
Meu querer é silente e úmido
e pode passear pela sala de visitas
sem que dele se apercebam.
O calor contagia entranhas,
como forno à espera.
A fera só sabe a si
e, talvez, a presa
que, por vezes, participa indefesa
como conviva e iguaria,
como carne viva
num raro festim.
(Sumo de Lascívia, 2007, p. 45)
CANETA- TINTEIRO
Sou entrega
pra mão de abuso
sou fêmea de uso.
Sou corpo recluso.
Os pássaros cantam
na manhã que vivo,
o sol laranja,
depois vem lilás.
Meus sonhos são repouso
de entrega plena,
faço novena
na primeira luz
Meu dia é fraude
pra quem vê de longe
e finge entender
o que parece ser.
Portões, “bom-dia”,
incenso, almoço,
passo de uma à outra,
sigo mistério
sem fazer alarde.
Meu jeito sério
não revela o inteiro
do mar que sou,
caneta-tinteiro.
(Sumo de Lascívia, 2007, p. 16)
CRISÁLIDA
Silêncio! Estou em mim.
Fabrico ainda minhas cores
Estou em criação
Medito meus grafismos
Meus perfis
Sou projeto e já sou vida
Preciso do tempo
Sou crisálida
Já tive vida anterior
E realizo síntese
Voltei aos meus genes
Levando minhas vivências
Tenho nova etapa pela frente
Um futuro diferente
Portanto,
É preciso cuidado
Sou crisálida
Ainda frágil, sonho e voo
Recolhida em mim
Em busca e transformação.
(Devaneios poéticos, 1994)
MINHA DONA
O sagrado silêncio
conquistado.
O chá – camomila, erva-doce, anis.
O leito inteiro disponível.
A noite entra noutro nível.
O incenso Masala.
O banho morno. Ninguém em torno.
Esse é meu noturno cortejo,
à espera de receber o beijo
transparente da poesia.
Ela é minha dona,
me possui;
me emprenha de versos.
Ela é minha dona,
melhor porção do meu universo.
Sofro quando ela me abandona
e segue, frívola,
com outros poetas
ofertando cintilâncias
de rimas inéditas.
Sofro e sigo à espera:
“Quem sabe ela vem, já é primavera!”
Recorto camisetas
com imagens de santa,
minha ânsia é tanta
pelo encontro sagrado...
Entro em negação
versejante, que toma
o leme do que sou.
Ah! Poesia...
Ela é meu guia,
minha alegria,
meu escafandro;
me nutre de oxigênio
por onde ando.
Meu gênio da lâmpada,
minha marquise em noite de chuva,
minha voz,
meu algoz, minha segunda pele,
minha endoderme,
minha contaminação,
meu veículo,
minha formiga saúva,
minha farda de algodão.
minha poesia,
minha dona,
meu neon,
minha persona:
semáforo e contramão.
(Dona, 2018, p. 110)
LADRA DE FLORES I
Não mais amores.
A partir de hoje...
colherei flores...
Melhor, roubarei!
Seguirei atenta a gramados e jardins
pois, que para amores,
o tempo anda escasso,
Apressarei o passo,
ajustarei o compasso
e seguirei assim:
Ladra de Flores,
que se oferecem silentes
a carícia dos olhares,
a possibilidade do toque
a rapidez da mão.
À melhor provocação
praticarei o roubo,
o furto,
feito surto
na claridade vegetal do afeto,
infestarei a cidade
de boato, impunidade
e rumores.
Abraçarei a criminalidade
praticando assalto
no campo e no asfalto
me farei ladra de flores.
(Ladra de Flores, 2012, p. 15)
LADRA DE FLORES II
Nem errada, nem certa,
aceitei a oferta,
às vezes em forma de Margarida,
às vezes em forma de Narciso.
Outras vezes – quando foi preciso –
fui ladra de flores,
era urgente colorir meus dias...
sempre vivas, miosótis,
não plantei em potes,
presas a mim.
Usufrui – flores e amores –
no livre que pude
sabendo o risco desta atitude,
Toda ladra sabe o risco:
de adubo e chuva
nem sempre tem-se a medida exata.
Fui ladra de flores
que despertaram a cobiça
em meus olhos
e se achavam por ali – desocupadas –
não fiz nada que ofendesse a pétala.
Fui ladra de flores
por compulsão e desatino
usando para o roubo
de sedução e entrega.
Meu verso não nega,
até aqui, fui ladra de flores,
compro meu destino.
