Lucas Rodrigues
É formado em Jornalismo pela UFMT e pós-graduando em Jornalismo Empresarial e Assessoria de Imprensa. É escravo de algum impulso desconhecido que manda ele escrever sem hora marcada ou qualquer tipo de intervalo de tempo pré-definido. Autor do livro “Pirotecnia” (2017). Já atuou como repórter/editor de Judiciário, coordenador de Jornalismo do Governo de Mato Grosso e atualmente é assessor de imprensa do governador Mauro Mendes
TERAPIA
- Olá boa noite a todos. Todo mundo já sentadinho, pontuais, muito bem viu? Eu to vendo que tem gente nova, mas não precisam se sentir pressionados a falar. Aqui é um espaço pra gente ouvir, né, refletir e ajudar naquilo que for possível, trocando essas experiências, certo?
Ninguém reage. Todos olham pra baixo e disfarçam, na torcida para não serem escolhidos ou “sugestionados” a abrir a sessão.
- Então acho que a gente podia continuar com você, Pullmann. No seu tempo, sem pressa.
- (respira fundo) Bem, vocês já me conhecem, eu sou o Pullman Integral 12 grãos. O primeiro do pacote. Nem precisa dizer né, dá para perceber que sou menor e mais magrinho. Dei o azar de estar na linha de frente durante a produção e o corte daquela máquina industrial nunca é favorável com pães como eu.
Sentia desde o começo que tinha algo errado. Já durante o transporte, naquele caminhão escuro, eu ouvia coisas muito tenebrosas. E não estou falando das músicas do Léo Santana que o motorista ouvia ininterruptamente. Eram os outros pães cochichando pelas minhas costas coisas como “vai para o lixo” e “papinha de cachorro”, só para citar algumas. Não conseguia entender o que queriam dizer com aquilo. Mas a minha dúvida durou pouco.
Era um balança pra lá na gôndola. Balança pra cá no carrinho. Balança pra lá na sacola, até que cheguei na despensa e, finalmente, em uma linda mesa de vidro.
Uma mesa alta que me deu até vertigem quando fui colocado em cima dela, ao lado do requeijão, de um prato e de uma xícara de café. Me senti bem recepcionado até então, ainda mais ao olhar para a xícara e ler a seguinte inscrição: “você é especial” - provavelmente recebida pelo dono da casa por alguma colega de trabalho com preguiça de escolher presente mais elaborado no amigo secreto.
Eu me sentia especial mesmo. Na ordem evolutiva dos pães, estou no topo. Antigamente era farinha, ovo e leite. Com todo o respeito aos meus antepassados, mas eram pães rústicos, simples. Pães Tony Ramos. Parabenizo a inteligência humana por aprender que, ao misturar compostos tão primários e fazer seu devido preparo, conseguiria obter uma massa quente e nutritiva.
Agora, não tem como comparar com essa linhagem a qual pertenço. Pães Rodrigo Hilbert. São mais de 30 ingredientes. Muitos deles fabricados em laboratório. Tem composto artificial sim, qual é o problema? Preconceito contra transgênicos em pleno século XXI? Sou rico, forte e caro. Mas entrego o que prometo.
Era com essa autoestima que eu estava quando senti aquele barulho no plástico e vi uma mão entrando. Meu momento. Seria massageado por uma faca com aquele requeijão geladinho por todos os meus poros. Uma talher de metal roçando em mim na linha tênue entre o prazer e o corte fatal. Até ser devorado aos poucos por aquela senhorita que aparentava ter entre 30 e 35 anos.
A expectativa não se consumou. Ela me pegou e me jogou em cima do pacote de pão. Em seguida, tirou a fatia que estava logo atrás de mim. Uma fatia maior, cujo tamanho era todo padronizado e com curvas perfeitas as quais assumo que senti inveja.
Não bastou o desprezo. Do alto do pacote, assisti de camarote a fatia “padrãozinha” ser massageada e devorada. Roubando meu sonho. Mais uma humilhação cruel promovida pela fixação humana em torno da estética, das linhas simétricas e das relações líquidas e superficiais com aquilo que elencam como belo. Meu prazo de validade deve ter adiantado em cinco dias tamanho o ódio que senti. Desejei que ela engasgasse até morrer, e fosse encontrada já com o corpo em decomposição para não ter o direito de um velório. Que morresse sem dignidade, da mesma forma como estava me fazendo morrer. A desgraçada ainda me jogou no lixo depois de saciar seus desejos mais impuros.
- Sinto muito. Eu sei como é a sensação de criar uma expectativa de ser consumido, mas no final das contas ser rejeitado. No meu caso, a angústia não foi no começo, mas no fim - disse o 50 ml restante de Brahma Chopp, com ar de tristeza.
- Eu fiquei muito emocionada com o seu relato, sabe? Há anos eu promovo campanhas para conscientizar sobre o preconceito com a minha classe e, no fervor dessa luta identitária, só ouvindo o seu drama consegui enxergar quantos outros também passam pelo mesmo - relatou a Parte Escura da Banana.
A Casca da Uva não segurou a emoção e discursou em pé.
- O que você falou me faz pensar que a nossa vida é uma roleta-russa. Uma missão que tem uma alta porcentagem de não ser completada. Tudo a depender da subjetividade de quem encontrarmos pelo caminho. Quais experiências, ideologias, traumas, doenças e influências vão definir se serei ou não consumida? A leitura de um Leandro Karnal ou o consumo de documentários sobre alimentação será decisiva contra o exemplo negativo repetido à exaustão de um pai e de uma mãe que nos descartam na frente de seus filhos?
A Borda da Pizza fez autocrítica.
- Já foi a hora de lamentar. Peguem o exemplo do alho. Há pouco tempo uma subcelebridade ignorada nos lares. Hoje, após intensa campanha midiática promovida por chefs de cozinha, reality shows e influencers, tempera a imensa maioria das comidas. Será que não é a hora de nos gourmetizarmos? Vamos assistir inertes esse ultraje até quando?
- Bem pessoal, hoje o nosso encontro foi bem produtivo né... Debates intensos, mas precisamos encerrar. Vejo que o Pullman está mais animado com essa acolhida. Na próxima terça, eu convidei a Cebola Frita para ser a nossa facilitadora e falar sobre a dificuldade em ser usada para dar gostinho na carne, mas não ser ingerida por si só. Até mais.