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Lu Ain-Zaila 
É pedagoga. Escritora afrofuturista das obras Duologia Brasil 2408 - (In)Verdades e(R)Evolução (2016-2017), Sankofia (2018) e Ìségún (2019), contos em antologias e iniciado pesquisas relacionadas à educação e literatura. Se debruça sobre a importância de imaginar e concretizar afrofuturos e futuros positivos nas periferias e margens. Tem contos públicos e no contexto da lei 10.639/03, narrativas negras centradas nos valores filosóficos, culturais, históricos, mitológicos e humanísticos negros.

ABEBÉ

É difícil de explicar, um misto de ansiedade, pânico e euforia tomava conta de mim a cada entrada de uma estudante naquela sala, a um passo de me tornar independente. Me lembro de ouvir os professores dizendo que quem dava por finalizado o ciclo não era eles, era quem estava naquela sala e nunca mencionaram o tal nome. E assim era há séculos para todos os Clãs.
Então eu suspirei e também perdi a respiração, pois quem passava, se formava, abria a porta com um nível de exaustão estampado no rosto, mas também feliz, algumas vezes precisando ser carregada. E quem não passava saia por outra porta para receber acolhimento E não era uma questão de fracasso, insistiam os nossos orientadores. Era uma questão de tempo das coisas e isso só aumentava a minha ansiedade. Será que eu estava a um passo de me tornar uma ÉÈdìsta, uma encantada? Eu, que nasci num país da diáspora africana? Iria descobrir em breve, pois enfim meu nome, Anya, como do livro e do conto estava sendo chamado.
Senti meu corpo pesado, querendo fincar no chão e ao mesmo tempo seguir. Ouvi meu nome pela segunda vez e enfim respondi. Sim. E dei o primeiro passo, o segundo e ao todo foram sete passos até a porta. 
— Há um Adinkrahene dourado, se posicione sobre ele quando estiver pronta.
E foi a única instrução que ouvi, antes de ser convidada e abrir a porta e entrar. Senti minhas mãos úmidas ao pegar com firmeza o trinco e girar. Agora era a minha vez de saber o que aquela porta escondia, que mundo me esperava, que teste eu faria. Tudo o que imaginara não me preparou para o que estava depois daquela porta.
Entrei e me surpreendi por não ver nada incomum, nada mesmo. Admito que perdi até o êxtase contido em minha imaginação: portais, testes mágicos, inúmeras coisas, mas nada ali confirmava a expressão de meus colegas, que testemunhei sair daquela sala, octogonal comum, como qualquer outra ali.
Logo percebi algo no centro da sala, o ideograma-símbolo Adinkrahene, três círculos pintados no chão e de cada lado hastes muitíssimo bem trabalhadas em pedra sustentado um abebé cada um, voltados um para o outro. Caminhei até o ponto indicado pela orientadora e entendi que deveria ficar entre os sagrados ornamentos com relevos de mar e um pequeno espelho em seu centro, porém não consegui me decidir para qual espelho ficaria de frente ou daria as costas. E não me disseram nada sobre movê-los. Foi quando percebi que estava diante de algum tipo de decisão a ser tomada.
— Hummm – foi tudo o que disse enquanto apoiava meu queixo entre minhas mãos espalmadas e imaginava o que fazer, passeando os olhos entre um e outro. 
Precisava pensar em algo mais lógico do que abrir a porta e perguntar. Isso eu não faria de modo algum e então me ocorreu algo bem ridículo e obviamente simples. Eu poderia não ficar de costas para nenhum. — Se eu ficar em paralelo com ambos os abebé posso olhar para os dois e ver o que vai acontecer.
Decisão tomada, respiro fundo, vou até o símbolo no chão e me posiciono sobre e também ficando entre os dois abebé, um de cores azul mar e prata que saúdo. — Odoyá! É de Iemanjá. Já o outro de cores azul mar e dourado saúdo. — Ora Yêyê Ô! É de Oxum. 