(Ladra de flores, 2012, p. 96)
PÁTINA
Disseram que na idade em que estou
as pessoas começam a envelhecer;
mas esse negócio de envelhecer
é novo para mim.
Ainda não me acostumei
com o status de senhora
que levarei comigo
pela vida afora.
Vou buscando me ajeitar no tempo,
Vivendo o agora
buscando algum armistício
com tudo o que sou;
atenta ao que passo,
não ao que passou.
(Dona, 2018, p.20)
O TEMPO E O MEDO
Eles não saberão
das horas de medo
dos olhares prolongados
pro espelho
em segredo.
Eles nunca saberão
da chegada da vergonha
disfarçada de “nem ligo”.
Eu mesma não sabia
e não digo
da dor
frente a transformação
da face
da ruga
da marca de expressão.
Eles não saberão
dos pensamentos insanos
que enraízam pela mente.
No galopar dos anos
eles não saberão
da incômoda comparação
ao ver sobrinhas e filhas
com um colágeno
que já foi meu.
(Dona, 2018, p. 26)
IDADES
São duas idades
distintas,
distantes.
Você, recém-chegou aos trinta;
eu, já vejo as tintas dos cinquenta.
Entretanto, as divergências
têm dialogado
e vamos divergindo lado a lado,
construindo inéditas vivências.
(Dona, 2018, p. 33)
FRUTO DO FRUTO
Dona Josefa: minha avó.
Dona Conceição: minha mãe.
Matriarcas cuiabanas do rio acima
de quem herdo a tradição.
Herdo o corpo reumático,
a pele lisa,
o calcanhar rachado,
a voz imperativa.
Sou de uma raça
de mulher forte
do rio acima.
Eu, na verdade,
sou pantaneira,
onde a filha da fêmea do rio acima
cruzou com baiano;
eu sou a cria,
o fruto único.
Tenho olho de rebojo,
cabeça de bocaina,
ouvido de parteira
e pés de longidão;
um útero
que veio do útero de Josefa
trançado de taquara e fé.
Minha mãe tem no peito
um curral
cheio de vidas que cuidou.
Vou de onde vim;
é o rumo
escrito pra mim.
(Dona, 2018, p. 116)
ROSA E PRATA
Outro dia, me peguei
um pouco mais esperta
sabendo me calar,
me pondo a falar na hora certa.
E metade do mundo nem viu,
a outra metade nunca tinha visto.
Mas eu insisto em seguir mutante;
não é pelo mundo que eu sigo adiante,
é pra desvendar o inédito
em mim,
nas coisas,
nos lugares.
Tem uma cadeira de fio
rosa e prata
que, inimaginada,
habita em meu quarto.
Ela é a tradução exata
do inusitado
que a vida traz
em forma de coisa,
em forma de gente.
(Dona, 2018, p. 104)
CARTA ÀS BRUXAS
Irmãs, é chegado o Tempo:
acendam as velas nos altares,
acordem as manhãs com seu cântico.
Somos as filhas da Deusa,
Matrifocais.,
Irmãs, alinhem-se pela rosa dos ventos,
leiam os sinais.
Saúdem as quatro direções,
consagrem suas taças.
O aroma do incenso
já se espalhou.
Irmãs, vistam-se de arco-íris,
a cor certa a cada dia.
Munam-se de cristais e essências.
Trazemos as respostas dos mistérios.
Nosso ministério começou.
Estejamos prontas e reconheçamos.
Somos bruxas saídas das cinzas,
acordemos o tempo novo com nossos passos.
Sabemos a arte,
trazemos a arte feita com alegria.
Sabemos, irmãs, sabemos,
que duendes e santos
são parte do mesmo milagre,
que a felicidade
é projeto para vida eterna
e pode ser sorvida hoje.
O I Ching já disse:
“Nenhuma culpa.
É favorável atravessar a grande água”.
Já é possível compreendermos
as sephirotes da cabala.
Cala em sorriso o que for semente,
todas as gentes já podem nos saber.
É hora de viver à luz do dia.
(Aquelarre ou Livro de Madalena, 2007, p. 13)
IRINEIA DA JANELA
(Para Lucinda Persona)
Morava perto daquela estação de trem
Irineia –
15 anos e alguns dias.
Um dia acordou assim:
“Meu amado, meu amado,
É pelo trem que ele vem...”
Pôs vestido,
deixou solto o cabelo,
recostou-se na janela,
olhou os trilhos,
olhou para sua mãe
e perguntou para ela:
“Será que hoje ele vem?”.
Ouviu o apito do trem.
Sua mãe, recém-viúva,
agasalhada no medo
respondeu: “Ainda é cedo...”
Irineia 17,
Todo dia
a mesma ideia
Com o apito do trem:
“Será que ele vem?
Será que ele vem?”
Fez trança
e da janela
perguntou para a mãe dela
Viúva e muito triste
“Será que ele vem?
Será que ele existe?”.
A mãe como num segredo,
Sussurrou: “Ainda é cedo”.
Irineia, 20 anos,
Todo dia
na janela em romaria
soltava um pequeno grito
quando escutava o apito:
“Ah! Meu amado!”
e imaginava:
Será que ele vem ?
Será que é bonito?
Dizia pra sua mãe:
“Às vezes, nem acredito...”.
Sua mãe sentia pena
e respondia:
“Vou lhe fazer um vestido!”.
Irineia 32
Já se tornara mulher,
Se colocava à janela
De forma um tanto discreta
pensando:
“Será que ele não me quer?”
Sua mãe, após o apito,
Dizia: “Eu acredito.
Se hoje ele não vier,
então ele vem depois”.
Irineia 40 e poucos
o corpo já quase louco
gritando ao ouvir o barulho
do trem passando no trilho:
“Será
que só nunca ele virá?”
e perguntava para a mãe:
“É pra isso que nasci,
para ficar encalhada?”.
A mãe ficava calada.
Irineia fez 50.
Sua alma já não aguenta
o trem,
a espera,
a ilusão.
Olha para a mãe
como para sua prisão.
A janela fica aberta...
ao eterno do apito;
só seu peito ainda aperta.
Sua mãe então lhe diz:
“Sei que você não é feliz.
Mas, se ele vier lhe buscar,
quem então vai me cuidar?”.
Irineia fez 60.
Sua mãe morreu,
foi um choque.
Ela sentada na cama,
fez um terço,
Fez um coque;
já não era sentinela,
já não pensava no trem.
Ela fechou a janela,
ela sabe: ninguém vem.
(DONA, 2018, p. 60-62)
ESMOLER
El pedia com os olhos. O cabelo bem pintadinho e ainda assim, sem viço, talão de cheque, cartão de crédio, emprego fixo, competente. Ainda assim pedia com os olhos. A pele pálida de moça de escritório, a blusinha de alça de cor alegrinha, não conseguiam atrair os olhares para o corpo gritantemente mal tocado. Viera ao Choppão e por sob a mesa os dedos dos pés retesados me contaram da ansiedade; a amiga sentada a sua frente: nem mais bonita, nem mais rica, só mais plena. Ela, expressão de Mariete, me contava através dos cotovelos apertados junto às costelas, das noites emocionantes não havidas, dos sussurros de amor não trocados, da agenda sem surpresas. Talvez se chamasse Teresa e morasse no Terra Nova num pequeno apartamento de dois quartos adquirido com a prova do profissional bem-sucedido. O riso contido e a expressão do rosto ensaiada pra agradar, me falavam que sempre foi Josiana, querendo aplauso do pai, espanto da mãe, sempre chegou só um pouquinho atrasada e quis agradar aos professores. Fez sua faculdade e seu concurso. E nesta sexta à noite, sem que se dê conta, os olhos pedem.
(Conta-gotas, 2007, p.30)
CADEIRA DE BALANÇO
Na quaresma da vida pouca coisa lhe restara: a cadeira de balanço e as lembranças. As saídas do casarão do Barão de Melgaço só nos dias de consulta com o Dr. Benevides. As visitas da família são cada vez mais rápidas e espaçadas, ela já não lembra os nomes de todos e as caras vão se misturando umas as outras à medida que o tempo se acumula sobre os dias. Velha não tem compromisso marcado.
Dos 6 filhos, só 3 estão vivos, dos netos já perdeu as contas, por vezes tenta refazer o quebra-cabeças de fotografias que enfeita a parede da sala com sorrisos e sobrancelhas que lembram os seus. Bobagem. Hoje em dia ela não pode esquecer é o remédio para pressão alta, o resto já não tem tanta importância. Essa é a maior lição que o tempo lhe trouxe: a pouca importância dos problemas urgentes, não há nada que o tempo não encubra.