Estou confiante e... nada. Nada acontece por longos sei lá quantos minutos. Olho para o centro dos abebé, no pequeno espelho de ambos e não sei o que fazer. Tudo é silêncio exceto pelo vento fresco que sopra a cortina da sala. Me distrai por alguns instantes, nem tinha percebido a janela da varanda aberta, mas começo a imaginar que talvez eu não esteja preparada. Meu tempo de estar pode não ser hoje e saio do centro, de cima do símbolo.
— Será que eu deveria ter saído de cima do símbolo?
— Acho que não deveria ter saído.
Fico em dúvida, mas não me lembro de ter dito “Acho...”
Fico em dúvida, mas não me lembro de ter dito “Será que...”
Nos assustamos e damos um passo atrás. 
Me assusto e dou um passo atrás. 
Agora sim, o desafio está mostrando a que veio. Estou dividida, me parti em duas e nos encaramos com espanto antes de perceber que nosso, meu corpo ainda está sobre o símbolo Adinkra sem se mover.
— Do que se trata o desafio? Pode me dizer?
— E como eu vou saber? Me diz você...
Ai, que dor de cabeça, agora eu era duas confusas num desafio que eu ainda não entendia. Do que se tratava? Será que para cada um de nós o desafio se mostrava diferente? Estávamos, eu estava sem opções. Ela e eu também. E foi quando o vento soprou novamente as cortinas e desta vez pareceu estar perfumado, mas não era essência, flores. Era água, água livre tem cheiro de água livre e então o vento nos, me cercou e começou a girar ao redor de mim, nós e de repente éramos massa de água suspensa no ar. Ainda era eu, nós, mas em forma de água gotejando o chão.
Aquilo me assustou de verdade e ficamos, fiquei perplexa me apalpando e perguntando qual o significado. Nunca tinha visto em meus anos de Clã nenhuma das orientadoras assumir tal forma ou contar história com tal fato. Então nós, eu, nós continuamos sem saber o que deveríamos fazer. E ficamos nos encarando até uma terceira voz assumir o controle.
— Toooolas! – e tomamos um susto, minhas duas partes. Eu.
Agora, a voz vinha do meu corpo descruzando os braços e me, nos encarando.
— Não, não sou você, partida. Sou quem vai assistir de camarote – e logo após dizer isso, com um simples movimento de mãos, fez os abebés se voltarem para nós. E então nós, eu me vi no reflexo de ambos e foi quando nos sentimos, me senti sendo puxada para dentro dos abebé. Sumimos. Mas não é verdade.
Me vi flutuando, ora nuvem, ora chuva e então me senti cair, aquecida pela luz do sol. Não tive medo de voar por todas as direções e fazer sentido para a terra, as plantas e especialmente para as mulheres que vi, que toquei as faces em gotejos, sorrindo e chorando. 
— Elas são o seu Clã, antes, durante e depois de você e com você e através de você – disse uma voz suave, vinda de todos os lados da chuva. Eu. Todas nós.
Era incrível o alcance que eu possuía naquela forma, ora me vi num pé de colina, chão quilombola, minha mãe. Noutra me vi em vielas, espiando janelas e ninando mulheres para um sonho que sonharíamos juntas. E então inúmeras vozes vieram delas e de mim em gotas, no ar. Nos ouvíamos desejando o melhor e impulsionando umas às outras.
A visão de mim espelhada nelas e delas espelhada em mim era o que abebé de Oxum e Yemanjá queria... nos, me mostrar, todas nós e eu ao mesmo tempo.
A colina foi ficando repleta de mulheres vindas de todos os cantos e lugares onde desci chuva e soprei sonhos. Uma conexão se fez entre nós. E ao parar a chuva, eu, de cair, veio o calor breve do sol e subi vapor para ser parte do ciclo da vida, ora eu, ora elas.
Quando dei por mim, eu estava na sala octogonal, inteira, sob o Adinkrahene novamente com uma sensação de leveza e ao mesmo tempo de onda do mar indo e vindo no corpo. Me senti tonta e entusiasmada. E mesmo sem olhar para os abebés, eu me via em ambos, não mais reflexo, mas eu e muitas outras antes, durante e depois de mim, ao meu redor e de mãos dadas a elas. Aquele era um reflexo totalmente novo.
Me lembro da porta se abrir e então vieram me segurar.

© 2019 - Revista Literária Pixé.

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