O tempo levou o pai, alto funcionário do Banco da Borracha; a mãe, carola que morreu tão silenciosamente quanto viveu; levou seus 9 irmãos, deixando-a sem ninguém pra dividir recordações do tempo antigo; levou o marido capitão do exército, mas esse, o tempo já levou tarde, lhe deixando pensão e alívio.
Na solidão de mulher velha de memória falha, pouco lhe restara: só a cadeira de balanço, as lembranças e esse pequeno ir e vir entre a varanda e o quintal; a conversa com as árvores e os passarinhos o que faz quando bem entender; esses vestidos de cores alegres e decotes mais frescos que só pode ter após a viuvez.
É verdade que muito, muito da memória se perdeu, porém, dentre o que restou, é recorrente a lembrança de um certo Cabo Tomé que freqüentou-lhe a casa quando os 40 anos gritavam a urgência do corpo. O rosto dele lhe volta aos olhos com mais força cada vez que sua caçula, a rapa do tacho, vem lhe visitar. Na hora de abençoar a filha na despedida, chama-a de Tomezinha e não se importa quando escuta o que sussurram de viés, lhe chamando de caduca.
(Conta-Gotas, 2007, p.14)
CONTA-GOTAS
Eu velarei a noite inteira, mãe, estarei atenta ao conta-gotas nas horas certas da medicação, creia. Conseguirei o seu perdão tantas falhas, tanta frustração. Ah, mãe! Serei motivo da sua admiração, a senhora se esquecerá da menina sem encantos, da mocinha sem brilho, se esquecerá da perda do seu filho. Eu prometo lhe recompensar pela moça sem beleza, pelo genro pífio, de profissão modesta e ambição tacanha. Minha fé tamanha trará a recompensa. O médico me disse que com algum cuidado levarei a gestação até o fim, é certo sempre ter sido um tanto frágil e sem viço, mas, desta vez, vou dar conta do serviço. Isso é vital pra mim: terei nosso menino. Eu me vejo entrando em sua casa, por uma vez vitoriosa, levando o neném nos braços envolto em manto azul, será noitinha, meu ventre ainda abaulado, meu peito cheio. O passo cuidadoso do pós-parto, seguirei até seu quarto, que fica logo após o meu de filha pouca; minhas mãos seguirão até sua direção, lhe entregarei meu filho mãe, que será nosso. Nossas tardes após então, serão serenas e seremos íntimas e cúmplices.
A senhora me ensinará todos os cuidados, estaremos próximas, talvez voltemos a morar juntinhas. Talvez eu não descubra como ser mãe sozinha. Só preciso de repouso, de descanso pra atravessar por essas seis semanas, o remédio que me deu o médico nem é ruim, só tenho que atentar ao conta-gotas.
(Conta-Gotas, 2007, p. 25)
ROTA
Ela desceu no ponto de ônibus da Prainha, perto do calçadão ainda meio tonta: passou em gente à joalheira onde haviam comprado as alianças em setembro passado, numa tarde de risos e cumplicidade. As lágrimas sucumbiram às lembranças, desabando pelo seu rosto, enquanto descia a 13 de junho em direção à farmácia Pax. Comprou uma Água de Melissa de um balconista solícito que, vendo seus olhos cheios de lágrimas, perguntou se ela queria mais alguma coisa.
“Quero, quero sim” ela pensava, enquanto seus lábios murmuravam um obrigada pálido “quero voltar as horas, mudar o caminho das coisas, quero acordar de novo nesse sábado...” ela decidiu ir a pé pra casa após pagar a nota da farmácia. Sua dor precisava de espaço e sua cabeça tinha entrado em redemoinho de pensamentos sem controle...
“Quero acordar de novo neste sábado e não inventar moda de querer ir à casa de Frederico pra ter uma conversa sobre nós dois - esse negócio de discutir relação é bobagem – ainda que eu saia de casa, que eu não pegue o ônibus do CPA, que eu vá ao Porto visitar Anginha. E mesmo que pegue o ônibus, que eu desça na subido do Araés e vá ver Zulma, que eu desça no centro e torre meu cartão. Quero qualquer força que me mude a rota, que me impeça de chegar à casa do meu Fred e usar chave na porta.
Qualquer milagre que me cegue os olhos antes que eu veja os corpos na cama: lindos, íntimos, entregues um ao outro. E se nenhum impedimento for possível, que ele minta, que ela não olhe nua em piedade terna. Que ele minta pelo amor de Deus; que fale em sem querer e aventuras, que peça meu perdão. Que ela não se vista e saia, digna e serena. Que ele peça nem que seja um tempo, pra pensar nas coisas. Quero esquecer que ele tirou a aliança do dedo com alívio pleno e só: ‘Sinto muito’. Quero arranhar a cara do ladrão de sonhos, rasgar minha roupa...”
Nem deu pra perceber o chegar em casa, o caminho feito. Talvez com a vida também fosse assim: o seguir das horas, mesmo o peito em brasa. Talvez devesse voltar-se pra si, como quem vai pra casa...
(Conta-Gotas, 2007, p. 32)
PRA PODER SONHAR
Sairia dali
Sairia dali em breve
O mais breve que pudesse
Antes que o tempo passasse
Antes que a força acabasse
Antes que a vida morresse
Nos dias iguais
Sairia dali
Por qualquer caminho
Que abrisse primeiro
Faria dinheiro
E sairia dali...
Enquanto ainda,
Faria faxina
Faria resenha
Faria pamonha
Faria programa
Sairia dali
Pra não ser mais uma
Pra não se mais nada
Dessas que se acaba
No tanque e fogão
Sairia dali
Diria não
Pra rua poeira
Pro amor de coleira
Pra não ser obreira
De sim pro pastor.
Sairia dali
Porque não queria amor
De teto com ranço
E aquele balanço
No tosco quintal
Pra alegrar as crias
Do parto bienal.
Sairia dali
Por que tinha medo
_Pensando de noite_
E acordava cedo
Pra poder sonhar
Sairia dali
Pra ver vida inteira
De alguma maneira
Por sorte
Ou por morte
Mas, ia escapar
Poema inédito de Luciene Carvalho
JOGO DA SELEÇÃO
A rua não lhe perguntava nada
Só lhe convidava pra andar...
Era dessas mulheres
De portão pra fora,
Desde menina
Tinha essa sina
Não curada
Por nada:
Nem cinto de pai
Nem choro de mãe
Nem –até- camburão
O irmão olhava
E falava:
“Tem comichão”
Ela não queria
Saber o que tinha,
Queria a alegria
Que dentro sentia
Quando escapava portão...
O cheiro da rua
O desconhecido
Vizinho, vizinha
O andar sozinha.
Conversa fiada
A vida alheia
Posta na calçada
A troco de nada
Ela nem ligava
Ficar mal falada,
Queria estar junto
Mesmo que na rua,
Fosse ela o assunto...
Falava com puta
Vendedor de fruta
Com irmã da igreja
Com gente de facção
Bebia cerveja
De boca fechada
Não falava nada
De tudo sabia
Bicheiro
Agiota de dinheiro
Idiota, travesti
E daí?
Um dia,
Era jogo de seleção
Ela saiu:
Carteira no bolso
Celular na mão.
Assistiu o primeiro tempo
No bar do Ari
Teve um gol
Teve um vento
No barulho
Ninguém viu
Ela sumiu
Nunca mais voltou
Foi a rua que engoliu.
Poema inédito de Luciene Carvalho
BOLO
No terceiro filho
Ela entendeu:
O marido era aquele
O bairro era aquele.
Parou de sofrer
Numa quinta-feira
Os filhos
Um na escola
Uma comendo pedaço de parede
Outro berrando por peito.
Ela parou
Olhou pra tudo
Prendeu o cabelo pra sempre.
Era uma quinta-feira,
Ela foi até o muro
E pediu açúcar emprestado
Pra vizinha mais velha
- de cabelo sempre amarrado-
Olhou bem praquela mulher
De idade nenhuma
Sorriu e disse:
“Vou fazer um bolo
Depois passo um pedaço
Pra senhora”
Poema inédito de Luciene Carvalho
SONHO NEGRO AZUL
Beiço de negra,
pronto pro beijo
e p’ra palavra certa.
Sou toda assim:
cabelo pixaim,
juba de pantera.
Sou fera!
De inteligência rara
e brilho certo.
Não chegue perto!
Você não me doma.
Se deita em minha cama,
ainda se apaixona.
Não entre em minha redoma,
sei do prazer da carne,
que é negra e doce.
Antes fosse submissa...
Não o é, não o é.
tarde ou cedo,
você perde o medo,
vai querer provar
do que vale,
O dia sem o risco?
Sou raio negro, corisco.
E o beiço da preta
se escancara em riso
- Sabe a dor-
O olho preciso,
é convite azeviche,
gozo de piche
Sonho Negro Azul.
Poema inédito de Luciene Carvalho